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A articulação do princípio da organização e gestão democráticas com o princípio da liberdade de organização e regulamentação interna

O CONTEÚDO OBRIGATÓRIO MÍNIMO DOS ESTATUTOS DAS ASSOCIAÇÕES SINDICAIS: SENTIDOS E MOTIVAÇÕES DA REFORMA DE

1. A articulação do princípio da organização e gestão democráticas com o princípio da liberdade de organização e regulamentação interna

A doutrina tem sustentado que do princípio da liberdade de organização e

regulamentação interna dos sindicatos, enquanto corolário do princípio da autonomia sindical,

deverá decorrer o carácter minimalista da intervenção do Estado na regulação destas matérias. Tanto quanto possível, os sindicatos devem gozar de liberdade, autonomia e independência, sem o que é asfixiada a dimensão colectiva da liberdade sindical 8. No entanto, tem sido defendida a ideia de que se justifica alguma ingerência do legislador, de modo a garantir «uma normação mínima, geral e abstracta, destinada a acautelar a legalidade democrática, se bem que subtraída a juízos discricionários da Administração» 9.

As opiniões sobre os níveis de ingerência autorizados já não são uniformes. Sendo a própria exigência de organização e gestão democráticas uma decorrência da liberdade sindical numa sua concepção em sentido amplo, a controvérsia subjacente a este debate radica na dificuldade em encontrar um ponto de equilíbrio ideal, no qual seja possível conciliar a iiberdade sindical em todas as suas vertentes e, desde logo, nas suas dimensões individual e colectiva. É que as questões que se colocam a propósito da natureza dicotómica da liberdade sindical se articulam com a relação de tensão entre os dois princípios constitucionais: de um lado, os princípios da liberdade de organização e gestão democráticas, expressão da liberdade

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Cfr. VASCO DA GAMA LOBO XAVIER e BERNARDO DA GAMA LOBO XAVIER, «lnaplicabilidade do Código Civil às Associações Sindicais», in Revista de Direito e Estudos Sociais, Julho-Setembro, ano XXX (III da 2.ª série), n.º 3, Coimbra. 1988, p. 285 e ss. (p. 310).

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Neste sentido, veja-se a doutrina explanada e a síntese da jurisprudência constitucional citada no Acórdão do TC n.º 298/90, de 13 de Novembro [DR, 2.ª série, de 15 de Março de 1991], no qual não deixa de se referir que «as «formas particularmente desenvoltas de irrestrição e independência» enfatizadas por alguns autores [referem-se VASCO DA GAMA e BERNARDO DA GAMA LOBO XAVIER], não podem ser levadas tão longe». Mas, no mesmo Acórdão, citando-se um outro aresto do Tribunal (o Acórdão n.º 455/87), acabaria por se afirmar que «ao legislador ordinário é, em princípio, vedada a possibilidade de editar regras imperativas sobre a organização dos sindicatos - maxime, impondo-lhes estatutos-padrão -, mas deve-se-lhe reconhecer legitimidade para uma normação imperativa concretizadora do princípio da gestão democrática a que deve obedecer a organização dos sindicatos e a correspondente gestão».

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sindical colectiva; de outro, o princípio democrático, que manda atender aos interesses e relevar as vontades individuais e minoritárias. Muitos têm defendido que «na dicotomia autonomia/democracia, o nosso legislador opta decididamente por esta última» 10. Tal significa que, tendo em conta a articulação que mencionámos anteriormente, também na dicotomia entre liberdade sindical colectiva e liberdade sindical individual, o nosso legislador tem optado por esta última? Entendemos que sim.

As opções legislativas seguem, neste ponto, orientações ideológicas, mas assentam igualmente em justificações histórico-políticas e, neste quadro de motivações, há que afirmar que da experiência corporativa não pode retirar-se outra lição que não a de que é necessário reservar algum espaço de tutela à dimensão individual da liberdade sindical, cujos mecanismos de garantia se concretizam, em boa parte, pela salvaguarda de aspectos ligados ao princípio democrático. Este princípio supõe a efectiva participação dos associados na vida sindical, mas também a consideração das minorias, nomeadamente, através da definição de regras sobre quórum, sobre formas de votação, de normas sobre as convocações para as assembleias e a publicidade dos actos e supõe, evidentemente, o reconhecimento e a efectiva participação de tendências.

A grande dificuldade será, naturalmente, a de lograr garantir o efectivo exercício dos direitos dos associados e dos grupos minoritários sem retirar aos sindicatos o seu espaço próprio de actuação enquanto ente colectivo: assegurar a liberdade sindical individual sem asfixiar a liberdade sindical colectiva. Entre uma visão puramente institucionalista ou

colectivista, capaz de obliterar os interesses individuais na protecção da tutela da liberdade

sindical colectiva, e uma visão marcadamente liberal, centrada na salvaguarda dos direitos individuais em termos que comprometam a esfera jurídica dos próprios sindicatos e a sua autonomia colectiva, há que encontrar um ponto de equilíbrio e harmonização, uma lógica de

laissez-faire sindical, que encontra paralelo em alguma doutrina estrangeira 11. Mas este deverá ser, afinal, o que a própria Constituição pretendeu fixar. À lei ordinária caberá, pois,

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Cfr. EDUARDO COSTA, «Autonomia e Democracia Sindical», in Revista de Direito e de Estudos Sociais, Abril-Setembro, ano XXXX (XIII da 2.ª série), n.ºs 2 e 3, Coimbra, 1999, p. 133 e ss. (p. 146).

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O conceito de «collective laisser-faire», avançado por Otto Kahn-Freund, traduz a ideia de que a lei (e o Estado) deve abster-se de interferir nestes domínios, deixando a negociação colectiva e os seus actores regularem os seus interesses livremente, solução que, segundo o autor, é imprescindível para a realização da justiça e da estabilidade das relações de trabalho. Cfr. RUTH DUKES, «Otto Kahn-Freund and Collective Laissez-Faire: An Edifice without a Keystone?», in Modern Law Review, vol. 72, Issue 2, Oxford, 2009, p. 220 e ss.

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alinhar-se com um quadro de equilíbrios que lhe é superiormente imposto pela Lei Fundamental.

Todavia, em Portugal, não tem sido essa a tendência das orientações legislativas. Numa solução que é diametralmente oposta à de algumas experiências estrangeiras, onde a tutela da liberdade sindical se esgota na respectiva definição, em termos minimalistas, na própria Constituição12, o legislador nacional, ao estabelecer a disciplina jurídica das associações sindicais, optou por desenvolver um quadro normativo detalhado, o que fez tanto na Lei Fundamental como ao nível da legislação ordinária. Esta tónica garantista 13 tem estado na origem de problemas de dois tipos: problemas de conflito entre diferentes princípios fundamentais e problemas de colisão de normas de nível inferior com a CRP. Acresce que, invariavelmente, a apreciação das questões de inconstitucionalidade das normas (problemas do segundo tipo) tem desembocado em discussões sobre conflitos entre princípios constitucionais (problemas do primeiro tipo).

Neste último plano, a opinião dominante tem sido a de que o princípio democrático - que é, afinal, um dos sustentáculos do próprio sindicalismo, sendo dele indissociável -, actua (algo paradoxalmente) como elemento de limitação da autonomia sindical, ou seja: os

princípios da organização e gestão democráticas dos sindicatos actuam como limitadores do princípio da liberdade de organização e regulamentação interna dos sindicatos.

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Veja-se a experiência italiana, onde o artigo 39.º da Constituição nunca foi objecto de regulação pelo legislador ordinário: apesar de algumas iniciativas parlamentares, nunca foi aprovado o regime jurídico das associações sindicais, por se entender que a desregulação é a melhor forma de garantir a autonomia da organização perante os poderes públicos. Daqui resulta que, em Itália, as associações sindicais não têm personalidade jurídica, são meras associações de facto, mas a sua informalidade jurídica não prejudicou a

institucionalização dos sindicatos nem a sua participação activa nos processos de concertação social que ali

tiveram lugar nos anos '90. Cfr. MARINO REGINI e IDA REGALIA, «The prospects for Italian trade unions in a fase of concertation», in JEREMY WADDINGTON; REINER HOFFMANN (eds.), Trade Unions in Europe: facing

challenges and searching for solutions, ETUI, Bruxelas, 2000, p. 365 e ss. (p. 372 e ss.). Sobre as questões

levantadas pelo artigo 39.º da Constituição italiana, cfr. GIOVANNI CAZZETTA, «Scienza Giuridica e Trasformazione Sociali», in Diritto e lavoro in ltalia tra Otto e Novecento, 8.º vol., Milão, 2007, p. 388 e ss. 13

A esta solução não são alheias as razões de ordem histórico-política. A LS «preocupou-se em discriminar longamente o conteúdo dos estatutos dos sindicatos, indo bem mais longe do que o exigido pela lei geral para os estatutos das associações- artigo 167.º do CC. Tal pormenor explica-se pelo ambiente de confrontação registado aquando da aprovação da LS (...) e que a levou a tomar o maior número possível de precauções regularizadoras». Cfr. MENEZES CORDEIRO (1999), p. 449.

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Sobre esta questão, há que sublinhar que o princípio da organização e gestão democráticas «constitui uma irradiação do princípio democrático geral da CRP, que não se restringe à organização do poder político e às entidades públicas, antes se torna um princípio estruturante de todas as organizações colectivas especialmente daquelas, como os sindicatos, que assumem uma função constitucional relevante» 14.

A jurisprudência constitucional tem defendido que a liberdade sindical só pode ser restringida pelo legislador ordinário nos casos expressamente previstos na Constituição e que, em tais casos, haveria que observar o princípio da proporcionalidade: inserindo-se a liberdade

de organização e regulamentação interna dos sindicatos no catálogo dos direitos, liberdades e

garantias, qualquer juízo susceptível de implicar a sua limitação ou compressão deveria confinar-se à medida do estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (n.º 2 do artigo 18.º) e assegurar que as limitações não atingissem o conteúdo essencial da liberdade sindical (n.º 3 do artigo 18.º) 15. Tal entendimento levou o Tribunal Constitucional (TC) a pronunciar-se no sentido da inconstitucionalidade de diversas normas do diploma de 1975.

2. O excesso de regulação sobre o conteúdo mínimo obrigatório dos estatutos dos sindicatos

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