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3. TECNICIDADE, TRANSINDIVIDUALIDADE E XAMANISMO

3.3. AS ÁRVORES DE MIL BOCAS E OS CANTOS DOS XAPIRI

Os xapiri, se considerados como expressão de um desdobramento da realidade pré-individual ou do pensamento mágico descritos por Simondon, são uma formação que opera a rememoração dos processos de transformação da vida.

Um processo ativo de rememoração que os yanomamis sintetizam por meio da lógica das cadeias alimentares. A nutrição, para eles simbolizada na operação de caça, é um organizador do ecossistema. Predador e presa, no entanto, são ambos originários de uma realidade comum e é a percepção dessa realidade, atualizada no contato com as imagens dos xapiri, que orienta a ética de preservação da metaestabilidade do sistema por eles cultivada:

Há muito e muito tempo, quando a floresta ainda era jovem, nossos antepassados, que eram humanos com nomes animais, se metamorfosearam em caça. Humanos-queixada viraram queixadas; humanos-veado viraram veados; humanos-cutia viram cutias. Foram suas peles que se tornaram as dos queixadas, veados e cutias que moram na floresta. De modo que são esses ancestrais tornados outros que caçamos e comemos hoje em dia. As imagens que fazemos descer e dançar como xapiri, por outro lado, são suas formas de fantasma. São seu verdadeiro coração, seu verdadeiro interior. Os ancestrais do primeiro tempo não desapareceram, portanto. Tornaram-se os animais de caça que moram na floresta hoje. [...] Nós também, por mais que comamos carne de caça, bem sabemos que se trata de ancestrais humanos tornados animais. São habitantes da floresta, tanto quanto nós. (ibid., p.117)

Vista como registro constantemente atualizado de uma ampla malha de relações que compõem o todo vivo de seu ambiente, a atividade dos xapiri se apresenta como um exemplo da duração, um tempo que se constitui da incorporação contínua do contato com um novo, um diferente, uma experiência que evoca a necessidade de invenção; é ainda um exemplo de transdução, uma vez que a atividade dos xapiri é promover a transmissão de informações entre elementos cujos padrões de código são heterogêneos; e com isso é também uma demonstração de transindividualidade, um processo no qual todos os elementos heterogêneos envolvidos se modificam reciprocamente, entre si, modificam a si mesmos e modificam o meio que os envolve.

A vida se apresenta através deles como movimento e criação incessantes. No relato de Kopenawa, nos cantos que se sucedem sem trégua, reproduzindo palavras inesgotáveis, saídas de bocas inumeráveis, os xapiri rememoram e atualizam o trabalho coletivo da existência.

Os cantos dos xapiri, como se vê no trecho descrito em seguida, são reproduzidos pelos pássaros da floresta em sua diversidade. Estes, por sua vez, os obtiveram das árvores de cantos, que os acumularam através dos tempos. O relato de Kopenawa ilumina a diversidade de fios da malha de um tempo-invenção,

memória e criação. Uma duração que performa sua teia de significados, cuja tra(ns)dução permite aos xamãs manter presente e sempre renovado o aprendizado sobre como cuidar para que a dinâmica da textura do mundo da vida seja preservada. Ao entrarmos em contato com os cantos dos xapiri, mesmo privados da experiência do transe, é possível reconhecer o fluxo da multiplicidade de relações que eles revelam:

Os cantos dos espíritos se sucedem um após o outro, sem trégua. Eles vão colhê-lo nas árvores de cantos que chamamos amoa hi. Omama criou essas árvores de línguas sábias no primeiro tempo, para que os xapiri possam ir lá buscar suas palavras. [...] Os espíritos dos sabiás yõrixiama e os espíritos japim ayokora – e também os dos pássaros sitipari e taritari axi – são os primeiros a acumular esses cantos em grandes cestos sakosi. Colhem-nos um a um, com objetos invisíveis, parecidos com os gravadores dos brancos. Mas são tantos que nunca conseguem esgotá-los. [...] Cada xapiri possui seus próprios cantos: os espíritos tucano e araçari, os espíritos papagaio, os espíritos da ararinha weto mo, os dos pássaros xotokoma e yõriama e todos os outros. Os cantos dos xapiri são tão numerosos quanto as folhas de palmeira paa hana que coletamos para cobrir o teto de nossas casas, até mais do que todos os brancos reunidos. Por isso suas palavras são inesgotáveis. (ibid., p. 113-114)

A ênfase nas mensagens propagadas, nas quais através da antropologia vemos os mitos, Kopenawa redireciona aos processos que organizam a transmissão de informações. O modo de existência ameríndio, nesse sentido, também se assemelha ao modelo de conhecimento proposto pela cibernética. É preciso compreender as operações que estão por trás dos processos de organização dos padrões de informação. Em muitas passagens de seu relato, o xamã busca associações de seu conhecimento com as técnicas modernas de comunicação. A diplomacia cósmica se dá por fluxos canalizados de sinais, como se transmitida através da TV, dos rádios, dos celulares, dos gravadores ou da escrita. Ouvir e ver os espíritos é uma prática que o xamã apresenta não apenas como uma técnica, mas uma técnica de longo e difícil aprendizado:

Cada vez que bebemos pó de yãkoana, os xapiri descem de suas casas fincadas no peito do céu. Vêm a nós dançando sobre seus espelhos, como imagens de televisão. Seguem caminhos invisíveis à gente comum, delicados e luminosos como os que os brancos chamam de eletricidade. É por isso que seu brilho deslumbrante desaparece assim que se rompem. Esses incontáveis caminhos de espíritos vêm de muito longe, mas chegam perto dos xamãs num instante, como as palavras no telefone. (ibid., p. 172)

A yãkoana consumida por xamãs de diferentes grupos ameríndios os leva a outro patamar de rememoração. É como se, através do estado alterado de consciência, alcançado pelo desenvolvimento de uma biotecnologia, que envolve a manipulação de plantas e seu modo de utilização, os xamãs tivessem acesso à própria visualização ou vivência da duração em si:

Os mais reluzentes são os espíritos mais antigos. Ficam vindo em nossa direção sem parar, acumulados em filas sem número. Suas imagens são a de todos os habitantes da floresta que descem do peito do céu, um depois do outro, com seus filhotes. As araras- vermelhas, amarelas e azuis, os tucanos, papagaios, jacamins, mutuns, cujubins, gaviões herama, wakoa e kopari, morcegos e urubus são muitos na floresta, não é? E os jabutis, tatus, antas, veados, jaguatiricas, onças-pintadas, suçuaranas, cutias, queixadas, macacos-aranha e guaribas, preguiças e tamanduás? E os pequenos peixes dos rios, poraquês, piranhas, peixes pintados kurito e arraias yamara aka, então? (ibid., p. 116)

Podemos observar mais claramente a descrição do atravessamento de planos de realidade através de outro relato, trazido por Cesarino, colhido pelo antropólogo colombiano Reichel-Dolmatoff em sua experiência com os Desano94 . Nesse relato, um indígena desano descreve a existência de um muro que separa o mundo natural de um outro plano, que ele chama em sua língua de Axpikon-diá (CESARINO, 2019, p. 500). O acesso a esse outro plano só é possível através de uma bebida, yagé, que promove a transposição entre mundos, ou seja, a passagem através do muro que os separa. A mesma palavra usada para descrever o muro é usada também para descrever o efeito de atravessamento do muro. O muro é uma camada de proteção, mas que não é intransponível. E o informante associa o termo ambivalente a outras combinações de termos nos quais a palavra se conecta, que reforçam seu duplo sentido: o termo conectado a um outro passa a significar placenta e também, em outra combinação, significa uma imagem mitológica do tempo da criação: uma cobra-canoa. “A canoa é uma coisa estranha à água. Ela não é da água, do contrário não flutuaria. É outra coisa. É uma casca que protege.” E complementa: “se levantarmos a camada que há por trás de um espelho,

94 Os desanos são um grupo indígena que habita no noroeste do estado brasileiro do Amazonas, mais

precisamente nas Áreas Indígenas Alto Rio Negro, Médio Rio Negro I, Médio Rio Negro II, Pari Cachoeira I, Pari Cachoeira II, Pari Cachoeira III, Taracuá, Yauareté I e Reserva Indígena Balaio, além da Colômbia (DESANOS, 2019).

podemos ver através” (REICHEL-DOLMATOFF, 1973, p. 180-181, apud CESARINO, 2019, p. 500).

O uso do duplo sentido de palavras – um muro, uma placenta, uma canoa – feito pelo indígena desano para descrever a transposição de mundos como equivalente tanto a um anteparo como à possibilidade de passagem entre mundos nos remete a duas descrições do modelo de adivinhação cibernético, que vimos nos capítulos 1 e 2. A primeira, relativa ao duplo sentido da palavra grega kubernêtês – que significa ao mesmo tempo aquele que governa, dirige, comanda, um navio, e o leme, a peça, o objeto técnico, que permite ao timoneiro do navio mantê-lo em determinada direção, assim como fazer as manobras necessárias. E a segunda, feita por Bateson, que faz uso da ideia de um anteparo que divide uma imagem: se for possível compreender os padrões de organização da informação em um dos lados, é possível projetar a imagem inteira. Esse é o modelo matemático de probabilidades desenvolvido pelo modo de existência do pensamento científico dito moderno ocidental. O que os relatos dos povos ditos primitivos tentam nos informar é que eles também têm uma tecnologia de acesso ao invisível e que ela enxerga planos que a nossa ciência não alcançou ou não teve interesse em alcançar.

Muitas camadas de malhas aparecem na constituição do relato de Kopenawa. As relações dos yanomamis com os espíritos da floresta e com as entidades que falam através deles se entrelaçam com a vida dinâmica das relações entre todos os seres e o ambiente da floresta, o clima, os rios, os animais, os vegetais. O universo do que seria a realidade pré-individual e seu percurso atravessa as relações cotidianas dos grupos, as relações diretas entre os indígenas e os não indígenas, as relações institucionais entre os índios, os garimpeiros, os agentes da Funai, os antropólogos, os ativistas de organizações não governamentais.

A própria realização do livro A queda do céu valoriza o esforço de representar a coexistência de uma miríade de vozes e modos de existência – os xapiri, o xamã, o antropólogo, as mensagens e as variações linguísticas – para tra(ns)duzir os depoimentos do xamã. Numa sucessão de imagens, ouvimos os recados que falam da pureza dos rios, das regras de predação, da diversidade de papéis e funções no emaranhado da vida e a permanente advertência de que toda e qualquer ação repercute no todo.

Sobre Kopenawa, Lévi-Strauss escreve:

É emblemático que caiba a um dos porta-vozes de uma sociedade em vias de extinção, como tantas outras, por nossa causa, enunciar os princípios de uma sabedoria da qual depende – e somos muito poucos ainda a compreendê-lo – nossa própria sobrevivência. (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 7)

Ao contrário da prática evangelizadora colonialista de conquista, dominação e exploração de um território, que hoje assume a lógica de um capitalismo globalizado, Kopenawa lança luz em seu livro sobre um drama comum a todos: não indígenas, indígenas e às demais espécies vivas do planeta, que é em si uma realidade viva e, portanto, metaestável. Para Kopenawa, o modo de existência que se disseminou globalmente em torno de uma sociedade de consumo desregulada promove o rompimento da malha tecida pelo emaranhado de relações que compõem a vida – por ele personificado na floresta em vias de destruição. O céu irá desabar, adverte ele. O pensamento ocidental traduziu o modo de existência indígena com as ferramentas que tinha para traduzir-se a si mesmo e, com isso, mantém aquele conhecimento a distância, sob o atributo de não-científico. O que por si só justifica o esforço de Kopenawa de usar um livro, traduzido em línguas dos modos de existência hegemônicos, para fazê-los compreender a mensagem dos

xapiri.

Ao propor a abertura da reflexão acadêmica ao pensamento indígena como contribuição para um olhar alternativo sobre o significado da tecnicidade na constituição dos mundos que habitamos, transformamos e através dos quais somos também transformados, me alio ao esforço de Kopenawa. Como escreveu Lévi- Strauss, em trecho reproduzido na abertura do relato do xamã:

O xamã yanomani não dissocia a sina do seu povo da do restante da humanidade [...]. Todos serão arrastados pela mesma catástrofe, a não ser que se compreenda que o respeito pelo outro é a condição de sobrevivência de cada um. (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 7) O livro de Kopenawa e Albert é, assim como os desenhos, uma tentativa de transmitir aos modos de existência não indígenas, através de determinados espíritos protetores da floresta – os xapiri –, o valor de seu conhecimento e a urgência de sua mensagem. A associação da técnica xamânica como diplomacia, a habilidade de adotar a perspectiva de outro, e, ainda mais, de outro que é caracterizado como essência vital – os xapiri –, parece apontar para outro modo de

interpretar o xamanismo para além de prática ritual de cunho religioso. Os xapiri, para os yanomamis, não são objeto de adoração por intermediação simbólica, como a história seleciona, organiza e cataloga os objetos e imagens de cunho religioso através dos tempos. Os xapiri são a presença e a atualização permanente dos processos de transformação contínua que caracterizam a vida.

Quero aqui, portanto, deixar de lado as interpretações da narrativa mítica yanomami em si para observar o xamanismo descrito por Kopenawa como expressão da tecnicidade-transindividualidade. O xamã como executor de uma atividade na qual associa o conhecimento das plantas e seus efeitos à transmissão de um modo de existência através de gerações. Fundamental aqui é ressaltar que esse modo de existência não é o de uma cultura humana específica, como se costuma catalogar. O que os xapiri de Kopenawa informam é a complexidade das relações transindividuais no mundo. Ou seja, retomando o pensamento de Leroi- Gourhan, podemos propor que os xapiri não são entidades, mas memórias de processos operatórios. E, estendendo a definição ao modelo cibernético, são memórias de padrões de organização da informação.

Assim, é possível sugerir que a prática do xamanismo como diplomacia cósmica é uma invenção de determinada variação de modos de coexistência produzida pelo encontro entre grupos humanos, plantas, animais e o ecossistema das Américas. Essa invenção teria permitido aos que a adotaram reconhecer a positividade do papel metaestabilizador que a realidade representa em sua diversidade.

Para que seja possível adotar esta perspectiva, será preciso, no entanto, ampliar a ideia de invenção ou inovação técnica centrada apenas na transformação da matéria para finalidades práticas. A técnica do xamanismo como diplomacia cósmica diz respeito a formas de manipulação da matéria – no caso, o uso de determinadas plantas em determinadas condições, consumidas por determinados sujeitos, educados para este fim –, mas, paralelamente, exige um conhecimento aprofundado, só possível através da ampliação da percepção, do universo de relações transindividuais que constitui o mundo. Universo que Lovelock traduziu com a teoria de Gaia, que vimos no capítulo 2. Planta e xamã se retroalimentam e alimentam a dinâmica das relações transindividuais que os envolvem.

O xamanismo é um ideal de conhecimento que opera de modo inverso ao do modelo científico ocidental, diz Viveiros de Castro. Enquanto este último implica a

distinção entre sujeito e objeto, o que resulta na dessubjetivação do objeto investigado, no xamanismo ameríndio “conhecer é personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 358). No xamanismo, há um sujeito que se desintegra para conhecer seu objeto. Nas palavras de Kopenawa, “vira um fantasma”.

A prática pressupõe ainda uma temporalidade embutida, uma vez que os humanos veem os animais e as plantas como formas que ocultam uma humanidade interna ancestral, invisível aos primeiros, e, inversamente, cada espécie se vê como humana e aos homens como não-humanos. Apenas entre seres de uma mesma espécie, portanto, a forma humana é visível (ibid., p. 350-356). Não-humanos serão sempre os outros. Mas a noção de uma humanidade primeira comum está presente na consciência coletiva da ancestralidade que é permanentemente atualizada nas relações cotidianas entre os seres. Nesse universo de perspectivas diversas, no qual todos os seres são originários de uma espiritualidade comum, o que os distingue são justamente seus corpos. Corpos estes que espelham o modo como sua ação é determinada pelos afetos diferenciados e pelas formas particulares da vivência de cada um.

Como escreve Simondon na introdução à Individuação sob a luz das teorias

da forma e da informação, a reflexão filosófica ocidental se constituiu e se

desenvolveu a partir de duas estruturas erguidas sobre uma mesma origem: a categoria de substância e o par matéria-forma. Nos dois casos, o pensamento foi buscar retrospectivamente os elementos que resultariam nas estruturas observadas e já dadas, a noção primeira de substância ou o par matéria-forma. Por mais que se retrocedesse, o raciocínio em si embutia a necessidade de uma resposta concreta, semelhante aos resultados dela derivados. Com base na observação dos processos físico-químicos de estabilização dos cristais, Simondon propõe que a questão seja alterada. É preciso investigar os processos de constituição dos indivíduos e considerar o processo em si uma existência. O que há antes não cessa de existir. Não há origem, há processo permanente de transformações, que contingencialmente consolidam formas.

No processo da vida, as formas nunca estão inteiramente consolidadas. A vida em si é a realidade anterior, a realidade em movimento do pré-individual, que promove em cada ser o movimento necessário à sua renovação constante. Quando essa carga de realidade pré-individual se anula em um ser, ele se cristaliza e tende

à degradação. Por este raciocínio, podemos interpretar a técnica xamânica como um processo que permite a experimentação e a observação de operações que emergem da realidade pré-individual, como o pensamento mágico, onde não há conectores delimitando contrastes definidos entre fundo e figura, onde planos de realidade se atravessam. No caso dos yanomamis, essas operações podem ser descritas como a própria atividade dos xapiri.