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Contributos para um estudo sistematizado dos caracteres das festas e devoções marianas

caracterização teológica

2. A devoção mariana na cultura portuguesa: aproximação histórica

2.3. Contributos para um estudo sistematizado dos caracteres das festas e devoções marianas

As festas de Nossa Senhora não escapam à estandardização que se verifica nas outras festas religiosas: peregrinações, romarias, festas de Igrejas, festas mistas. Não parece, contudo, oportuno explicitar no corpo deste trabalho cada uma delas, mas somente enquadrar aquela que é objecto do nosso estudo. Assim, a festa de Nossa Senhora das Candeias parece poder situar-se no horizonte das festas mistas que são a maioria das festas onde o religioso parece arrastar o profano. Na sua organização contam-se diversos e diferentes agentes: a população, a comparticipação da autarquia e outros agentes económicos. Se entendermos, porém, a festa como uma manifestação social fundada em acontecimentos históricos ou míticos, por parte de uma comunidade ou sociedade que no presente reafirma através dela, graças a símbolos, rituais e alegorias, a sua identidade cultural, religiosa ou política, ela é o traço típico da cultura popular e tradicional portuguesa. Esta manifestação acontece um pouco por todo o país e faz parte da tradição e memória de um povo:

Festa é uma ruptura do tempo normal. Há festas profanas e sagradas, familiares e colectivas, alegres e tristes. Tanto a festa é um arraial de aldeia ou romaria como um jantar de aniversário ou uma manifestação cívica. Qualquer que seja o seu modelo ou objectivo, sagrado ou profano, instituído ou espontâneo, religioso ou cívico, toda a festa se caracteriza por uma excepcional comunhão de consciências entre os indivíduos; é um tempo rico simbolicamente, enquanto o tempo normal é pobre, com menos valor. O tempo normal dispersa os indivíduos, o tempo lúdico refaz a sua unidade e coesão. A festa é uma tentativa de reencontrar o estado original da unidade dos seres. (Espírito Santo,1989:280)

Numa perspectiva de humanização da sociedade, a festa é momento de alegria que quebra o ritmo diário e dá solenidade à vida. A comunidade celebra de uma forma visível a bondade, a beleza da vida e do mundo. Há uma experiência de liberdade em relação ao labor diário, onde se cruzam novos horizontes e razões para compreender e

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Os estudos de Moisés Espírito Santo abordam este fenómeno sobretudo na linha da luta entre os substratos culturais populares e as instituições eclesiásticas: “Nas aldeias e nas vilas ou cidades continuam a praticar-se ritos vindos do fundo dos tempos, inúmeras vezes condenados pelas instituições eclesiásticas ou mesmo pelos regulamentos municipais. Religião cristã, magia, feitiçaria formam um todo coerente no seio das camadas populares, recorrem aos mesmos símbolos e podem ser justificados pelo mesmo versículo do Evangelho”. (Espírito Santo, 1990:2)

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viver a vida de forma renovada. Como espaço de encontro e convívio que é, existe nela um tempo e uma disposição para o acolhimento cordial, presta-se atenção aos outros, reencontram-se velhas amizades, vence-se a solidão e o anonimato; a família e a comunidade reúnem-se. Os filhos da terra fazem-se presentes, num misto de convívio e força comunitária das mesmas tradições. Podemos então afirmar com alguma convicção que a festa é, acima de tudo, a identidade de uma comunidade onde as pessoas se encontram, evocam memórias comuns e convivem. Estes valores humanos que a festa promove são também valores cristãos. O homem é por natureza festivo, precisa de festas para viver e celebrar a vida, para encontrar espaços de convívio e de integração:

Desejo de reencontrar a coesão primitiva, marco entre os tempos simbolicamente diferentes, a festa exprime um desejo de mudança. É uma ruptura em função da mudança. Ao mesmo tempo que exprime o desejo de mudança, é um substituto da verdadeira mudança. As sociedades tradicionais, as que menos mudam, são as mais festivas. O estado da festa implica comportamentos exteriorizados, reconhecidos e padronizados. Podem criar-se festas originais, mas os comportamentos festivos já estão fixados e estabelecidos em modelos, de modo que os outros saibam que “é festa”. (Espírito Santo, 1989:280)

Enquanto festas populares, proporcionam uma oportunidade de a sociedade se celebrar, fomentando a coesão e exaltando-se a si própria. A dimensão excepcional da festa, contraposta à vida corrente, encerra em si uma economia de dádiva, onde a criação e gasto de excedentes se tornam imperiosos para atribuir à festa o significado simbólico regenerador e regulador que a sociedade precisa. E, se cada vez mais, nestas festas, parece dar-se a sobreposição do lúdico sobre o religioso e espiritual, é missão do clero tentar equilibrar o sagrado (Missa da Festa com Sermão e Procissão) e o profano (foguetes, fogo de artifício, bandas ou conjuntos musicais, divertimentos) de modo que o religioso não corra o risco de ficar submerso pelo profano ou de lhe servir apenas de “trampolim”. É verdade que, por vezes, as festas apresentam desvios e são instrumentalizadas para fins lucrativos. Mas, os valores que manifestam e a ligação profunda que mantêm com a alma daquela comunidade, merecem que lhes prestemos atenção e nos esforcemos por fortalecer a sua verdadeira identidade e recriar novas formas de as celebrar.

A ligação da Virgem Maria à humanidade de Cristo, profeticamente anunciada no Antigo Testamento, recebe nos evangelhos a prova histórica precisa para se poder afirmar como verdadeira Mãe do Redentor, o Messias prometido e encarnado, que no sacrifício da cruz resgatou a humanidade do pecado e da morte. O lugar eminente que

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Maria ocupa na piedade popular torna-se entendível pelo testemunho de uma remota tradição milenar em que o laço afectivo de uma maternidade humanizada até às mais prementes instâncias do quotidiano é, sem dúvida, o lado mais comovente e indestrutível da devoção mariana. Ao sancionar-lhe o culto, doutrinária e liturgicamente, o Concílio de Trento, se o justificava e defendia com inequívoco vigor apologético, incrementava-o na pastoral com afeição peculiar e medido alcance, na sua proposta de ideal de mulher e mãe cristã. A piedade pós-tridentina veria, também, serem expurgadas representações iconográficas menos ortodoxas, sem que, contudo, a onda de devocionismo deixasse de crescer no número de invocações e onomástico antropológico, confrarias e irmandades e actos de culto e peregrinações, templos e altares.

Segundo João Francisco Marques (cf. 2000:627), três motivos podem estar subjacentes ao recrudescer da devoção à Virgem Maria e que acompanham o momento de cristianização da Idade Moderna: o primeiro, a dignificação da oração vocal, dentro do espírito da devotio moderna; o segundo, o relevo acentuado de Maria na sua função de co-redentora, advogada dos pecadores e mãe de Misericórdia; o terceiro, o papel de intercessora celeste privilegiada, no alívio das dores e libertações das almas do cativeiro do Purgatório. Terra de Santa Maria se chama a Portugal. Na verdade, numa estimativa com base no censo de 1890, verifica-se que, das 3736 freguesias dos 17 concelhos do continente português, 1032 são dedicadas a Nossa Senhora, número muito próximo das 1055 inventariadas no Portugal sacro-profano (1767-1768), de Paulo Dias de Niza, o que mostra como era bem vincada a veneração à Virgem. Ainda tomando aquele referencial estatístico e ao fazer-se uma divisória pelo curso do Mondego, se regista de entre 2365 freguesias a norte do país, 450 (19%) com invocação mariana e das 1374 a sul, 582 (42,35%) a possuem, atingindo as percentagens de 54,87% e 54,4% os distritos de Faro e Portalegre, circunstância explicável historicamente pela forma como se processou a reconquista e o povoamento do território nacional.

Fenómeno de atender no crescendo da devoção popular mariana, nomeadamente, em capelas e invocações, desde o princípio da era moderna, faz com que haja uma diminuição dos santos patronos, ocupando a Mãe de Jesus a função de advogada das

mais diversas doenças, males e bens,32 como Senhora da Tosse, Senhora do Fastio,

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Senhora do Pranto, Senhora da Alegria, Senhora da Consolação, Senhora da Ajuda, Senhora do Amparo, Senhora da Luz, Senhora da Graça, Senhora dos Prazeres. Há, ainda, uma fusão do culto mariano e cristocêntrico que leva a que os fiéis coloquem imagens afins no mesmo templo ou desenvolverem idêntica devoção. A título de exemplo citemos somente, Senhor e Senhora da Agonia; Senhor e Senhora da Ajuda.

Tomamos como exemplo a realidade portuguesa, em que grande parte das Igrejas do século XVII – XVIII, desde que possuam diversos altares, dedica dois deles e os mais importantes, um a Cristo Crucificado, por regra o do lado direito, e o outro do lado oposto à Virgem, sobretudo, Dolorosa ou do Rosário. A reforma da vida cristã tornou-se no maior desígnio da pastoral tridentina, na evangelização do povo recorria-se aos santuários e devoções marianas, como local de concentração dos fiéis, com o intuito de combater a moralidade, a ignorância religiosa, as superstições, a ausência dos sacramentos, o que se fazia através da pregação, da oração em comum, da catequese, das novenas e exercícios espirituais. Há a referir também o papel importante das confrarias, no que respeita à obrigatoriedade de actos de piedade em que a frequência da

confissão e comunhão, a reza quotidiana e a caridade eram prescritos.33

Ainda no onomástico cristão das gentes, o nome por excelência do barroco, dado no baptismo às crianças do sexo feminino, é o de Maria, a que muitas vezes, se adicionam os epítetos da Anunciação, dos Anjos, da Assunção e da Graça. Esta influência vem da devoção local ou regional, mais em voga, a Nossa Senhora, generalizando-se a partir do século XVI em paralelo com o tratamento concedido a

Cristo, e do predomínio das ordens religiosas na propagação do culto mariano.34 A

ligação do povo à Virgem é de tal forma íntima que, na tradição familiar, o nome de Nossa Senhora está presente nos lares portugueses.

Num Portugal, país predominantemente rural e marítimo, das Descobertas, de um destino de heroísmos, de aventura e tragédia com profundos vincos na religiosidade da época moderna; nas fainas agrícolas, a sorte das sementeiras e o futuro das colheitas, repercutem-se nas devoções marianas polarizadas nas festas à Virgem Maria,

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No século XVII e XVIII, em terras portuguesas do continente e além-mar, torna particular relevância a confraria da Senhora do Rosário, de origem tardo-medieval e mediterrânica, indo ao ponto de absorver ou subestimar nas paróquias o espaço ocupado pelas do subsisto e das Almas. (cf. Marques, 2000:627)

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Os Franciscanos no incremento e devoção à Senhora da Conceição; os Lóios a Nossa Senhora do Vale; os Agostinhos à Senhora da Graça; Os Oratonianos à Senhora da Assunção; os Carmelitas à Senhora do Carmo e os Dominicanos à Senhora do Rosário. (cf. Marques, 2000:628)

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distribuídas pelo calendário litúrgico, e patentes nas designações protectoras desde o Norte a Sul do país.

Reconhecemos, porém, que Portugal, apesar do fervor do crente ter importado movimentos e práticas devocionais, confere-lhes, todavia, um acolhimento mais caloroso e sentimental. São prova disso as festas, romarias e peregrinações espalhadas de norte a sul de Portugal, onde a devoção mariana atinge o seu auge. Parece, pois, poder afirmar-se que a visão antropológica da devoção popular a Nossa Senhora seja o caminho a trilhar pelos teólogos para uma melhor e mais englobante compreensão do marianismo português e da Mariologia, em geral.

Capítulo II

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