• Nenhum resultado encontrado

PARTE II: Estudo Empírico

Capítulo 4: Metodologia

4.5. Descrição dos Procedimentos

Vindo da antropologia e iniciado por Malinowski331 (Rivière, 1995) o trabalho de campo é uma forma de fazer pesquisa332, que foi sendo adotada por outras áreas das ciências, entre elas a psicologia e a psiquiatria.

331

Malinowski, B. (1922). Argonauts of the Western Pacific. Londres: Routledge & Kegan Paul onde o autor expõe pela primeira vez o que viria a ser o método antropológico – a observação participante e o trabalho de campo (Barley, 2006).

Factor Itens α

Comportamento Ansioso

Depressivo 4 0.65

Sintomas Somáticos 6 0.62

Decréscimo de Energia Vital 6 0.57

Humor Depressivo 4 0.59

165

O conceito ou ideia de “campo” nasce na famosa Escola de Chicago, na década de 30, quando o pesquisador deixa o laboratório para ir para as ruas e passa a estar no “campo” (Gonçalves, 2002, pp. 47-50) em contacto directo com as pessoas.

Com Kurt Lewin o “campo” passa a ser o “assunto” a estudar e os encontros entre investigador e investigado “variam conforme interesse ou necessidade” (Spink, 2003, p. 25).

Esta forma de recolha de informação é particularmente aplicável a pequenas sociedades ou grupos e sobre quem se pretende estudar de uma forma aprofundada a perspetiva dos indivíduos.

Começámos por fazer o levantamento de dados através de uma recolha e análise documental, com o objectivo de delinear o processo de trabalho a seguir. Seguiu-se uma fase exploratória, com uma primeira ida à Guiné-Bissau, de 10 a 25 de Abril de 2011, para além de contactar com a realidade no local, foi possível estabelecer os primeiros contatos e bases de trabalho.

Assim, o nosso primeiro passo foi a imersão no campo tendo como finalidade recolher o máximo de informação sobre os aspectos culturais da população em estudo através de visitas a locais (ex. hospital, espaços dos curandeiros, locais de reunião dos membros da comunidade). As conversas e diálogos travados foram objecto de compilação e de cadernos de registo. Sempre que nos foi solicitado ou proporcionado colaborámos em actividades da própria comunidade local. Entrar no campo exige alguma preparação para a realização de negociações úteis à investigação. Adoptámos uma postura de observação participante, com o objectivo de nos entrosarmos na cultura e de ser aceites e integrados como “um dos nossos” e não entendidos como voyeuristes. (Carmo & Ferreira, 1998).

A par desta vivência, a nossa reflexão era acompanhada de anotações e do registo de acontecimentos e comportamentos (escrita e fotografia) não só das participantes mas também do meio sociocultural envolvente. Para além da falta de infra-estruturas a nível de saúde mental, a falta de eletricidade levanta alguns problemas e cria alguns condicionamentos tanto nas deslocações como no registo electrónico nas notas que vão sendo tomadas durante o dia.

Também na escolha de estadias para desenvolver a investigação tivemos de ter em consideração as restrições financeiras que surgiram. A opção por não viver dentro dos bairros teve como objetivo manter um olhar claro e imparcial sobre as situações e não nos deixarmos

332

Na antropologia fazer trabalho de campo eleva o antropólogo à classe de “pessoa verdadeira” como forma de diferenciação dos que “nunca fizeram trabalho de campo” (Barley, 2006, p. 16).

166

levar pelos sentimentos, tentando manter a distância necessária que nos permitisse desenvolver a investigação com alguma objetividade.

Posteriormente regressámos333 diversas vezes para acompanhar a evolução da situação das pacientes que tinhamos entrevistados anteriormente, assim como para nos inteirar de novos casos que tivessem surgido durante a nossa ausência. Em cada estadia foram sempre surgindo novas situações que fomos analisando e acompanhando.

Num trabalho desta natureza é imprescindível perceber a visão dos sujeitos objeto de estudo, pois esta está intimamente “relacionada com a sua identidade social” (Bourdieu, 1989, p. 139), daí a nossa imersão no campo, com base nas técnicas etnográficas e de instrumentos adaptáveis à população em estudo, como a observação e as entrevistas.

Só estando no local e perante situações concretas, é que é possível definir formas de trabalho e metodologias que procurámos personalizar e adaptar conforme as situações. Por exemplo, o contato com alguns curandeiros permitiu fazer uma análise das situações numa perspetiva fora da esfera espiritual e discutir a influência da família no mal estar das mulheres. Com outros curandeiros tivemos que nos restringir ao que nos era mostrado, pois forçar a situação poderia comprometer a confiança e o prosseguimento da colaboração.

O facto de estarmos presentes regularmente ajudou a ganhar a confiança das pessoas com quem contactámos, abrindo portas para a participação em diversas festividades e cerimónias o que nos permitiu entrar dentro das casas e assim perceber as dinâmicas familiares tradicionais. Foi também preciso aprender qual o momento em que a nossa presença era inconveniente e qual o momento em que deveriamos sair.

Contudo, esta relação torna-se num desafio que é preciso saber gerir, pois somos olhados como a fonte de rendimentos, ainda que momentânea e de ajuda material. De início isto parece fácil de resolver e ser ultrapassado, mas rapidamente percebe-se que se está numa teia com pedidos constantes para as mais diversas ajudas. A recusa em ceder leva a um sentimento de desconforto, pois tal como Geertz (2000, pp. 30-46) referiu “o investigador é colocado numa posição moral um pouco parecida com a do burguês que aconselha aos pobres a serem pacientes”. O recurso a um informante334

, neste tipo de investigação é extremamente útil, pois permite avançar de forma mais rápida, uma vez que ele conhece os locais, as gentes e as formas de ultrapassar as dificuldades que vão surgindo, para além do papel que pode desempenhar como tradutor.

333

De 6 a 19 de outubro de 2011, de 30 de novembro a 10 de dezembro de 2011, de 9 de fevereiro a 17 de março de 2012, de 7 a 19 de outubro de 2012.

334

Como características do informante, deseja-se que seja paciente no explicar, que tenha conhecimentos do que se está a investigar e estar disponível para colaborar.

167

Foi-nos facilitado o acesso às consultas no Centro de Saúde Mental 3 de Agosto, no Hospital Militar e com diversos curandeiros335 de forma a termos a possibilidade de entrevistar as pacientes e a observar o desenrolar das consultas.

A entrada no espaço dos curandeiros para recolher informações exigiu uma negociação monetária, para além da contribuição com alguns bens336. Na maior parte dos casos, este processo aconteceu somente na fase inicial, no entanto houve situações em que foi necessário voltar a negociar por cada visita efetuada.

Era importante conhecer estes espaços, alguns em bairros de Bissau, outros em tabancas337, sendo que, tal como Bourdieu afirma sobre a importância dos locais de investigação (1989, p. 137) “este determina muitas vezes o tipo de relação que aí se estabelece com os indivíduos”.

Contatámos com o um único Centro de Saúde Mental existente em todo o país, sendo de realçar que as consultas eram asseguradas por três ou quatro enfermeiros psiquiátricos, realizadas num espaço único separado por cortinas sem qualquer privacidade. Foi impossível apurar o número de psicólogos a trabalhar no país, estando a maioria ligados a instituições que trabalham na área do HIV-SIDA. Raramente os doentes são encaminhados para os psicólogos. Só os doentes com psicose e depressão graves são levados ao Centro de Saúde Mental, no entanto o normal é já terem passado por alguns curandeiros que não conseguiram resolver a situação e ficarem entre a biomedicina e a medicina tradicional, utilizando os dois sistemas paralelamente: um pode trazer o alívio físico, mas o outro assegura a colaboração do mundo invisível e a permissão para o tratamento.

Já no Hospital Militar o psicólogo dispõe de um gabinete próprio, o que lhe permite trabalhar sozinho e sem intromissões.

Para delinearmos o que seria a nossa amostra, estivemos presentes nos diversos locais à hora da consulta. No caso de não estarmos presentes no momento, éramos contactados via telemóvel e informados da chegada de uma nova paciente para que nos deslocássemos ao local.

Nos bairros, onde recolhemos os dados do nosso grupo de controlo, por vezes foi necessário recorrer a um tradutor, apesar de sabermos que traz alguns inconvenientes, pois neste processo de tradução a mensagem tanto enviada como recebida acaba por ser distorcida.

335

Conforme anteriormente referido e também explicadas as atribuições e características de cada um destes curandeiros.

336

Aguardente, folhas de tabaco, sabão e arroz.

337

168

Wadensjö (1998), desenvolveu dois tipos de modelos do papel que o tradutor pode assumir. Um, em que tem um papel passivo, digamos mesmo invisível, em que só deve fazer a tradução sem influenciar a direção da conversa, ou o investigador pode optar por ter um tradutor que desempenhe um papel mais ativo, ajudando a construir uma compreensão mútua sobre o problema, facilitando o estabelecimento de uma relação de cooperação e confiança entre os intervenientes. Nós optámos por este segundo modelo por nos fazer mais sentido.

Esta prática permitiu-nos averiguar os tipos de tratamento mais relevantes, assim como as opções religiosas praticadas. A partir deste trabalho, foi mais fácil escolher os instrumentos adequados a aplicar.

Após termos organizado a nossa amostra, iniciámos a recolha de dados a partir dos instrumentos escolhidos. Realizámos as duas entrevistas estruturadas com perguntas semi- abertas e procedeu-se ao preenchimentodo questionário SRQ-20. Foi explicado àsmulheres e seus familiares338 a natureza do estudo, tendo sido pedido o seu consentimento para as incluir no mesmo. Não nos pareceu apropriado pedir o consentimento por escrito (Pais- Ribeiro, 2008) uma vez que o nível de escolaridade, na generalidade, era muito baixo.

Algumas das questões mais diretas que podiam ser consideradas incorretas ou intrusivas, foram contornadas de forma a serem aceitáveis e compreensíveis. Quando as respondentes estavam sozinhas podiamos falar com menos restrições do que quando acompanhadas por familiares, mesmo se por vezes era necessário a intervenção de um familiar no sentido de esclarecer qualquer dúvida.

O conteúdo dos diferentes instrumentos foi lido, às participantes, em português e nalgumas situações de forma a tornar mais clara alguma questão, repetido em crioulo. Reproduziu-se este procedimento com todas as pacientes e em todos os locais de tratamento, tanto no contexto biomédico e psicológico como no tradicional. Manteve-se o anonimato na identificação das pacientes, não sendo revelados os nomes das mesmas.

A falta de privacidade foi uma das questões difíceis de gerir, pois havia sempre alguém presente, não por incorreção ou desconfiança, mas por uma questão cultural ninguém fica sozinho.

Em relação ao SRQ-20 tivemos o cuidado com o “sentido” da pergunta para que não fosse confundido com o significado cultural dado a determinado comportamento. Por exemplo, Kortmann (2010, p. 215) chama atenção, relativamente ao questionário SRQ-20, que na pergunta número 10 quando se pergunta: “O sr. / a sra. tem chorado mais do que o

338

Por vezes o pai ou o marido ou mesmo um tio. Muitas vezes as pacientes eram acompanhadas por um grupo constituído por marido e tio. Só uma das pacientes foi acompanhada pela mãe.

169

costume?” como sendo um indicador do estado depressivo, na Etiópia a resposta “sim” pode ser indicativa que o indivíduo participou nos últimos tempos num número fora do normal de funerais e não de um qualquer estado de tristeza.

Após três meses desde o primeiro contacto, foi pedido aos participantes que preenchessem novamente, o SRQ-20. Estes mesmos pedidos foram também feitos ao grupo que não teve nenhum tratamento (grupo de controlo).

Apesar de tradicionalmente as pesquisas em psicologias utilizarem o suporte escrito para transmitir os dados da investigação, no nosso trabalho e pelas suas características considerámos que a imagem fazia todo o sentido como forma de ilustrar situações que nos fogem ao quotidiano. A expressão verbal traduz a observação do acontecimento de uma forma cega, o leitor não consegue visualizar o acontecimento ou a situação, daí a importância do uso da imagem, que pensamos ser uma mais valia ao texto escrito e que incluímos em anexo. Houve o cuidado de cobrir a face dos fotografados com o objetivo de manter o anonimato dos intervenientes.

Nesta descrição do procedimento apraz-nos fazer uma reflexão sobre alguns dos aspectos peculiares que estiveram subjacentes ao nosso trabalho. Assim, é importante realçar que o estabelecimento de laços de confiança é um factor determinante para qualquer investigação, particularmente, quando se pretende fazer uma análise de dados qualitativos, na medida em que o discurso dos entrevistados possibilita ter acesso à realidade individual. Este interesse pode parecer num primeiro momento o objeto único do investigador, criando, por isso, algum retraimento por parte dos entrevistados em contar as suas histórias.

Cada história é a história de um grupo cultural e das relações entre os diversos membros, podemos dizer que é uma história de pertença e tal como em muitas outras culturas, as mulheres são pertença de um determinado grupo social, que se alarga para além da família e se estende à tabanca onde reside.

Neste sentido, a maior parte das consultas são em família, o que permite perceber as dinâmicas entre os diversos membros, assim como o conhecimento de diferentes realidades.

Também a vivência do tempo tem uma especificidade em cada cultura. Assim é apropriado e facilitador dar ao interlocutor um tempo de fala, isto é, não se pode perguntar imediatamente qual a escolaridade ou religião pois há sempre uma história associada que é preciso deixar fluir. Cada pessoa ocupa o seu tempo e é importante que o investigador deixe fluir a narrativa e tente ir “apanhando” os dados que lhe interessam de modo a encontrar um fio condutor.

170

Também a vivência e ocupação do espaço tem particularidades próprias. Por exemplo, no presente estudo, só o psicólogo tinha um espaço próprio e com alguma privacidade. O Centro de Saúde Mental resumia-se a um “barracão” com diversas secretárias onde o espaço se individualiza com a ajuda de panos tradicionais pendurados em cordas. As entrevistas das pessoas que recorriam ao tratamento tradicional, na maior parte das vezes, eram ao ar livre em cadeiras colocadas para o efeito debaixo de um alpendre ou de uma árvore. No entanto, não deixavam de ter o mesmo valor que as realizadas no contexto biomédico, pois que, este espaço é simbolicamente “curador”, um espaço em que que se espera encontrar a cura para a doença. Os encontros nos bairros acontecem ao ar livre. As cadeiras são dispostas nos alpendres das casas, surgindo família e vizinhos de diversos pontos da comunidade para se inteirarem do que se passa.