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Capítulo 3: Contexto Cultural: A Vivência da Doença

3.5. Os Caminhos da Cura

A palavra terapia vem de therapeia, de origem grega, e relaciona-se com os cuidados de saúde e o tratamento de doenças. Por sua vez, se olharmos os sistemas terapêuticos como sendo as práticas de prevenção, deteção e tratamento de doenças, associados a uma determinada época e cultura, podemos dizer que os sistemas terapêuticos tradicionais serão as estratégias tradicionais organizadas com base nos conhecimentos culturais locais. É pois fácil de perceber que estes sistemas são anteriores à medicina moderna.

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Estas práticas curativas integram as crenças e conhecimentos culturais, com uma perspetiva holística, onde todo o ambiente está envolvido e contribui tanto para a doença como para a cura, sendo por isso que estas práticas são mais facilmente compreendidas e aceites pelas populações.

Como parte desse todo, o indivíduo é olhado como responsável pela sua condição de saúde, que deve manter através das oferendas aos irãs.

O sistema terapêutico na Guiné-Bissau está alicerçado na cultural local no que diz respeito à saúde, causas de doenças, formas de cura e importância do grupo social para a cura. Os guineenses possuem o seu próprio modelo explicativo das doenças, variando em função das diversas subculturas, e correspondentes formas de tratamento. Estes modelos refletam o sistema terapêutico suportado pelas crenças e mitos sobre as origens das diferentes doenças e o restabelecimento da saúde

Esta visão da doença e tratamento combinam profundamente os feitiços, a ervanária e os rituais mágicos-religiosos.

As doenças podem ser atribuídas aos humanos através da prática de feitiçaria, tendo o tratamento nesse caso de passar por um feiticeiro, pois só ele possui conhecimentos e poder para anular o feitiço254, ou pelo ambiente e aí basta usar as plantas e raízes tradicionais como forma de tratamento.

Uma doença crónica que não se consegue curar apesar das idas ao curandeiro e ao posto de saúde pode ser um sinal para um ritual que não foi cumprido. A maior parte das vezes a falta de dinheiro é a grande justificação para o incumprimento, só que os irãs não olham a meios para alertar os mortais e por isso acontece a mufunesa, quer isto dizer os azares que muitas vezes se traduzem nas crianças da família ficarem doentes ou mesmo a sua morte, situação também verificada por Einarsdóttir (2004).

Os relatos sobre a origem da doença podem ser diversos, daí a necessidade do investigador ir para além do simbólico na busca das origens, de forma a que “…mostre as coisas de um modo diferente do que parecem ao vulgo, pois o objeto de qualquer ciência é descobrir…”(Durkheim, 1984, p. 7) não que o descortinar a origem seja sempre a chave para a solução, mas será pelo menos uma linha de orientação para a busca da cura.

Tal como na biomedicina, na medicina tradicional a perceção que se tem da doença e a forma de lidar com ela, vai influenciar todo o processo terapêutico e a descodificação dos

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Pode acontecer reconhecer que não tem poder suficiente face àquele feitiço ou irã, aconselhando outro feiticeiro que possa solucionar o caso.

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sintomas permite identificar a doença e só a partir daí é possível encontrar a melhor forma de a tratar.

Dependendo do status e da localização geográfica do doente e família, este será levado para a medicina tradicional ou para a medicina formal. No entanto é quase certa uma passagem, senão do doente, pelo menos de um familiar por um curandeiro, apesar dos indivíduos mais escolarizados não admitirem abertamente que o fazem e só após longa conversa acabam por admitirem que também eles vão ao curandeiro.

Também é frequente a ida a mais do que um curandeiro para que a origem da doença seja confirmada, mesmo que paralelamente seja utilizado o sistema biomédico.

Na cultura tradicional o doente tem pouco a dizer sobre a sua doença, delegando a terceiros a preparação da solução para a cura, acabando por não diferir muito do sistema formal ou biomédico, onde o doente deposita a sua cura nas mãos do médico e na indústria farmacêutica, que lhe prepara e prescreve como deve tomar o medicamento, sendo o seu papel muito pouco ativo.

A medicina e o ato médico foram desde sempre rodeados por uma aura de magia e secretismo com todo um conjunto de técnicas e saberes que ultrapassavam o entendimento humano. As prescrições, as restrições, os banhos, os vapores, as manipulações cirurgias são rituais tão mágicos255 como os praticados pelos curandeiros que também têm por base a aprendizagem e a experiência.

Na Guiné-Bissau a magia tem um poder muito forte e tal como Malinowski, (1948, p. 21) referiu sobre o poder da magia na esperança na vida, esta tem o papel de “ritualizar o optimismo do homem, aumentar a sua fé na vitória da esperança sobre o medo”.

Mas ao mesmo tempo que a magia tem esta capacidade criadora de otimismo e esperança, capaz de impulsionar o indivíduo para a vida, também pode ter o efeito exatamente contrário levando ao medo e à morte.

No entanto, para que possa haver uma cura o paciente tem de sentir que quem está do outro lado a ouvi-lo, seja em qualquer sistema terapêutico pelo qual tenha optado, que lhe está a dar importância, tentando perceber o seu discurso, tantas vezes carregado de angústia, sofrimento e desesperança.

Não podemos deixar de retratar o psicólogo que acompanhamos e que no final deste trabalho se mostrou como sendo o sistema de tratamento com maior sucesso em termos de recuperação das mulheres.

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Tanto os ritos mágicos como a magia são “factos de tradição” (Mauss, 2000, p.16) que se repetem e cuja eficácia o grupo acredita.

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O Dr. Cabi, mais conhecido por Didi como gosta de ser chamado, é um jovem com pouco mais de 30 anos, licenciado em terras brasileiras. Com uma prática muito aberta e uma postura humanista256 naquilo que são os seus princípios filosóficos e prática clínica, procurando valorizar as potencialidades das pacientes257, incentivando-as a irem mais além e a lutarem pela sua felicidade, num processo de transformação do “eu” vítima num “eu” lutador e vencedor.

Uma vez que estávamos presentes durante as consultas258, podemos observar a forma como as conversas entre psicólogo e paciente(s) seguiam um curso simples, sem grandes complexidades académicas, mantendo um baixo nível técnico de forma a que as mulheres se sentissem à vontade.

Quando aconteciam sessões em grupo, havia uma participação ativa das mulheres, que por não terem familiares por perto se sentiam livres para exporem as suas angústias, havendo uma discussão aberta e livre de constrangimentos259.

O Dr. Cabi deixava o diálogo fluir no sentido em que o grupo pretendia e quando era questionado por alguma mulher sobre o que fazer numa determinada situação, ele devolvia a questão para o grupo, perguntando o que as outras mulheres pensavam e como se podia resolver aquele problema, quer fosse sobre questões familiares ou sobre formas de ganhar algum dinheiro.

Contrariamente a outros sistemas, que acompanhamos da mesma forma, aqui as mulheres iam sozinhas sem a companhia dos maridos ou de qualquer familiar, permitindo a criação de um ambiente mais relaxado. Vê-se assim a importância dos pacientes se sentirem livres para se expressarem e falarem de tudo o que os magoa sem constrangimentos familiares.

Também não havia críticas, como acontecia noutras formas de tratamento, mas sim uma conversa onde as mulheres eram levadas a refletir sobre si, sobre a sua vida, onde

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Segundo o Dr. Cabi a sua formação em psicologia, apesar de ter conhecido e estudado todas as correntes, foi basicamente cognitivo-comportamental. No entanto para ele, a utilização de uma só abordagem era limitadora, daí apoiar-se muito na corrente humanista e da utilização dos grupos como forma de partilha de situações multipessoais.

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Apesar de não gostarmos desta classificação, vamos usá-la por uma questão de facilidade de identificação de quem pede ajuda.

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Procurou-se nunca intervir, no entanto isso era impossível, pois frequentemente pediam a nossa opinião, conselho ou sugestão. Procurou-se devolver as questões de forma a que fossem as mulheres a chegarem a uma conclusão do que seria melhor para elas, mas nem sempre era possível pois não queriamos ser interpretados como estando a ser rudes.

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Assistimos algumas sessões na prisão de homens de Bafatá e na de mulheres em Mansôa. Aqui os presos eram reunidos no pátio e a sessão era dirigida a um assunto específico. Os presos que sentiam necessidade de falar sobre algo em particular, no final tinham alguns momentos a sós com o Dr. Cabi.

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queriam chegar e como o fazer, acima de tudo sentiam que não estavam sós e que havia esperança, pois se outras tinham conseguido elas também iriam conseguir.