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ENTREATO I: A TENDA DO SUOR

4. MEMÓRIA, SENTIDOS E SENSORES

4.1. ATO III: SENHORES E ESCRAVOS

A história das técnicas e das ciências apresenta um progressivo direcionamento da orientação da atenção dos corpos humanos para uma realidade criada pela própria espécie. Como vimos nos capítulos 1 e 2, a história das técnicas pode ser pensada também como a história de uma exteriorização de processos naturais que os seres humanos passam a expressar, por meio de comportamentos, de artefatos e da linguagem. Essa exteriorização se dá a partir de transformações que decorrem tanto das relações dos seres humanos com o mundo que os envolve como do mundo interior que os constitui como um organismo. Relações que, neste trabalho, estamos compreendendo como um processo de transformações ativadas

103 O neologismo ciberespaço surge pela primeira vez no livro Burning Chrome, obra de ficção

científica do escritor canadense William Gibson, publicada em 1982, e é retomado em seguida em outros livros do autor, entre eles Neuromancer. O ciberespaço antevisto por Gibson é “povoado por tecnologias de conexão capazes de gerar representações gráficas a partir de imensos bancos de dados”; e é também descrito na obra do autor como “alucinação consensual” e “exultação incorpórea” (SATUF, 2016, p. 207). O prefixo ciber remete aos modelos cibernéticos que emergem de estudos transdisciplinares iniciados após a Segunda Guerra Mundial.

por trocas de informação, nem sempre entre realidades de mesmo nível, o que definimos no capítulo 2 como relações transindividuais que envolvem padrões distintos de organização da informação.

O conhecimento que o pensamento ocidental chamaria de pré-científico baseia-se na experiência dos ciclos temporais vivenciada a partir do nível de realidade observado na vida na superfície da Terra, nos quais o tempo é regulado pela passagem dos dias e das noites, pelo movimento e a posição do sol, da lua e das estrelas. Como sabemos, os primeiros instrumentos técnicos de medição do tempo eram diretamente associados a esses ciclos. Os relógios de sol da Antiguidade marcavam o tempo a partir da interposição de um objeto entre o sol e o solo de modo a acompanhar a passagem do tempo através da sombra projetada do objeto no solo.

Também as primeiras medidas de peso e de distância tomaram como referência os corpos humanos. Pés, mãos, polegadas, passos, ou ainda as atividades humanas realizadas em determinado tempo, como a duração em dias de um percurso a pé ou a cavalo. A medida de acre, por exemplo, inicialmente representava o tamanho de terra que um homem conseguiria trabalhar durante um dia. Ou ainda a medida chamada de jarda foi estabelecida pelos reis saxões para representar a distância entre a ponta do nariz e o polegar de um braço esticado (BALBINOT, BRUSAMARELLO, 2015).

A imagem do homem vitruviano da Renascença, que reproduzimos na abertura deste capítulo, na qual Leonardo da Vinci exibe as relações de proporção matematicamente exatas de um corpo humano, com braços e pernas estendidos em duas posições sobrepostas, formando o centro dos desenhos sobrepostos de um círculo e de um quadrado, é a retomada de estudos da Antiguidade clássica feitos pelo arquiteto romano Vitrúvio104. O corpo humano é simbolizado como a referência das belas formas, o círculo e o quadrado, as mais simples e mais exatas. Embora as partes externas dos corpos humanos tenham sido as referências iniciais para o desenvolvimento de padrões de pesos e de medidas, os sentidos humanos não são a referência direta para o desenvolvimento de sensores artificiais.

104 Estudioso de padrões e medidas, Vitrúvio descreveu, em registros datados de 30 a.C., doze tipos

O conhecimento do funcionamento dos órgãos sensoriais humanos resulta de associações feitas a partir de descobertas de outros processos observados na natureza e na manipulação de elementos da natureza pelo ser humano. A ótica, ramo da física que se desenvolve a partir do século XVI, não se origina do conhecimento do funcionamento do sistema ocular, visto que este só seria desvendado um século mais tarde. Mas a ótica é um exercício de desdobramento das experiências com a luz solar e de seu comportamento em contato com diferentes materiais.

O desenvolvimento de técnicas que amplificaram as capacidades sensoriais humanas, como as lentes ópticas, são anteriores, portanto, ao conhecimento dos mecanismos e relações físico-químicas responsáveis pelo funcionamento dos sentidos nos seres vivos. Os sentidos nos seres vivos são produzidos por uma rede de relações físicas no interior dos organismos, que envolve a produção de sinais magnéticos, químicos e mecânicos. Os sinais, ou sensores naturais, são uma resposta do organismo a determinados eventos que correspondem, do mesmo modo, a atividades mecânicas, químicas ou biológicas. Os sensores naturais se organizam naquilo que chamamos genericamente de sentidos. Visão, audição e tato são considerados sentidos físicos; e o paladar e o olfato, sentidos químicos (WHITROW, 2005, p. 35).

Os sensores naturais podem ser ditos especializados, mas apenas no sentido de mapeamento que a ciência promove distinguindo estruturas e funções nos organismos105. Os sensores da visão estão localizados na retina e envolvem os bastonetes e os cones, que captam sinais externos e os enviam por um percurso específico do sistema ótico até a área visual no córtex cerebral do lobo occipital. O som é identificado por uma oscilação de pressão, no ar na água ou em outro meio, que é detectada por um conjunto de elementos que compõem a estrutura sensorial que se convencionou chamar de aparelho auditivo. Dessa estrutura também fazem parte os órgãos que regulam o equilíbrio dos corpos humanos. A pele, generalização do tecido conjuntivo que está presente no corpo inteiro, associada a

105 Na revisão detalhada dos desdobramentos da literatura especializada da medicina, que resulta

em uma série de ensaios reunidos no livro O conhecimento da vida, o médico e filósofo Georges Canguillem demonstra os desvios decorrentes de analogias entre o funcionamento dos organismos vivos e mecanismos produzidos pelos seres humanos e apresenta vários exemplos em que aspectos descritos como especializados em determinada função se prestam a outra função em diferentes contextos (CANGUILHEM, 2012).

suas ramificações nervosas, produz os sinais que interpretamos como o sentido do tato. Olfato e paladar são sentidos que expressam a ativação de determinadas células nervosas localizadas no nariz e na língua, respectivamente.

Os sentidos e seus sensores naturais são conjuntos de processos orgânicos que não podem ser desvinculados da natureza do organismo, que, por sua vez, é dependente do meio em que está inserida. Ou seja, sentidos e sensores naturais têm uma natureza mais ampla que as funções especializadas e específicas que executam. As funções não definem os sentidos humanos. Os sensores artificiais, ao contrário, são definidos por aquilo que executam. E sua função é medir. Como vimos no capítulo 2, sensores artificiais são instrumentos de medição baseados em quantidades de transferência de energia.

Por que é importante distinguir sensores naturais de sensores artificiais? Porque essa distinção parece situar um exemplo fundamental de dobra do pensamento que molda uma realidade, se a observarmos a partir da teoria do ciclo das imagens desenhada por Simondon. O que quero dizer com isso? Que é a busca essencialmente humana de fabricação de instrumentos de controle da realidade que produz a necessidade de medição. Não há nada na estrutura biológica humana ou na natureza em geral que indique um processo de contabilidade escondido em algum lugar. A metáfora do cérebro como processador de estímulos que se assemelha a um computador é uma metáfora humana. E uma metáfora que embute a ideia de intencionalidade. O fato de que um determinado modo de existência tenha se desenvolvido a partir da medição do mundo para fins de controle da natureza de acordo com interesses pré-definidos não promove a intencionalidade a valor universal.

Assim, se aceitarmos essa distinção, diremos que os sensores produzidos pelos seres humanos mimetizam parcialmente determinadas funções observadas nos organismos vivos e as desenvolvem, segundo um modelo de intencionalidade, para atingir determinados fins. Como vimos no capítulo 1, o transdutor, modelo de dispositivo no qual Simondon se inspira para definir a noção de transindividualidade, não é exatamente um sensor, mas um dispositivo que contém sensores e permite a conversão de seus sinais de uma forma física para outra. O transdutor é como um tradutor de sinais entre sensores que falam línguas diferentes.

Em uma pesquisa simples por imagens na internet encontramos muitas variações do homem vitruviano de Da Vinci, usadas neste começo de século XXI para representar as possibilidades de uso dos sensores conhecidos como vestíveis (wearables), que descreveremos em detalhes adiante. Escolhemos uma dessas imagens para formar o conjunto que ilustra o tema deste capítulo. Essa mutação que produz o “vitruviano ciborgue” representa o que estamos chamando de modo de existência do ser humano com sentidos exteriorizados. Embora não estejam aparentes na ilustração, que, como cópia revisitada, carrega os traços da informação que a atravessa, as medidas a que o vitruviano ciborgue está associado já não são mais aquelas relativas às proporções de seu corpo, mas aos padrões de organização da informação relativos ao desempenho de suas atividades.

Essa imagem, no entanto, não é visível. Os padrões de atividade só produzem formas visíveis através de modelos estatísticos que envolvem imensas quantidades de dados e de cálculos para que esses dados sejam processados. As formas geradas pelos modelos estatísticos serão sempre, portanto, imagens de tendências de movimento. Tendências projetadas a partir da captação e do armazenamento de milhares de atividades singulares. O que é visível na ilustração do vitruviano ciborgue é o que ele simboliza: a imagem de um ser humano, do gênero masculino, vestido de terno preto na posição que se tornou ícone do antropocentrismo: o homem das belas formas. O terno preto é o traje ritual de determinada posição econômica e social do modo de existência dito moderno ocidental, que vimos no capítulo 1 ter seu aspecto alterado pelo contraste de cores no gesto também simbólico de protesto de Ailton Krenak. O modo de existência do ser humano com sensores incorporados, o modo de existência ciborgue, no entanto, como veremos, é um centro de emissão de dados, mais que um receptor e processador de sinais. Ele não está no centro da ação e nem a controla. Ele é o objeto que projeta uma sombra da qual se extraem informações sobre seus ritmos e seus percursos.

Mas, antes de nos aprofundarmos nos dispositivos constituídos de sensores vestíveis que envolvem o vitruviano ciborgue, avançarei um pouco mais na apresentação de seus “precursores”, os aparelhos celulares ditos inteligentes, na tentativa de descobrir o que eles talvez possam esclarecer sobre o modo de

existência que os produziu a partir da observação de como se organizam os seus “sentidos” elementares.