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Articulação Entre Sistemas de Saúde

Capítulo 3: Contexto Cultural: A Vivência da Doença

3.8. Articulação Entre Sistemas de Saúde

Nas sociedades ocidentais a doença é vista como algo fora da trajetória normal do indivíduo, exigindo a intervenção médica de forma a que o estado de saúde seja rapidamente restabelecido.

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Uma vez que estes agentes são da mesma cultura.

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Noutras culturas as doenças são acontecimentos com contornos mágico religiosos, que requerem a intervenção de um curandeiro ou feiticeiro. O primeiro passo será encontrar a causa da doença para que seja possível iniciar o processo de tratamento, olhando para o indivíduo como um todo, contrariamente à medicina formal que perdeu esta visão holística do ser humano.

Apesar de sempre ter existido a medicina tradicional na Guiné-Bissau, nunca foi reconhecida oficialmente como forma alternativa à medicina formal e o importante papel na luta contra as doenças.

Atualmente o Sistema Nacional de Saúde da Guiné-Bissau engloba para além do setor público e do privado, a medicina tradicional, assumindo que esta é determinante para a saúde da população, por ser o sistema de saúde mais perto das populações. No entanto os passos dados para que haja uma verdadeira articulação entre sistema formal/biomédico e tradicional, têm sido muito ténues apesar dos esforços de muitos curandeiros e a medicina tradicional continua sem ter o seu exercício regulamentado.

O Plano Nacional de Desenvolvimento Sanitário (PNDS) contempla um organismo – Direção de Saúde Comunitária e de Promoção da Medicina Tradicional, que por sua vez está inserida na Direção Geral da Prevenção e Promoção da Saúde, que assumiu a elaboração de um documento de orientação para a Medicina Tradicional “Política da Medicina Tradicional na Guiné-Bissau”, onde se lê (p. 13) que o objetivo é: “Integrar a Medicina Tradicional no Sistema Nacional de Saúde afim de promover a sua boa utilização, sobretudo nos sistemas de prestação dos cuidados de saúde primários”. No entanto este documento pelo facto de estar incompleto319 tem pouca ou mesmo nenhuma utilidade.

Já nos anos 80, o psiquiatra holadês De Jong, referia ser pouca a informação sobre a utilização da medicina tradicional na Guiné-Bissau, contrariamente a países como o Senegal onde os governos reconhecem a importância dos herbalistas no sistema de saúde, ou no Mali onde foi criado um departamento de medicina tradicional no Institut de Recherche en Santé Publique, em Bamako, e nas farmácias oficiais são vendidas algumas plantas e raízes, ou tal como na Nigéria onde os herbalistas e pessoal hospitalar têm encontros regulares (Gemmeke, 2008).

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Tentamos saber qual o motivo para a não conclusão deste importante documento, mas ninguém sobe responder.

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O Senegal foi320 efetivamente um exemplo de integração da medicina tradicional com a biomedicina. Aí nasceu a importante “Escola de Dakar”, sedeada no hospital em Fann, pela mão do psiquiatra francês Henri Collomb em 1965 (Gemmeke, 2008). Com este psiquiatra a medicina tradicional foi integrada na medicina hospitalar, tendo-se criado locais para a prática da medicina tradicional dentro do espaço psiquiátrico e levando os curandeiros a trabalharem em colaboração com os psiquiatras.

Em caso de o doente necessitar de apoio familiar, era permitido aos familiares permanecerem com os seus doentes, assim como durante o processo de reintegração na vida social em que o doente ainda não tinha alta na totalidade mas podia passar alguns dias em casa, os familiares tinham autorização para permanecerem no hospital de forma a que todo o processo fosse facilitado.

Em 2003 foi criada uma ONG – PROMETRA321 Guiné-Bissau, cuja missão seria organizar os curandeiros em associações e dar-lhes a formação necessária e em 2007 a Organização Africana da Propriedade Intelectual (OAPI) organizou um atelier de valorização dos medicamentos tradicionais. A partir daqui nada mais se avançou no sentido do desenvolvimento e aplicação das ideias subjacentes à criação deste organismo.

Contrariamente ao que se passa na Guiné-Bissau, a PROMETRA - Uganda fundada em 2000, tem levado os curandeiros à escola para que melhorarem os seus conhecimentos e preservarem a biodiversidade local.

Esta organização foi fundada com o objetivo de fazer face à deficiente qualidade da saúde das comunidades rurais, através da utilização da medicina tradicional e dos saberes locais e cuja filosofia assenta no conceito de aproveitar a natureza para promover a saúde.

Apesar destas tentativas de avanço nesta área, a Guiné-Bissau continua presa a uma visão ultrapassada da psiquiatria e da saúde mental, tendo como prioridade a construção de um hospital psiquiátrico, que não negamos ser uma necessidade, no entanto há outros caminhos que podem ser tomados de forma a colmatar esta enorme falha no sistema de saúde e defendidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Efetivamente deu-se início à construção de uma unidade hospitalar, no bairro do Enterramento, financiada pelo Fundo Europeu do Desenvolvimento (FED) que seria o novo

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Segundo René Collingnon, psiquiatra belga que trabalhou no hospital de Fann de 1978 a 2000, os médicos atuais desviaram-se dos ideiais de Collomb, estando mais interessados em medicina do que em antropologia (Gemmeke, 2008).

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PRO.ME.TRA Internacional é uma organização Internacional, com sede em Dakar, Senegal, que preserva e promove a medicina tradicional africana.

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hospital psiquiátrico, mas com o golpe de abril de 2012, muitos apoios foram cortados e este foi um dos afetados, tendo a obra ficado parada (Anexo 1).

Tem feito falta na Guiné-Bissau a visão da Organização Mundial de Saúde (OMS) e da organização “World family doctors caring for people” (Wonca)322 sobre a prestação de cuidados na área da saúde mental, sendo da responsabilidade de cada país incorporar os princípios contidos na Declaração de Alma Ata. Segundo estas organizações a saúde mental deve ser vista numa perspetiva “holística e perto de casa”, devendo os cuidados primários integrarem a saúde mental323, tal como podemos ler os diversos exemplos desta integração na publicação da OMS e Wonca (2008) onde fica claro que esta integração é possível e de todo o interesse para a população e doentes, mesmo em países de baixo rendimento e em circunstâncias políticas complicadas.

Temos visto nos últimos anos o proliferar de diferentes tipos de medicinas alternativas, o que nos leva a pensar que uma das justificações para este “boom”, é precisamente o distanciamento que a biomedicina foi criando do lado espiritual do Homem. Mantendo esta postura de oposição e de descrença renunciou ao saber tradicional baseado na experiência popular levando-nos a refletir se não haverá outros caminhos como seja esta integração dos diferentes tipos de medicina.

Podemos então pensar em dois níveis de integração. Um destes níveis deve ser a integração da saúde mental nos cuidados primários, melhorando e tornando mais acessíveis estes cuidados a um maior número de indivíduos, e um outro, a nível da integração da medicina tradicional com a medicina formal, em que técnicos de saúde e em particular médicos procurem abstrair-se da forma racionalista de pensar a doença, e olhar para o doente num todo, em que o aspeto emocional e religioso é tão importante quanto o físico/mecânico, aceitando que mesmo de forma simbólica, se for esse o caso, o efeito terapêutico da cura, segundo a cultura local deve ser considerado como um caminho para a cura.

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Ver bibliografia publicação da OMS, 2008.

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