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Data e horário da entrevista: 8 de agosto de 2012, às 15 horas Local da entrevista: escritório do entrevistado, no Rio de Janeiro-RJ Entrevistadora: Paula Spieler

Arthur Lavigne nasceu em 22/01/1941, na cidade de Barbacena, Estado de Minas Gerais. Foi aluno da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro. Durante o seu 1º ano na faculdade, ocorreu o Golpe Militar, que depôs o Presidente João Goulart. Nessa ocasião, vários colegas de turma seus foram presos. Lavigne foi trabalhar num escritório de advocacia criminal, que defendia presos políticos, a convite de seu colega de faculdade, Técio Lins e Silva. Naquela época, o pai de Técio, Doutor Raul Lins e Silva, um dos mais conceituados advogados criminalistas então, havia recém- -falecido. Juntamente com Doutor Evandro Lins e Silva, Doutor Raul fundou seu escritório 30 anos antes, e se firmou como referência na defe- sa de presos políticos da ditadura Vargas. Em 1980, Lavigne fundou seu próprio escritório, e continuou a atuar na defesa de presos políticos, além de advogar em todas as demais áreas do Direito Penal. Nessa mesma época, Lavigne se tornou Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, onde seu maior legado foi a constituição, em todo o País, das Comissões de Direitos Humanos da OAB, motivada pelo evento trágico da carta-bomba, enviada à sede da OAB-RJ em 1980, a qual matou a secretária-chefe, D. Lyda Monteiro. Lavigne foi designado pelo Conselho Federal como seu representante, para acompanhar o inquérito.

Doutor Arthur, o senhor poderia nos contar sobre onde es- tudou Direito e em qual período?

Estudei Direito na antiga Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, atualmente Universidade Federal do Rio de Janei- ro, de 1964 a 1968.

O senhor participava do movimento estudantil?

Eu participei do movimento estudantil, pois naquela época, o Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (CACO) era muito movimentado, e a Faculdade Nacional de Direito já tinha tradição como a faculdade onde havia um grande engajamento e intensos protestos contra o Golpe Militar.

Quando eu me formei em 1968, não houve a solenidade da for- matura, porque a polícia política proibiu o evento.

Como era o clima na faculdade na época do Golpe?

A faculdade já tinha uma participação muito grande dos estu- dantes, através dos movimentos de apoio ao João Goulart e às reformas propostas por ele. Naquele período, desde quando o Jânio Quadros re- nunciou a Presidência, e o Jango acabou assumindo em seu lugar, já ha- via uma manifestação muito nítida dos militares contrários à posse do então Vice-Presidente. Então, mesmo antes do Golpe, o movimento polí- tico na faculdade era muito intenso.

No dia do Golpe, muitos alunos da faculdade se dirigiram à Ci- nelândia, em passeata, e foram reprimidos a tiros.

Como era atuar no Superior Tribunal Militar? Havia espa- ço para fazer a sustentação?

A Justiça Militar sempre foi muito receptiva e até cerimoniosa com os advogados de presos políticos. Nessa instância, havia os juízes togados e os juízes militares e eles sempre foram muito respeitosos com os advogados. Pode-se dizer que a advocacia na Justiça Militar, nos cri- mes da Lei de Segurança Nacional, era muita frutífera, pois os advogados acabavam por conseguir muitas e muitas absolvições em razão da falta de provas efetivas nos processos. De um modo geral, as acusações nos pro- cessos eram baseadas em depoimentos conseguidos sob tortura, e a Justi- ça Militar, usualmente, não as considerava como provas válidas. Comu- mente, não havia prova documental ou testemunhal.

Eram julgamentos muitos longos, que duravam às vezes dias. Os processos mais difíceis eram os processos de julgamento de assaltos a bancos e sequestros.

Como se davam os julgamentos na Justiça Militar?

De um modo geral, os advogados não tinham participação no inquérito policial militar, que era realizado dentro de dependências mili- tares, sem a presença de advogado, que nunca acompanhava o cliente nessa fase. Os advogados só tomavam conhecimento dos fatos e, mesmo das organizações tidas como subversivas, após terminado o inquérito.

Finalizado o inquérito policial militar, os autos eram encami- nhados à Justiça Militar, onde um procurador oferecia uma denúncia para iniciar o processo. Somente após essa fase é que os advogados tinham acesso aos inquéritos.

Apenas em casos de assaltos a bancos ou ações violentas é que, eventualmente, poderia haver testemunha presencial do fato.

O artigo 9º1 do Código de Processo Penal Militar estabelece que

as provas válidas para fins de condenação, são as provas constituídas em juízo, ou seja, as provas colhidas durante a instrução criminal na fase judicial. Assim, as declarações obtidas mediante violência não valiam para efeito de uma condenação criminal.

Portanto, sob o ponto-de-vista jurídico, a prova feita em fase de inquérito não vale.

Normalmente, a defesa feita pelos advogados abordava, pri- mordialmente, esse aspecto, ou seja, que a prova para a condenação deve- ria ser, apenas, aquela colhida na fase da instrução criminal judicial. No entanto, nos casos de maior gravidade, como os já acima referidos – as- saltos, sequestros, morte – a confissão obtida no inquérito na prática era considerada para o fim de condenação.

Desses casos todos, tem algum que o senhor considere o mais emblemático, por algum motivo?

Um dos casos mais trabalhoso que tive, e que mais me marcou, foi o processo da Inês Etienne Romeu2. Inês respondeu a processo da Lei

1 DEL 1.002/69. “Art. 9º. O inquérito policial militar é a apuração sumária de fato, que, nos têrmos legais, configure crime militar, e de sua autoria. Tem o caráter de instrução provisória, cuja finalidade precípua é a de ministrar elementos necessários à propositura da ação penal. Parágrafo único. São, porém, efetivamente instrutórios da ação penal os exames, perícias e avaliações realizados regularmente no curso do inquérito, por peritos idôneos e com obediência às formalidades previstas neste Código”. 2 Inês Etienne Romeu era militante da VAR-Palmares, e participou do sequestro do

de Segurança Nacional, que dizia respeito ao sequestro do embaixador da Suíça, Giovanni Bucher. Em primeira instância, foi defendida pelo de- fensor público e condenada à pena de morte. Assumi o caso desde então, com o recurso de apelação ao Superior Tribunal Militar, em Brasília.

O recurso foi provido, em parte, e a pena fixada em 30 anos de prisão. O Ministério Público não se conformou e embargou a decisão para o retorno à pena máxima. A questão jurídica em debate era a ocor- rência ou não da coautoria no fator morte. Isto porque, no sequestro, hou- ve a morte de um policial, e se discutia se a pena de homicídio estendia- -se a todos que participaram do sequestro ou se tão somente ao autor do disparo. A pena do crime de sequestro seria aplicada a todos.

A jurisprudência do Tribunal era a mais favorável. A pena foi confirmada com o não provimento dos embargos da Procuradoria da Jus- tiça Militar.

Nesta ocasião, foi promulgada nova Lei de Segurança, que es- tabelecia que a pena máxima deveria ser de 8 anos. Interpus o recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal, e o Ministro Relator, Mi- nistro Moreira Alves, entendeu, nos autos, que deveria ser feita uma mé- dia entre a pena da lei revogada de 30 anos e a da lei nova de 8 anos de prisão. Mediante petição, evidentemente desisti do recurso, mas o Mi- nistro despachou no sentido de ser submetida a desistência ao pleno do STF. Deixei o recurso extraordinário de lado, e requeri ao juiz de primei- ra instância a compatibilização da pena à lei nova. A Auditoria do Exér- cito, em dois dias, ajustou a pena de Inês a 8 anos. Em razão de já ter ela cumprido este tempo, foi solta em 1979.

Qual era o instrumento utilizado para soltar o preso, já que não havia o habeas corpus?

O instituto do habeas corpus havia sido suspenso, e o instru- mento utilizado para libertar os presos políticos eram as petições endere- çadas às autoridades.

Como foi sua prisão?

Fui de fato preso pelo DOI-CODI e fiquei dois dias retido no quartel do Exército, no bairro da Tijuca. Na verdade, não acredito que

do Fleury e, também sofreu violências na Casa de Petrópolis. Para mais informações a seu respeito, cf. glossário.

minha prisão tenha decorrido da minha advocacia de presos políticos. Na véspera, houve um julgamento no Supremo Tribunal Federal, em Brasí- lia, no qual houve muitas denúncias de torturas. Ao terminar a sessão, o Presidente do STF, Ministro Aliomar Baleeiro, mandou um bilhete para mim e para o Técio, convidando-nos a ir a sua residência, juntamente com ele, Ministro, em seu próprio carro. Ao final da conversa, ele man- dou o carro dele nos levar ao aeroporto de Brasília.

Ao chegar à minha casa, no Rio de Janeiro, tomei conhecimento de que a polícia política tinha estado ali, revistado a casa toda e levado alguns livros. Num dado momento, os policiais entraram no quarto de minhas filhas, Cristiana e Paula, que tinham então seis e cinco anos de idade, e dormiam em suas camas. Os policiais levantaram com a ponta das metralhadoras as cobertas das camas. Em face da reação feroz de Irene Maria, mãe das meninas, eles se retiraram e avisaram que voltariam depois, o que de fato aconteceu no momento em que eu chegava de via- gem. Levaram no entanto presa minha cunhada Vera, uma adolescente.

Irene Maria passara anteriormente por momentos difíceis, pois seu pai Abelardo Mafra, Coronel do Exército Paraquedista e ex- -governador do então Território de Rondônia fora preso no dia do Golpe Militar e passara três meses desaparecido. Agora com a irmã e marido presos continuava ela com incansável valentia e altivez.

Levaram-me para o DOI-CODI, onde fui colocado num corre- dor, encapuzado. Momentos depois, chegou outro preso, que foi posto também no corredor, encapuzado, ao meu lado. Era o médico Adão Perei- ra Nunes3. A toda hora, um dos policiais vinha a nós, e aos berros per-

guntava nosso nome. Num determinado momento, já sabendo que tinha a mim do seu lado, por ter ouvido o meu nome, Adão Pereira Nunes suge- riu que aquele que fosse liberado primeiro, avisasse à família do outro de sua situação. Quando fui solto, fui levado ao Ministério do Exército na presença do Coronel Fiúza de Castro4, que simplesmente me devolveu os

livros apreendidos, e me informou que eu estava solto.

3 Adão Pereira Nunes era um médico que trabalhou na Rede Ferroviária Federal, e

também era ativista político. Foi preso pelo exército em Raiz da Serra, para ser levado ao Ministério da Guerra e ser interrogado. Informações disponíveis em: <http//:www. saracuruna.com/site/historia/437-historias-do-bairro-de-saracuruna>. Acesso em 10 out. 2012.

4 Adyr Fiúza de Castro era Diretor do Centro de Informações do Exército, durante o

Governo Costa e Silva. Era conhecido por ser radical, sendo favorável ao uso de tortu- ra, inclusive psicológica. O CIE tinha a função de infiltrar agentes em movimentos

Voltei naquela tarde caminhando para o escritório. O problema era que ele estava vazio e eu não tinha as chaves.

O senhor sofreu algum tipo de ameaça?

Nessa época, havia uma atuação muito grande da linha dura da repressão política. Muitos advogados da América Latina que passavam pelo Brasil, em fuga da perseguição política, em direção à Europa, nos contavam que muitos colegas no Chile e na Argentina estavam sendo presos e mortos. No Rio de Janeiro, uma bomba estourou no prédio da OAB. Ela era destinada ao Presidente da Ordem, Eduardo Seabra Fagun- des, mas quis o destino que o veículo da bomba, uma carta endereçada ao Presidente, fosse aberta por sua secretária, Dona Lyda Monteiro, que morreu instantaneamente.

Eu, na qualidade de Conselheiro Federal, fui designado por este órgão para representar a Ordem no acompanhamento do inquérito instau- rado pela Polícia Federal. Pude, então, constatar que as apurações que se desdobravam nada mais eram do que meros disfarces, pois não havia a real intenção de se apurar o crime. Esses fatos, e outros mais, faziam pairar sobre os advogados de presos políticos constante sensação de amea- ça que, no entanto, jamais foi forte o suficiente para fazer com que ditos advogados recuassem ou desistissem de seu ofício.

Falando na Ordem, qual foi o posicionamento da OAB du- rante todo o período militar? Teve alguma oscilação no posiciona- mento?

A Ordem dos Advogados sempre teve um posicionamento co- rajoso, de denúncias e atuação intensa na defesa dos presos políticos e de seus direitos humanos. Esse posicionamento da OAB foi constante, sem qualquer recuo ou oscilação.

Em Brasília, houve incidentes de violência também contra o prédio da Ordem. Além disso, o então Presidente da seccional de Brasília, Maurício Correa, sofreu constrangimento pela instauração de um inqué-

estudantis e sindicais. Quando presos, revelavam senha combinada com os superiores. Também plantavam bombas em focos esquerdistas, como teatros e faculdades. Para mais informações, vide glossário.

rito pelo General Newton Cruz. Esse inquérito foi instaurado porque o Maurício Correa, discursando no Comício das Diretas, chamou o General de psicopata, dizendo que ele deveria ser levado para o Presídio da Papuda.

O General reagiu instaurando o inquérito, e declarando que não permitiria a presença de advogados acompanhando Maurício em seu de- poimento no prédio da Polícia do Exército, situado na Esplanada dos Ministérios. Fui, então, designado pelo Conselho Federal da Ordem, para defender o Maurício Correa no inquérito. Redigi um habeas corpus e me dirigi ao Presidente do Superior Tribunal Militar, Ministro Heitor Luis Mendes de Almeida, solicitando o trancamento do inquérito policial mi- litar.

Expliquei ao Ministro que aquele não era um caso que merecia tanta importância pois, afinal de contas, era um comício político de elei- ções de parlamentares. Também expliquei ao Ministro que não havia qualquer interesse dos advogados, menos ainda da classe política ou do País, de que houvesse, em pleno clima de abertura, tal retrocesso de im- pedir que o Presidente da Seccional da Ordem de Brasília fosse depor acompanhado de seu advogado. O Ministro Heitor Luis chamou o Procu- rador-Geral e pediu para que ele fosse conversar com o General Newton Cruz, porque ele deveria deferir o habeas corpus na hipótese da intransi- gência do General com relação ao acompanhamento do Maurício Correa em seu depoimento no inquérito policial militar instaurado. O Procura- dor-Geral retornou informando que o fato estava resolvido, e que o de- poente poderia ir acompanhando de seu advogado.

No dia determinado, Maurício Correa foi prestar seu depoi- mento, acompanhado por mim e pelo Presidente do Conselho Federal – Mário Sérgio Duarte Garcia. Em suas declarações, Maurício Correa con- firmou que havia se referido ao General daquela forma. O depoimento foi encerrado em clima de cortesia e respeito. No dia seguinte, os jornais deram grandes destaques às declarações de Maurício Correa. Ele era can- didato a senador constituinte e não estava tão bem nas pesquisas eleito- rais. Após estes fatos passou para o primeiro lugar e foi eleito Senador por oito anos. Após foi Ministro da Justiça, Ministro do Supremo Tribu- nal Federal e Presidente do Supremo Tribunal Federal.

Um dos processos de Lei de Segurança Nacional mais impor- tantes no meu entendimento foi o julgamento de acusados de organizar e participar do Partido Comunista Brasileiro, composto por ilustres inte-

lectuais, políticos, Professores, artistas e estudiosos do panorama político daquela data. A mim coube a defesa do filósofo e Professor Leandro Konder.

Os acusados eram muitos e o julgamento durou vários dias na Auditoria Militar da Marinha. No decorrer do processo quando todos os acusados estavam presentes, Leandro Konder, sempre sereno, dedicou-se a ler livros durante as audiências. Lia tão alheio a tudo a seu redor, que perguntei em dado momento o que tanto lia. Respondeu-me que estava lendo a doutrina marxista. Percebendo o espanto nos meus olhos tranqui- lizou-me acrescentando: “Não se preocupe, está em alemão”.

Para finalizar, como é que o senhor avalia a instauração da Comissão da Verdade?

O tempo passou e está na hora de escrever a História. ***