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O texto constitucional de 1988 inovou no desenho federativo do Estado brasileiro ao estabelecer um desenho de Federação trina, dando aos municípios status de entes da Federação semelhante ao dos estados e da União. Essa definição constitucional foi acompanhada de descentralização fiscal e de políticas públicas sem precedente na história do país. Soma-se a isto o fato de que um grande número de municípios brasileiros tem baixa capacidade institucional, dificuldades de ordem técnica, gerencial, financeira e mesmo de escala para o desempenho de suas competências. Situação semelhante é observada em alguns estados, em especial naqueles recém-constituídos, que também possuem baixa capacidade técnica e gerencial. Tanto nos casos de extensas aglomerações urbanas como nos pequenos e micro- municípios, os mecanismos de coordenação federativa e intersetorial são essenciais. Alguns temas da agenda dos governos também demandam trabalho cooperado e coordenado em sua

implementação, como aqueles de responsabilidade partilhada, entre eles as políticas de desenvolvimento regional e urbano e as políticas sociais que funcionam de forma sistêmica (CUNHA, 2004; ABRUCIO, 2005).

Esta questão nos remete às observações de Abers e Keck (2013) ao abordarem que a construção institucional pode ser complexa quando requer ações em vários níveis subnacionais, em múltiplas arenas e com múltiplos atores. Isso fragmenta os processos políticos, e permite que diferentes espaços de decisão se sobreponham e estejam conectados, muitas vezes de formas surpreendentes, no qual se exige maior governança. Tais sobreposições e conexões, prevalentes no sistema político brasileiro, são problema comum em políticas públicas, especialmente em sistemas federativos e em políticas intersetoriais. Desta forma, em ambientes institucionais entrelaçados de tal maneira, um dos principais desafios para o funcionamento do governo passa pela busca por um nível mínimo de comunicação, articulação e coordenação entre os diversos atores envolvidos, e a produção de coerência e complementaridade entre suas ações (ABERS; KECK, 2013; PIRES, 2015).

Dentro dessa perspectiva, o desenvolvimento de arranjos institucionais mais elaborados é necessário para considerar a maior complexidade nos processos de gestão de políticas públicas. Ainda mais no caso de países em desenvolvimento, federativos e de grande extensão territorial como o Brasil, no qual o ambiente institucional para a formulação, coordenação e execução de políticas no Brasil sofreu uma série de modificações nos últimos anos (Lotta e Vaz, 2015).

Nesse contexto de maior complexidade na gestão pública, a perspectiva de análise de arranjos institucionais pode contribuir para o maior entendimento dos fatores que influenciam a governança e determinam a capacidade do Estado de produzir políticas públicas.

Para melhor compreensão das definições de arranjos institucionais, faz-se necessário o conhecimento dos seus conceitos. Davis e North (1971) definem arranjos institucionais como um “conjunto de regras que governa a forma pela qual agentes econômicos podem cooperar e/ou competir”. Neste aspecto vale lembrar a distinção entre ambientes e arranjos institucionais, conforme destaca Fiani (2013). Se o ambiente institucional diz respeito às regras gerais que estabelecem o fundamento para o funcionamento dos sistemas político, econômico e social, os arranjos institucionais, por seu turno, compreendem as regras específicas que os agentes estabelecem para si nas suas transações econômicas ou nas suas relações políticas e sociais particulares. Assim, o ambiente institucional fornece o conjunto de parâmetros sobre os quais operam os arranjos de políticas públicas. Estes, por sua vez, definem a forma particular de coordenação de processos em campos específicos, delimitando quem está habilitado a

participar de um determinado processo, o objeto e os objetivos deste, bem como as formas de relações entre os atores. Por isto, entende-se que a relação entre as instituições e o desenvolvimento de políticas públicas não devem se ater ao ambiente institucional, mas, sobretudo, aos arranjos de políticas específicas (GOMIDE; PIRES, 2014).

Neste trabalho será adotado o conceito de arranjo institucional conforme destacado por Gomide e Pires (2014, p.19). Para os autores, ao longo dos últimos anos, o conceito de arranjos institucionais passa a ser entendido como o “conjunto de regras, mecanismos e processos que definem a forma particular como se coordenam atores e interesses na implementação de uma política pública específica”.

De acordo com Gomide e Pires (2014), portanto, arranjos institucionais relacionam-se com a necessidade em se estabelecer uma governança que articule diversos atores envolvidos em uma ação pública. Conforme os autores, a análise de arranjos institucionais de políticas públicas consistiria em uma chave para identificar e analisar a capacidade do Estado de implementar políticas públicas.

Ao analisar as tendências de inovação em arranjos institucionais brasileiros nas últimas décadas e considerando a literatura sobre o tema, Lotta e Favareto (2016) apontam quatro componentes que têm sido experimentados, em graus e formas diferentes, nesses distintos arranjos, e que podem ser usados como elemento analítico para compreender as inovações que têm sido realizadas nas políticas públicas. Essas quatro dimensões analíticas são as seguintes: (i) articulação de temáticas intersetoriais (dimensão horizontal), (ii) relações federativas (dimensão vertical), (iii) dimensão territorial no que se refere a forma como as políticas são produzidas e (iv) dimensão da participação social (participação de atores não estatais).

Quando o desenho da intersetorialidade de uma política social, de caráter complexo como o Programa Água para Todos (APT), abarca os níveis locais, é de fundamental importância o tipo de instâncias de comunicação intergovernamental. A suposição é que quanto mais canais bidirecionais (dispositivos de governança comum entre níveis governamentais) que permitam a pactuação com os próprios níveis subnacionais e se inclinem a um modelo mais interativo de relações intergovernamentais, mais será favorecida a abordagem integral dos problemas (CUNILL-GRAU, 2014).

Os arranjos institucionais desempenham papel importante como limitadores ou facilitadores da ação intersetorial. Isso é especialmente essencial, no caso da intersetorialidade, não somente porque o ambiente institucional costuma incluir sistemas amplos de relações que cruzam distintas áreas jurisdicionais (BRYSON et al., 2006), mas porque os propósitos

colaborativos, a estrutura e os resultados podem ser afetados pelo marco institucional de cada setor governamental, conforme observa Cunill-Grau (2014).

A literatura sobre os arranjos institucionais também aponta a dimensão das relações federativas como central para compreender a coordenação entre atores de diferentes entes federativos na promoção de políticas públicas. Essa variável é ainda mais central no caso de países com lógicas federativas tão complexas como o Brasil, no qual os entes têm diferentes responsabilidades sobre as políticas (OLIVEIRA; LOTTA, 2017). Tanto a interdependência quanto a autonomia ocorrem em graus variados numa federação (ABRUCIO, 2005), fazendo com que as relações federativas se desdobrem em arranjos institucionais e movimentos cooperativos e competitivos entre os entes constituintes, o que torna a implementação de políticas sociais de combate à pobreza, como o Programa Água para Todos, fenômeno complexo, que se desenvolve em diversas arenas e etapas, com o envolvimento de múltiplos atores e interesses.

De acordo com Lotta e Favareto (2016), a dimensão intersetorial, ou horizontal, considera a articulação entre diferentes setores nos processos de formulação, implementação, monitoramento e avaliação das políticas. A dimensão federativa, ou vertical, considera a incorporação das relações entre os diferentes entes federativos na tomada de decisão. A dimensão da participação social incorpora diferentes atores não estatais nos processos decisórios. A dimensão territorial trata da relação das ações públicas com as peculiaridades do território no qual a política pública está destinada a ser implementada.

A primeira dimensão analítica considerada é a intersetorialidade ou articulação horizontal. Refere-se à integração de diversos setores, visando à resolução de problemas sociais complexos cuja característica fundamental é a multicausalidade. A intersetorialidade implica não somente que os diversos setores do governo entreguem a um mesmo público específico os serviços que são próprios de cada um, mas também, de maneira articulada, atendam às necessidades sociais, ou previnam problemas que tenham na sua origem causas complexas, diversas e relacionadas entre si. A suposição é, portanto, que não basta a cada setor fazer o que lhe corresponde, de acordo com suas respectivas atribuições. Implica também que os setores “entrem em um acordo” para trabalhar “conjuntamente” visando a alcançar uma mudança social em relação à situação inicial (CUNILL-GRAU, 2014). A intersetorialidade se define pela medida em que diferentes programas ou temas de políticas públicas são organizados horizontalmente permitindo integração entre eles. Assim, ela pode se concretizar em graus diferentes nas políticas, variando em que medida de fato os temas estão articulados e como se concretizam, ou seja, se existe uma efetiva integração ou apenas justaposição de políticas

(BRYSON et al., 2006; BRONZO, 2007, 2010; BICHIR, 2011; CUNILL GRAU, 2014; VEIGA; BRONZO, 2014; LOTTA; FAVARETO, 2016).

De acordo com esses autores ocorrem diferentes graus de materialização da intersetorialidade. Algumas experiências referem-se ao processo de formulação das políticas públicas, considerando a integração de temas no processo de planejamento; outras tornam-se concretas em uma ação coordenada no processo de implementação; e há outras que realizam intersetorialidade apenas no processo de monitoramento conjunto de diferentes ações relacionadas a um mesmo tema, região ou população. Os autores também observam que a intersetorialidade é tanto mais efetiva quanto mais a integração for pensada desde o planejamento até o monitoramento das políticas públicas. Assim, experiências que consideram intersetorialidade apenas como o processo de monitoramento conjunto de experiências diferentes têm poucas chances de avançar em termos de integração efetiva das políticas buscando resolução de problemas complexos.

A segunda dimensão analítica importante desses arranjos é a forma como se estabelecem as relações federativas – entre Governo Federal, governos estaduais e governos municipais – o que leva à dimensão de verticalidade. A questão aqui é analisar como os diversos entes federativos se relacionam e se responsabilizam no processo de formulação e execução das políticas públicas, conforme proposição de Arretche (2012). Para compreender como os arranjos institucionais se diferenciam em termos de relações federativas é importante analisar como os arranjos desenham a divisão de responsabilidades e de autonomia decisória nas seguintes perspectivas: normatização (quem determina as regras / quem faz as leis); financiamento (como ocorre o financiamento do programa) e execução das políticas (quem executa e o alcance territorial da implementação). Essas podem sugerir como desenhos diferentes de arranjos levam a graus de autonomia ou integração distintos no federalismo brasileiro conforme destaca Arretche (2012).

A terceira dimensão analítica diz respeito à ampliação da participação social na formulação e no controle das políticas, que, em conjunto com a transparência, reforça a necessidade do Executivo de se articular com outros atores (GOMIDE; PIRES, 2014). A dimensão da participação social incorpora diferentes atores não estatais nos processos decisórios. Busca compreender como os diversos atores sociais são considerados no processo de formulação, implementação, monitoramento e avaliação de políticas públicas. A CF/1988 trouxe a participação como elemento central para a democratização das políticas e o aumento de sua efetividade. Há aliada a isso uma percepção de que amplas negociações e debates entre a pluralidade de atores envolvidos contribuem também para a coerência interna das políticas.

A participação pode ser entendida como parte do processo e do próprio conteúdo de uma renovada noção de desenvolvimento (PIRES; VAZ, 2014). Os autores também destacam, em trabalhos anteriores, as seguintes perspectivas analíticas a considerar nas variações no funcionamento e na qualidade de Instituições Participativas – IPs: o desenho institucional dos canais participativos, os contextos e o ambiente institucional nos quais se inserem as IPs e os atores, suas capacidades e estratégias de atuação. Estas perspectivas contribuem para a percepção de que atores participam da formulação, implementação e do monitoramento da política pública. Se, por um lado, a instituição de canais de participação cria novas oportunidades de acesso para atores diversos ao processo de decisão sobre políticas públicas, por outro, o perfil, as características, os repertórios e as formas de atuação desses atores – sejam eles da sociedade civil, do Estado ou do mercado – condicionam em grande medida o funcionamento e sucesso das IPs (PIRES et al., 2011). Nesse aspecto, Midlej (2013) aponta que a ocupação de espaços institucionalizados (como os conselhos e comitês) é uma maneira de a sociedade intervir nas decisões públicas. A autora indica que a adoção de um viés mais participativo irá requerer a construção de uma nova forma de administração pública, modificando sua estrutura e o relacionamento com agentes e administrados (MIDLEJ, 2013).

A quarta dimensão analítica refere-se à territorialidade, que procura verificar em que medida as políticas incorporam lógicas territoriais na sua concepção e implementação. A abordagem territorial considera que fatores locais podem condicionar o êxito de investimentos realizados na região. A literatura sobre o tema sugere a relação com três fatores da vida social local: (a) intermunicipalidade, ou seja, uma escala geográfica de planejamento dos investimentos mais ampla do que os municípios e mais restrita dos que os estados, já que o tamanho reduzido e as limitadas capacidades institucionais de pequenos municípios ou equivalentes torna-se um fator restritivo à emergência de projetos de médio e longo prazo, daí a importância de verificar como a política lida com a dimensão territorial; (b) uma perspectiva intersetorial, capaz de articular interesses e capacidades coerentes com a heterogeneidade das estruturas sociais locais, de forma a possibilitar a efetiva participação do poder público e da sociedade civil local nesses espaços, ou seja, observar se há espaços de participação territoriais previstos na política pública; (c) permeabilidade à participação dessas forças sociais nos mecanismos de planejamento e gestão, ou seja, a construção de articulação, diálogo, integração com outras instâncias participativas já existentes nos territórios (FAVARETO, 2012; LOTTA; FAVARETO, 2016; FAVARETO; LOTTA, 2017).

A utilização dessas dimensões de forma articulada enquanto um modelo analítico tem sido aplicado na análise de diferentes arranjos institucionais de políticas públicas nos três entes

federativos em diversas áreas sociais e de infraestrutura (SOTERO et al., 2019). Este modelo analítico permite observar variáveis importantes para entender a definição dos atores envolvidos, como se efetiva a governança, os graus de autonomia e os processos decisórios (LOTTA; FAVARETO, 2016).

Considera-se que a análise das quatro dimensões de forma integrada confere maior clareza no entendimento do funcionamento do arranjo institucional e da construção de capacidades relacionais no Programa Água para Todos. De acordo com Lotta e Favareto (2016) a análise dessas diferentes dimensões permite compreender as especificidades de cada arranjo institucional e em que medida eles avançam em termos de coordenação de diferentes atores na produção da política pública.

O quadro 1 traz uma descrição resumida das quatro dimensões analíticas conforme modelo proposto por Lotta e Favareto (2016).

Quadro 1: Dimensões de análise de arranjos institucionais

Categorias Subcategorias Aspectos a serem investigados

INTERSETORIALIDADE

Formulação Há integração na fase de formulação da política?

Implementação Há Integração na fase de implementação da política?

Monitoramento Há Integração na fase de monitoramentoda política?

RELAÇÕES FEDERATIVAS

Normatização Quem determina as regras / quem faz as leis?

O que se prevê no pacto federativo em termos de competências constitucionais neste tema?

Financiamento Como ocorre o financiamento da política?

Quem financia a política? (gov. federal, estadual ou municipal?)

Qual o instrumento de financiamento?

Implementação das políticas Quem implementa a política? (gov. federal, estadual ou municipal?)

PARTICIPAÇÃO SOCIAL

Formulação Que atores sociais participam da formulação da política?

Implementação Que atores sociais participam da implementação da política?

Monitoramento Que atores sociais participam do monitoramento da política?

DIMENSÃO TERRITORIAL

Articulação Intermunicipal Como a política lida com a dimensão territorial?

Existência de instrumentos de planejamento e gestão numa escala intermunicipal.

Criação de instâncias de participação no território

Há espaços de participação territoriais previstos na formulação da política?

Incorporação de instâncias de participação já existentes no território

Há formas de articulação com outras instâncias participativas já existentes (pré-existentes) nos territórios? Fonte: Elaboração a partir de Lotta e Favareto (2016)

No contexto de um ambiente institucional caracterizado pela complexidade e por arranjos institucionais que envolvem diferentes setores da administração pública, são necessárias também capacidades político-relacionais para a inclusão de múltiplos atores, o processamento dos conflitos decorrentes e a formação de apoio político para os objetivos e as estratégias a serem adotadas.

Desta maneira, na próxima seção, são discutidos aspectos do referencial teórico relacionado às capacidades estatais na produção de políticas públicas com ênfase na abordagem relacional e suas dimensões mais importantes para a análise do ProgramaÁgua para Todos.