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Contributo para uma leitura da devoção e espiritualidade marianas: aproximação teológico-prática

1. Articulação entre cristianismo e tradição

A cristianização das populações europeias não conseguiu apagar as diferentes tradições étnicas. A conversão ao cristianismo deu lugar a simbioses e sincretismos religiosos que, frequentemente, ilustram brilhantemente a criatividade própria das culturas “populares”, agrárias ou pastoris. Algumas referências do “cristianismo cósmico” de certos cultos, mitos e símbolos relacionados com as pedras, as águas e a vegetação são bem exemplo disso. Apesar da sua conversão, embora por vezes superficial, as numerosas tradições étnicas e religiosas, bem como as mitologias locais, foram homologadas, isto é, incorporadas na mesma “história santa” e expressas na mesma linguagem, as linguagens da memória cristã. Assim é que, por exemplo, certos mitos e cultos referentes às deusas passaram a fazer parte do folclore religioso da Virgem Maria. Parece-nos, deste modo, podermos afirmar que as inúmeras formas e variantes do legado não cristão foram sistematizadas num mesmo corpus mítico-ritual externamente cristianizado.

Para chegar a compreender o mistério de Maria e a sua função dentro do projecto salvífico, teve a Igreja muitos anos de trabalho teológico, exegético e pastoral, o qual nem sempre foi fácil. Teve, e terá de reconhecer que se encontra perante um mistério que se sobrepõe ao entendimento humano. No caminho da história do povo de Deus, as graças sobrenaturais, foram bandeira de muitos movimentos dentro e fora da comunidade eclesial, propondo-se muitas vezes como modelo de realidades difíceis de entender e aceitar na sua pessoa. A sua imagem enalteceu-se mas no quadro de muitas ambiguidades. Esta situação foi provocada, na maioria dos casos, pela separação do

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mistério de Maria do mistério de Cristo. Separada do mistério de Cristo e da salvação, a sua figura foi carregada de adornos, privilégios, dons, títulos, os quais, ainda que possam considerar-se justos e reais para a Mãe de Deus, conduzem a uma figura algo difícil de reconhecer. Esta foi a causa de muitas deformações, tanto na sua compreensão humana e teológica, como cultural. Entre toda esta roupagem sumptuosa, perdeu-se, infelizmente, o seu papel na evangelização, o qual deixou de ser modelar, para se limitar a ser por vezes um objecto de admiração e ornamentação.

Sem dúvida que tudo isto foi, talvez, provocado porque a mensagem evangélica perdeu algum significado ao longo da nossa história; vazio de significado o culto cristão chegou a construir, de algum modo um culto paralelo a Maria. Prova isso a iconografia e a arte religiosa, incluindo o canto. Só quando os dois ministérios, o de Jesus e o de Maria se apresentam unidos na evangelização e conduzem ao culto e à oração, é possível falar de uma nova evangelização. Nesta nova evangelização já não é possível que Maria seja só um “apêndice” e que a piedade e a oração mariana não sejam um todo como única espiritualidade cristã. Maria não tem e nem pode ter um culto separado, nem uma espiritualidade à margem do mistério de Cristo porque ao reconhecermos Maria como mãe e intercessora, lhe conferimos o seu verdadeiro lugar evangélico.

Na proposta de re-evengelização ou nova evangelização devemos apresentar de novo Maria com Jesus e Maria com a Igreja. De modo que, como modelo, todo ele seja como ela própria o foi e que o fim da nossa vida evangélica, que consiste em escutar e obedecer ao Senhor seja feito como ela o fez. Com esta nova visão de Maria, podemos confiadamente iniciar o caminho de uma nova evangelização. Por um lado, ajudará a conservar a serenidade nas provas, por outro lado, ao tê-la como modelo, viveremos a nosso compromisso com Deus, da mesma maneira que ela, com fé, esperança e caridade, confiada no Deus “para o qual nada é impossível” e que unicamente espera de nós a resposta serena: “Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo tua palavra!” (Lc 1,38)

169 2. Articulação entre religiosidade popular e simbólico

A religiosidade popular é tão antiga como o próprio Homem. Tem consciência de que não se basta a si mesmo; está dependente de alguém; que esse alguém é um ser transcendente, que não se encontra nenhum igual nas suas relações quotidianas, pois todos são contingentes, limitados, efémeros, passageiros. Mas não é só desta religiosidade natural que falamos aqui. Aqui falamos dessa religiosidade que herdámos dos nossos antepassados, que faz com que sejamos nós e não outros. É a nossa matriz. A nossa própria identidade.

Na Igreja, a valorização da religiosidade popular, emergente do Concílio Vaticano II, está ligada à necessidade de renovação pastoral. Renovação, isto é, erradicação de incorrecções, desvios e adaptações aos valores culturais do mundo contemporâneo, à comunidade a quem é dirigida a mensagem de salvação.

Foi na América Latina, na Conferência de Medellin, em 1968, por Paulo VI, para aplicação do Concílio à escala continental, que se tomou consciência da religiosidade popular que o povo latino-americano herdara dos povos ibéricos, e que era necessário ter em conta a partir daí para uma nova evangelização. Na reflexão de Medellin a religiosidade popular é o resultado de uma síntese entre a fé cristã nascida da evangelização e a cultura dos povos evangelizados. E tal como afirma, mais tarde, o Documento de Puebla nos números 1 a 11:

Por religiosidade popular entendemos o conjunto de fundas crenças seladas com Deus, das atitudes básicas que dessas convicções derivam e as expressões que se manifestam. Trata-se da forma ou da existência cultural que a religião adopta num povo determinado. (Puebla, 1 a 11)

E ainda acrescenta no número 450:

A religiosidade popular não só é objecto de evangelização, mas que, enquanto contém incarnada a Palavra de Deus, é uma forma activa com a qual o povo se evangeliza continuamente a si mesmo. (Puebla, 450)

O tema da religiosidade é inseparável do que, na linguagem popular é, comummente designado como crença, ou seja, ideias ancestrais acerca da possibilidade do destino ser alterado por seres sobrenaturais ou por actos humanos, como maus-

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olhados, pragas, maldições e bruxarias, segundo os mecanismos próprios do simbólico.

Há uma espécie de continuidade entre o mundo sobrenatural e o mundo humano.76

Por outro lado a religiosidade popular traduz a realidade de uma experiência universal, porquanto está interiorizada em cada pessoa, na cultura de um povo e nas suas diversas manifestações colectivas. A visão total da transcendência, o conceito de natureza, de sociedade e de história, através de mediações cultuais, exprime-se numa síntese característica de grande significado humano e espiritual, no seio do povo. Assim, é nossa opinião, que ou a religião compreende e vive plenamente o simbólico ou deixa de existir, já que também ela não é da ordem da razão mas, sim, dos sentimentos e dos meios encontrados no pensamento mítico para dizer o sentimento do mundo. Devemos entender a religiosidade popular como uma origem de símbolos que podem ser aproveitados como fonte de inspiração, contra este nosso tempo de dispersão da vida moderna. Mais do que ser olhada com desconfiança e ser alvo de pouca consideração, o caminho a seguir será reconhecer, correcta e com sabedoria, o valor da sua riqueza, as potencialidades que guarda e a intensidade de vida cristã que pode suscitar. É usá-la para que na energia do simbolismo que encerra e no entendimento do mundo que veicula, transmita a transcendentalidade da própria experiência humana às gerações futuras.

Na religiosidade popular mariana, profunda e rica de devoção está bem patente a alma do povo alentejano que não se fica pela devoção a Nossa Senhora, uma vez que incarna no mistério de Cristo, abrangendo os diversos ciclos litúrgicos, dum modo especial, do Natal e da Páscoa. É notória a sementeira de Santuários Marianos, espalhados pela Arquidiocese de Évora e as Peregrinações e Festas que neles, regularmente, se realizam. O povo alentejano gosta muito de peregrinações e de procissões. A ele se aplica o que diz o Documento de Puebla a respeito dos latino- americanos:

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Estes dados são confirmados no estudo de M. Lages, A religiosidade popular portuguesa na segunda

metade do século XX (cf. 2000:430). O Quadro 18 apresenta-nos uma grande diversidade de crenças e

respectivas percentagens de adesão. Este resultado pode, ainda, apontar para a verificação de que as concepções ancestrais não são facilmente esquecidas.

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O nosso povo ama as peregrinações. Nelas o cristão simples celebra o gozo de sentir-se no meio de uma multidão de irmãos a caminharem juntos para Deus que os espera. Tal gesto constitui um sinal sacramental esplêndido da grande missão concebida como Povo de Deus peregrino através da história que avança para o Senhor. (Puebla, 450)

Remetemos ainda, uma palavra relativa às orações marianas que até hoje sobreviveram e são rezadas por algumas famílias alentejanas, sobretudo pelas pessoas mais idosas. Orações expressivas, com ritmo próprio dedicadas a Nossa Senhora, constituem-se como um alimento espiritual diário que tem perpassado de geração em geração. Estamos, por vezes, diante de hinos ou poemas onde a adjectivação a Nossa Senhora é rica e variada. Esses atributos, com frequência, inserem Maria no mistério de Cristo, cumprindo-se assim o axioma: “Por Maria a Jesus.”

3. Articulação entre piedade popular e espiritualidade mariana: a festa da

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