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1. MODOS DE EXISTÊNCIA: MEMÓRIA, VIDA E INDETERMINAÇÃO

1.1. ATO I: FORMAÇÕES E CONTRASTES

Observemos os dois conjuntos de imagens a seguir. Figura 1

Montagem a partir de vídeo comercial de lançamento de modelo de aparelho celular

Fonte: Montagem produzida pela autora a partir de vídeo comercial publicado na plataforma YouTube (SAMSUNG, 2011).

Figura 2

Montagem a partir de vídeo que registra a fala de Ailton Krenak na Assembleia Nacional Constituinte, em 1988

Fonte: Montagem produzida pela autora a partir de quadros do vídeo publicado no canal Índio Cidadão, disponível na plataforma YouTube.

A primeira imagem é uma montagem feita por mim para esta pesquisa, a partir de quadros do vídeo comercial de lançamento do smartphone modelo SII, da Samsung, em 2011. A descrição do vídeo, que está armazenado na plataforma de vídeos YouTube, informa que o protagonista é o artista performático Jay Funk15, conhecido por sua habilidade na técnica de finger-tutting16, uma dança com dedos

que deriva de um determinado estilo da prática de street dance. O que se vê na sequência de quadros selecionada pela montagem? Um jovem afrodescendente, de camiseta cinza sobre um fundo também em tom acinzentado, exibe uma série de movimentos com as mãos. Suas mãos insinuam formas, cada vez mais elaboradas, até que o trajeto de seus movimentos seja associado a raios luminosos.

As formas inicialmente sugeridas pelos percursos de combinações variadas de movimentos dos dedos e das mãos são exteriorizadas em formações definidas pelo trajeto de raios de luz. São ainda as mãos que parecem conduzir as novas

15 Jay Funk é o nome artístico de Julian Daniels, ator, compositor e dançarino norte-americano que

se popularizou a partir de um vídeo em que apresentava sua habilidade na técnica de finger-tutting publicado no YouTube em 2009 (BOMFIM DOS SANTOS e SILVA, 2013, p. 68).

16 Finger-tutting é uma dança com dedos inspirada em um estilo de dança de rua que se baseia no

modo como os desenhos de movimentos humanos eram registrados na arte do Egito Antigo (ibid.). A palavra

formas luminosas, já distintas do corpo que as produziu, mas as novas formas se multiplicam e acabam por ocupar toda a cena.

A segunda imagem é também uma composição de quadros feita para este trabalho, a partir de vídeo disponível no YouTube, que registra o discurso de Ailton Krenak, representante do movimento indígena, em defesa da Emenda Popular da União das Nações Indígenas na Assembleia Nacional Constituinte, em 198717. O que vemos? Um jovem indígena, de terno e gravata brancos, diante de um microfone, com algo na mão. A sequência indica que o que ele traz na mão é um pote de tinta preta, com a qual, enquanto fala, ele pinta o próprio rosto. Uma face, depois a outra face, a testa, o queixo, até ter todo o seu rosto escurecido pela tinta18.

Assim como o conjunto anterior, os gestos enfatizam o corpo como meio e como mensagem. Os dois conjuntos de imagens são compostos predominantemente de gestos com as mãos. Ambos os gestos orientam o desenho de novas formas, porém com direções distintas. No primeiro conjunto, vemos os gestos de Jay Funk como produtores de formas que se exteriorizam. Gestos que não se dirigem ao corpo que os conduz, mas para fora deles. O vídeo comercial de onde extraí as imagens tem um minuto e quarenta e quatro segundos de duração, mas apenas nos três segundos finais – que não aparecem nesta montagem – se explicita a presença do aparelho celular, objeto efetivo da propaganda. Um movimento dos dedos das mãos forma um retângulo e nele está o modelo de aparelho celular que motiva o comercial. Em seguida, uma tela escura interrompe a exibição do protagonista e nela está escrito o slogan: Unleash your fingers (liberte seus dedos).

17 Ailton Krenak discursou na Constituinte em defesa da emenda 40, que definia a sociedade brasileira

como pluriétnica, defendia o direito à organização social e à ocupação tradicional de terras e tinha como aliados a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Coordenação Nacional dos Geólogos (Conage) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). No artigo “A retórica indígena e a narrativa da Constituição”, publicado em edição da revista Suplemento Pernambuco nos trinta anos da Constituição de 1988, o professor de teoria literária Pedro Mandagará faz uma detalhada análise do discurso de Krenak e seu contexto social e político: "Naquele momento a emenda 40 e os direitos propostos para os povos indígenas estavam sob ataque midiático e político, e o discurso de Ailton Krenak interveio nessa discussão de forma contundente" (MANDAGARÁ, 2018, p. 2).

18 A tinta preta é obtida do jenipapo, que, ao lado do vermelho, produzido pelo urucum, são

amplamente usados em pinturas corporais dos povos indígenas em diferentes circunstâncias e variadas significações de acordo com cada cultura. Na introdução a uma entrevista com Ailton Krenak em 2013, o historiador Youssef Salomão Campos traduz a ação de Krenak como “umgesto rin’tá, armado de luto e de guerra” (CAMPOS, 2018).

O slogan ao fim do comercial exalta a ideia de libertação. Os gestos promovem algo que os liberta das formas. O que os liberta é um aparelho, que fica oculto durante quase todo o tempo de exibição do vídeo (e, por isso, optei por mantê-lo ausente da montagem). A invisibilidade do aparelho, no entanto, é um artifício discursivo para ampliar a visibilidade do que ele deve representar. No segundo conjunto, ao contrário, vemos os gestos reafirmando sua relação com o corpo que os conduz. Mas ali também o jogo de luz e sombra, visível e invisível, enfatiza o que está sendo ocultado. Há um corpo que se evidencia pelo próprio gesto que o deixa parcialmente escurecido pela tinta. Ambos, portanto, descrevem um processo de autotransformação. E essa transformação está associada a uma passagem entre o que se vê e o que não se vê.

O gesto do artista performático indica que esse processo de transformação é consequência de uma separação entre o corpo e aquilo que dele foi extraído. A transformação é aqui tratada positivamente, uma vez que separar as formas do corpo que as produziu é, segundo a mensagem final da propaganda, sinônimo de liberdade. O gesto de pintar o rosto, feito por Krenak, enfatiza que o corpo que o produz é afetado direta e negativamente pelo processo que o transforma. Seu corpo, representado pelo seu rosto, não pelas vestes que se mantêm intocadas pela tinta, é aquilo que se apaga e que ele quer denunciar. Um gesto de luto e de luta simultaneamente.

Os dois vídeos representam diferentes campos discursivos da esfera pública relacionados à persuasão. Um é construído pelo discurso publicitário19. O outro, por um discurso político20. O que vemos são dois homens incorporando personagens em uma cena. Nos dois casos, os gestos disputam a relevância na cena com as palavras. A composição de ambas as cenas apresenta intencionalmente detalhes que destoam de determinados padrões do contexto a que se referem. Krenak, um líder indígena, veste um terno branco para falar na tribuna do Poder Legislativo nacional. Ele escolhe não se apresentar ali com trajes típicos da sua etnia, mas, ao optar por um terno branco, rompe com o padrão de cores escuras do vestuário dos

19 No artigo que analisa o comercial da Samsung com Jay Funk (BOMFIM DOS SANTOS, SILVA, 2013)

esse tipo de propaganda é incluído em uma categoria nomeada pelo neologismo em inglês advertainment, que é definido como “misto de publicidade e entretenimento, assistido e compartilhado voluntariamente”.

rituais parlamentares e de negócios das sociedades ocidentais ditas civilizadas. Krenak vai de terno branco à tribuna falar na língua nacional instituída pelos não indígenas, ao mesmo tempo que exprime com gestos a marca da sua cultura; assim, enfatiza, com seus gestos, associados à composição do personagem que constrói para a cena, que não é como eles.

De outro lado, no filme publicitário, vemos um artista que construiu sua popularidade através de vídeos amadores na internet emprestar seus gestos a um comercial filmado em um estúdio e manipulado digitalmente para produzir efeitos especiais e o desejo de consumo de um aparelho celular dito inteligente. Jay Funk encarna as classes populares, uma significativa parcela da população que representa um mercado potencial importante para a expansão da indústria de produtos de tecnologia. Jay Funk está ali para representar uma potência que se desdobra em pelo menos dois sentidos. O primeiro é o de um mercado consumidor latente; o segundo, o de seus gestos, que vão emprestar à máquina a imagem que o fabricante necessita associar a seu produto: a de que ele é rápido, versátil e criativo. A tecnologia é como a mágica.

Os dois protagonistas e seus gestos coexistem e têm a potencialidade de afetarem-se reciprocamente na contemporaneidade. Os dois vídeos podem ser vistos por qualquer um, a qualquer hora e em qualquer lugar com os devidos equipamentos e conexão apropriada de internet. São modos de existência, de encontros e apropriações simbólicas, que compõem o emaranhado de interações permanentes e recíprocas, hoje aceleradas pela velocidade e a ubiquidade das relações mediadas pelas redes de informação digital. Neles, no entanto, é possível observar uma diferença de orientação. Os gestos, mais que as palavras, expressam sentimentos assim como são metáforas de uma atividade operatória; dito de outro modo, podem ser uma sequência que narra um processo emocional, podem ser uma sequência de ações de sentido prático e podem ainda ser uma integração de ambos. E são essas possibilidades de combinação que, como pretendemos demonstrar, se traduzem em indicativos de diferenciação de modos de existência.

Com os gestos de Krenak e Jay Funk, veremos agora de que modo a observação das sequências dos dois vídeos em um mesmo plano, o desta pesquisa, produz novas imagens que transcendem os universos de cada vídeo observado

individualmente e nos ajuda a aprofundar, de um lado e de outro, aspectos que os distinguem como exemplos de modos de coexistência na contemporaneidade.