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Articulação entre piedade popular e espiritualidade mariana: a festa da Senhora das Candeias no contexto da nova evangelização

Contributo para uma leitura da devoção e espiritualidade marianas: aproximação teológico-prática

3. Articulação entre piedade popular e espiritualidade mariana: a festa da Senhora das Candeias no contexto da nova evangelização

Entendendo a piedade popular como as diversas manifestações culturais que, no âmbito da fé cristã, se exprimem como formas peculiares derivadas da índole de um povo, etnia e da sua cultura, justifica-se que o papa João Paulo II a tivesse considerado

como um “verdadeiro tesouro do povo de Deus”.77 Em correlação com a Virgem Maria,

diversa nas suas expressões e profunda nas suas causas, é um facto eclesial relevante e universal. Desta forma a comunidade mouranense, está certa da santidade e misericórdia de Maria que intercede em seu favor, pelo que imploram, por intermédio de Nossa Senhora das Candeias, com confiança, a sua protecção. Porque a sentem especialmente próxima, celebram com alegria a sua festa, tomam parte activa na sua procissão, cantam alegremente em sua honra, apresentam-lhe ofertas.

Registámos no capítulo II, que a festa de Nossa Senhora das candeias é organizada com a participação da Junta de Freguesia que toma a seu cargo a realização da tourada; da Câmara Municipal, que se responsabiliza pelo restante programa de actividades e variedades; da Paróquia que assume a parte religiosa e de um benfeitor, senhor Manuel Lopes que assume a iluminação do castelo, o fogo-de-artifício e o som.

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JOÃO PAULO II, Homilia proferida durante a celebração da Palavra em La Serena (Chile).

Insegnamenti di Giovanni Paolo II, X/1 (1987). Cit. apud: Directório sobre Piedade Popular e Liturgia,

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Em cada ano a comunidade mouranense celebra com o mesmo esplendor, a mesma afluência, o mesmo ar “domingueiro” a festa em honra de Nossa Senhora das Candeias. Mourão, demonstra com mestria e grandeza, anualmente, a devoção à sua Padroeira e tanto os que aí residem como os que vivem fora acorrem a prestar-lhe a sua homenagem. Todos os actos religiosos são vividos com grande profusão, desde a novena à Missa solene e procissão. Esta última, constitui-se como momento alto e simbólico desta festividade, testemunhada por muitos fiéis, aquando a passagem do andor que transporta a imagem de Nossa senhora das candeias, pelas ruas desta vila alentejana. A ela recorrem, em momentos de aflição, agradecendo-lhe as graças concedidas pela vida e a ela lhe pedem protecção para as suas famílias.

Pensamos que, por estas razões, a maioria dos mouranenses decidiu, já há alguns anos, que a festa deverá ser sempre celebrada no dia 2 de Fevereiro, independentemente do dia da semana em que ocorra. É certo que, nos tempos actuais e por circunstâncias várias nem todos podem estar presentes quando a festa recai num dia de semana. Atrevemo-nos, no entanto, a afirmar que no dia da festa todos os mouranenses têm o su “coração” na sua terra natal.

É a própria Igreja que convida, hoje, todos os homens a alicerçarem esta piedade pessoal e comunitária, num culto litúrgico que apesar de todas as possibilidades de expressão e veneração não se esgota em si mesmo. A relação intrínseca entre a Liturgia e a piedade mariana deve ser encarada como uma “forma exemplar” (MC 21), uma fonte de inspiração constante, ponto de referência e meta última. Se, por um lado, podemos entender os exercícios de piedade marianos, dada a sua importância, como expressão de uma sociedade ou de uma comunidade de fiéis; por outro lado, é esta causa um factor importante do “perfil mariano” dos fiéis, do “estilo” de relação da qual se reveste a piedade para com Maria.

Se, porém, na história religiosa de Portugal houve um século particularmente difícil (séc. XIX), ele é também marcadamente mariano, pois é Nossa Senhora que nas horas amargas da descristianização e desânimo geral, aparece como a tábua de auxílio e salvação. A alma espiritual da nação seria a devoção popular, particularmente mariana, que assenta em três coordenadas essenciais: Fé, Confiança, Alegria.

173 a)Pela Fé

O povo adere às grandes verdades da religião católica. E no que respeita a Nossa Senhora, as verdades relacionam-se com a Maternidade Divina e Virginal, Assunção ao Céu e Imaculada Conceição. Portugal tinha já uma especial e oficial (rei D. João IV, em 25/11/1646) devoção e crença na Imaculada Conceição, que se ampliaram com a definição desse dogma (8/12/1854). A devoção mariana incrementada em novenas, tríduos e sermões populares e ainda por meio de escritos sobre as aparições de Nossa Senhora em Paris (1830), La Salette (1846) e sobretudo em Lourdes (1858), confirmam no imaginário popular o dogma da Imaculada Conceição, provocando entre nós uma “onda” de devoção mariana. Já no século XX, em Portugal, há a destacar as aparições de Maria aos três pastorinhos de Fátima na Cova da Iria (13 de Maio de 1917) que provocaram um enorme impacto na vida religiosa da sociedade portuguesa e estão certamente no revigoramento da fé e da prática católicas. Depois de Fátima, a história do catolicismo em Portugal tomou outros rumos e sentidos mais alargados, e a devoção a Nossa Senhora de Fátima tornou-se o catalisador da vida religiosa do nosso povo. Fátima passa a ser o centro religioso da nação e do mundo, multiplicaram-se os milagres que incentivaram a fé de muita gente, e Portugal reencontrou-se como “Terra de Santa

Maria”.78

b)Pela Confiança

As comunidades cristãs acreditam na protecção e intercessão de Nossa Senhora e dos Santos junto de Deus. A confiança religiosa é como a mola impulsionadora que acciona a religiosidade popular na sua expressão mais concreta. A nação portuguesa manifesta particular confiança em Nossa Senhora, mãe de Jesus e mãe dos Homens. Realça-se a condição maternal. Maria é a mulher mãe, a mãe das nossas mães; daí as múltiplas invocações com que o povo se lhe dirige para cativar as suas graças e bênçãos, o seu carinho e protecção. São também prova disso, os muitos títulos dados a Nossa Senhora que está sempre presente na vida dos Homens crentes como modelo de

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Como elementos cronológicos e bibliográficos para este período, podemos servir-nos de algumas obras e outros escritos igualmente importantes: cf. Bragança, 1987; Lima, 1955/56; A Virgem e Portugal

Segundo Congresso Mariano Nacional (Actas), 1954; Acta Congressus Mariologici-Mariani (Lisboa-

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todas as atitudes maternais.79 Para além disto, podemos ainda assinalar uma “espécie de

geografia” mariana que, em nome de Nossa Senhora, se associa a freguesias e cidades,

serras e montes/campos e vales que cobrem Portugal de norte a sul.80

É de salientar também a força de certas ordens e congregações religiosas na devoção a Nossa Senhora. Em Portugal, há a destacar sobretudo os Dominicanos e o culto devocional à Senhora do Rosário, os Franciscanos à Senhora da Conceição e dos Anjos, os Padres Carmelitas à Senhora do Carmo, os Salesianos a Nossa Senhora Auxiliadora e os Claretianos ao Imaculado Coração de Maria. Mas, como a confiança religiosa se traduz, em última instância, em atitudes e práticas de piedade ou devoção, nos séculos XIX e XX, eram práticas gerais o toque das Trindades ou Angelus que marcava o ritmo de trabalho e a reza do Terço em família, como oração para-litúrgica vespertina. A secularização da vida moderna conduz, contudo, a que estas práticas entrem em crise e tendam mesmo a desaparecer. Há, todavia, outras práticas que se vão

assumindo pelo seu carácter de novidade como“o mês de Maria”.81

c)Pela Alegria

O povo cristão é levado a celebrar Nossa Senhora. São as festas da Virgem, muitas delas coincidentes com as datas das principais festas litúrgicas. As festas religiosas são para o povo uma ruptura com o labor quotidiano, a afirmação da sacralidade do tempo, a possibilidade do encontro pessoal e comunitário com Deus. É característica popular a celebração fervorosa e entusiasta das festas de Nossa Senhora.

Na Igreja paroquial, na ermida ou capela é o santuário82 o ponto de encontro festivo.

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Veja-se a este propósito: Reis, 1967.

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É a Nossa Senhora das Alcáçovas, da Aldeia, do Cabo, do Caminho, do Castelo, da Lapa, do Monte, da Penha, da Rocha, da Serra, também Senhora de Aires, da Arrábida, do Sameiro, de Vila Viçosa ou de Fátima – só para citarmos alguma da muita existente.

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Prática de piedade mariana de grande impacto popular importada em meados do século XIX. Como devoção para-litúrgica, permitia aos leigos um certo dinamismo e criatividade. Sobrepôs-se às próprias celebrações litúrgicas pelo uso da língua vernácula, pela participação activa dos leigos, pela beleza e simplicidade dos cânticos, pelo fervor das pregações e pela força mobilizadora dos exemplos que as complementavam. Havia também o mês de Outubro, consagrado pelo papa Leão XIII à devoção do Rosário e Terço.

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Santuário, a palavra evoca o “Santo dos Santos” do templo de Jerusalém, lugar habitado pela glória de Deus. O santuário é o lugar onde Deus vem ao nosso encontro e onde acontece a plenitude da felicidade do nosso encontro com Ele, “os santuários são estações transformadoras de energia: lugares preciosos da

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No território mariano português, muitas são as dioceses do continente, igrejas ou

centros de devoção que exercem certa influência regional e local.83 Torna-se ainda

importante revisitar, embora sumariamente, alguns aspectos preponderantes ao século XX. Aqui destacam-se sobretudo os contributos literários e escritos narrativos, marcados pelos acontecimentos da Cova da Iria em Fátima que vão conduzir a uma reflexão mariológica relevante. Desdobram-se as celebrações de congressos, semanas e assembleias de estudos marianos.

É, contudo, o directório sobre Piedade Popular e Liturgia que face aos exercícios de piedade marianos os enquadra em duas vertentes distintas que ao mesmo tempo se completam, a saber: enquanto expressão da dimensão trinitária, cristológica,

pneumatológica e eclesial84; enquanto recorre frequentemente à Sagrada Escritura, que

mantém íntegra a confissão de fé da igreja, considerando os aspectos antropológicos das expressões culturais enquanto explicitados no compromisso missionário e no dever de testemunhar, à semelhança dos primeiros discípulos de Jesus Cristo.

Assim e por determinação do papa João Paulo II, desde a festa do Pentecostes em 7 de Junho de 1987, até à festa da Assunção de Maria em 15 de Agosto de 1988, os católicos do mundo inteiro celebraram um especial “Ano Mariano” com vista à preparação do bimilenário do nascimento de Cristo e do terceiro milénio da era cristã. Este facto prova, por si só, como a devoção a Nossa Senhora é uma componente essencial do culto cristão.

Portugal, país predominantemente católico, apresenta neste campo da devoção a Nossa Senhora, uma história secular que se torna muito difícil acompanhar segmentando-a ou compartimentando-a. A devoção popular mariana que se perpetua na alma das nossas gentes vai-se alargando e enriquecendo com novas formas e

transformação da energia divina para utilização humana e de transformação de energia humana para propósitos divinos”. Christian, 1978: 127.

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Vejamos somente a Arquidiocese de Évora, pelo manifesto interesse que poderá ter no presente estudo: Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, Nossa Senhora do Castelo, Coruche; Senhora da Boa Nova, Terena-Alandroal; Senhora das Brotas, Mora; Senhora da Visitação, Montemor-o-Novo; Senhora das Candeias, Mourão; Senhora de Aires, Viana do Alentejo; Senhora do Carmo, Agarifa-Évora. Louro, 1967.

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Nestas dimensões distingue-se claramente que há um sublinhar o culto prestado ao Deus da revelação neo-testamentário, à mediação única e necessária de Cristo que se consumam em autênticas expressões de piedade popular porque vêm do espírito, no qual todos os baptizados são chamados a se constituírem povo santo de Deus.

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manifestações sem nunca desdizer o passado; antes, dele se alimenta, como fonte pura e inesgotável. É, assim, a dimensão mariana do culto cristão, na religiosidade popular. O culto de Maria, decisivo na nossa história, torna-se, sobretudo depois de Fátima, no sustentáculo da fé e fervor religioso do povo português. Com razão o povo crente e confiante canta “Salve Nobre Padroeira” e proclama-se comprometido “enquanto houver portugueses. Tu serás o seu amor”.

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