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ENTREATO I: A TENDA DO SUOR

4. MEMÓRIA, SENTIDOS E SENSORES

4.2. OS SENTIDOS DA LUZ

Vimos no começo deste capítulo que a manipulação da luz solar foi, na Antiguidade, uma invenção de medição do tempo. O relógio mecânico, por sua vez, séculos mais tarde, marcará uma nova mudança estrutural da vida em sociedade, ao dispensar o sol como regulador do tempo. Antes dele, os sinos eram os orientadores temporais das atividades de uma comunidade106. Os relógios mecânicos marcam a emergência do tempo padronizado do dia dividido em 24 horas e começam a ser instalados em praças públicas no século XIV (WHITROW, 2005, p. 77). Reduzidos para tamanhos transportáveis e multiplicados, entraram nos contextos de vidas privadas e em seguida aderiram aos corpos individuais.

Na “tela inicial” dos aparelhos celulares (isto é, naquilo que é imediatamente mostrado ao usuário quando se aciona o dispositivo), o relógio se mantém em posição de destaque. O tempo é elemento de controle da vida produtiva. Em uma das anotações de campo para esta pesquisa registrei a possibilidade de fazer um estudo social demográfico sobre qual o gesto de resposta de uma pessoa quando perguntamos a ela as horas. Dependendo da geração, como observei ao acaso, mesmo com um celular à mão e já sem estar usando relógio de pulso – que passou de regulador do tempo a simples adereço após a adesão em massa ao uso de aparelhos celulares –, a pessoa reage espontaneamente levantado o braço para olhar um hipotético relógio que um dia esteve ali. Com os aparelhos celulares ocupando um papel central nas rotinas cotidianas, a consulta às horas chegou a ser substituída por eles, mas não por muito tempo.

Como anunciavam os gestos de Jay Funk que apresentamos no capítulo 1, o complexo industrial e comercial de tecnologias digitais móveis multiplicou as possibilidades de uso desses dispositivos e, entre elas, trouxe de volta aos pulsos

106 Em seu livro O que é o tempo?, o historiador da ciência G. J. Whitrow destaca que até o século XVI

o instrumento mais confiável para marcar as horas ainda era o relógio de sol. O relógio mecânico teria sido inventado no século XIII, e os relógios de areia, que mediam apenas tempos curtos, no século XIV. Ele observa que a palavra clock, que designa relógio em inglês, se associa à palavra francesa cloche, que significa sino. “Os sinos tinham um papel importante na vida medieval, e é provável que os mecanismos para fazê-los tocar, feitos de rodas dentadas e alavancas oscilantes, tenham preparado o caminho para a invenção dos relógios mecânicos (WHITROW, 2005. p. 75-76).

os relógios. Os novos relógios também são nomeados “inteligentes” (smartwatches), porque, além de informar as horas, trazem em sua estrutura sensores que os conectam ao celular ou outros dispositivos a eles associados e capturam dados relacionados aos movimentos de seus usuários.

O reinado absoluto dos aparelhos celulares como o único dispositivo móvel de comunicação digital de uso individual não resistiu mais que uma década. Detalharei adiante esses desdobramentos, mas antes sigamos com os aparelhos celulares, cuja combinação de elementos estruturais, associada ao seu uso integrado às atividades cotidianas dos corpos de seus usuários, marca a abertura de novos processos e acelera exponencialmente o ritmo de desenvolvimento do modo de existência baseado em redes de comunicação e de serviços digitais.

Se considerarmos a pessoa que usa um aparelho celular como o ponto de entrada de informação em um sistema, o simples gesto de olhar as horas na tela inicial abre caminho para diversas vias, que significam a possibilidade de executar outras atividades além da de saber as horas. A forma como a interface entre os aparelhos e seus usuários é projetada reproduz o padrão de organização da informação que modela seu modo de existência: o processo multiplicativo da cadeia lógica do código binário. Os aparelhos embutem e integram a possibilidade de múltiplas funções e são desenhados para que seus usuários sejam estimulados a acioná-las.

Olhar as horas, portanto, passa a ter também o significado de entrada naquele outro mundo, invisível para quem não possui meios de acessá-lo: o mundo que emergiu a partir da disseminação global das redes de comunicação digitais. Já do ponto de vista da estimulação sensorial, olhar as horas pelo celular, ou simplesmente olhar para a tela dos aparelhos celulares, significa em primeiro lugar ter a vista impactada pela luz do visor do aparelho. A luz é a porta de entrada para um universo de movimentação e estímulos.

Como vimos no relato de Kopenawa, também a luz, uma luz ofuscante, é o sinal da chegada dos xapiri. Os xapiri são inúmeros e caminham sobre fios de luz, o que, em conjunto, explicaria a luz ofuscante. Mas os xapiri espelham as imagens acumuladas de toda a realidade que envolve os yanomamis, que se constitui de diferentes padrões de informação, distintos da realidade ordinária dos povos ameríndios. Os xapiri são a essência da multiplicidade de formas da vida natural.

Já a luz dos celulares abre caminho para a essência de um outro modo de existência: o modo de existência da modelização da vida natural. Este é o modo de existência de seres humanos para os quais a luz artificial integra seu mundo naturalmente, assim como a prática de fazer um modelo de mundo a partir das experiências com as cópias parciais que produziu do mundo natural. A imagem do relâmpago aprisionado não seria uma associação corriqueira no mundo organizado a partir de cadeias de atos exteriorizados e orientado pela lógica da restrição materializada. Ou, dito de outra forma, o modo de existência baseado em arquiteturas de contenção, acúmulo e direcionamento de fluxos a partir de métodos de medição e controle.

No desenho yanomami que ilustra o capítulo 3, o Sol é o centro da rede de relações sempre aberta que aquele povo estabelece com o mundo. O Sol é o que alimenta a vida e estar vivo é constatar, pela experiência do movimento incessante de transformação recíproca de todos os elementos que dão forma ao mundo, que observar é fazer parte desse movimento. A atenção ao movimento do Sol, seus trajetos e ciclos, é complementada pela atenção aos ciclos dos demais astros, que, por sua vez, só se tornam visíveis com a escuridão, quando o Sol se recolhe. Posto em um plano secundário da vida cotidiana, como se sua presença não mais significasse vitalidade, o Sol é substituído pela luz artificial. O dia se estende e uma outra luz o determina.

A apreensão da atenção para a apresentação da realidade é objeto da história da arte, da literatura e dos meios de comunicação. Imagens, textos, sons, imagem em movimento foram sendo capturados, reproduzidos e transmitidos alterando em processos cada vez mais acelerados a experiência humana do que seria a realidade. Hoje, o desenvolvimento e a rápida disseminação do uso de meios de comunicação portáteis ampliaram essa imersão da atenção.

Envolvida por reflexões assim, a primeira pergunta que me fiz quando tentava compreender qual era a questão central da minha pesquisa foi: onde estamos quando estamos online?

A pergunta dizia respeito à memória no sentido em que Bergson a pensou e a definiu. A memória como duração, o tempo como invenção, um tempo não segmentado, mas cumulativo, e que se alimenta de experiência. Se a memória nutre o tempo – não um tempo sequenciado cronologicamente, não um tempo medido por sucessões de espaços lineares, mas um acúmulo de experiências vividas –, que

memória produzimos quando estamos online? Dito de outra forma, como podemos relacionar a experiência da relação entre os corpos humanos e os aparelhos celulares ditos inteligentes com a produção de memórias? Se a memória pura não habita um lugar e é constituída de movimento, de experiência, de exposição à vida, como se produz o tempo-invenção do sistema ser humano-mundo-aparelhos digitais?