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ENTREATO II: UM CORPO EM FORMAÇÃO E SEU MUNDO

4.8. OS OBSTÁCULOS DOS SENTIDOS EXTERIORIZADOS

Se nos posicionarmos na perspectiva das possibilidades de expansão dos estudos de reconhecimento de atividades humanas através dos sensores, os principais obstáculos, segundo as pesquisas relacionadas ao tema, apontam três principais áreas em desenvolvimento: a gestão da segurança dos dados, o consumo de energia do processo de processamento e a diversificação de modelos de processamento dos dados.

Na pesquisa Recent trends in machine learning for human activity recognition

– a survey (RAMAMURTHY, ROY, 2018) os autores apontam que o maior obstáculo

ao desenvolvimento do processo de aprendizagem dos algoritmos associados ao monitoramento de atividades humanas é sua aplicação em ambientes não controlados: “The complex volatile, and chaotic nature of the activity data presents

numerous challenges that influence the performance of the AR systems in the wild

Podemos dizer, nos termos de Simondon que vimos no capítulo 2, que o objeto técnico concreto do qual o sistema aparelho celular-ser humano é um exemplo possível possui, até este ponto da análise, pelo menos duas faces, tendo cada uma delas uma espécie de zona de interdição em relação à outra. Diremos que, na relação de trocas de informação recíprocas, os usuários humanos provêm três tipos diferentes de dados aos aparelhos: a) os dados de seu sistema fisiológico; b) os dados do ambiente em que se encontram; e c) os dados associados ao que eles efetivamente escolhem transmitir e armazenar no sistema. Note-se que os dois primeiros tipos de dados serão captados pelo aparelho todo o tempo, independentemente da escolha consciente do usuário. Embora os aparelhos estejam programados para configurações de privacidade, ainda é muito nebuloso até que ponto elas são eficazes e elas ainda não garantem o domínio total dos usuários sobre as possibilidades de restrição à captura de dados dos dois primeiros tipos pelos sensores integrados aos celulares.

A quantidade de dados que podem ser captados por esses sensores e a variedade de combinações possíveis são infinitas. E aqui retomamos a proposição de Bergson que diz que “a amplitude da percepção mede exatamente a indeterminação da ação” (BERGSON, 2010, p. 29). O universo perceptivo potencial dos celulares, por um lado, é limitado arbitrariamente pela definição de modelos ou mapas de investigação à captação de alguns dados básicos para compor um sistema de monitoramento de movimentos. Por outro lado, é no campo da “percepção coletiva” decorrente da associação de dados de bilhões de sensores que se pode falar de amplitude da percepção e potencial indeterminação da ação. Com este raciocínio, podemos imaginar não cada aparelho ou sensor em separado e sua relação com o sistema ser humano-mundo, mas o coletivo de sensores e a amplitude de percepção por ele representada. A quantidade de dados produzidos por esses sensores integrados a aparelhos, em um mundo onde 96% da população vive em lugares ao alcance de uma rede de telefonia móvel (ITU, 2018), é uma massa imensurável e, por enquanto, sempre crescente.

Como vimos ao final do capítulo 2, Simondon imaginava a relevância de um especialista, um engenheiro, sempre a manter a regulagem e a orientação dos desenvolvimentos dos objetos técnicos concretos. Mas o modo e a velocidade com que as redes de informação se disseminaram, alcançando a integração de aspectos

moleculares das vidas individuais dos seres e dos objetos que se relacionam reciprocamente, não possibilitam uma gestão unificada. Quem ou o que fará com que a percepção coletiva dos sensores de aparelhos celulares se estruture e organize este contexto de indeterminação? Surgirá algum tipo de diplomacia cósmica como a do xamanismo para estabelecer um equilíbrio nas relações transindividuais nesse novo cenário da vida convertida em processos digitalizados? No artigo O cuidado como base epistemológica da produção técnica do

antropoceno, o engenheiro José Aravena-Reyes e Ailton Krenak110 fazem uma leitura de Simondon afinada com a que expusemos acima e concordam que para isso seria necessária “uma espécie de competência intelectual similar à de um ‘xamanismo aplicado’ no fazer técnico da engenharia”:

Tornar o engenheiro psicólogo das máquinas, organizador de tecnicidades ou desenvolver neles uma sensibilidade apropriada para entender a interioridade dos objetos técnicos, definitivamente é difícil sob uma epistemologia que separa homens e coisas e atribui a estas últimas um papel meramente utilitário e não cultural. (ARAVENA-REYES, KRENAK, 2018, p. 160)

Pensemos novamente no universo perceptivo potencial dos seres humanos, cujos desdobramentos possíveis demonstramos com exemplos das práticas do xamanismo no capítulo 3. Desse universo participa uma variedade de seres e objetos passíveis de integrar uma cadeia de eventos que envolve um ciclo de imagens como o proposto por Simondon e que podemos tratar como a sequência percepção-seleção-orientação-ação.

Como mencionado no capítulo 2, entre Bergson e Simondon há um desdobramento da noção de percepção. O primeiro dirá que perceber é orientar-se para agir. O segundo introduzirá a emoção nessa equação ao postular que, além de formas, a percepção envolve a captação de significados, ou seja, apresenta uma dimensão simbólica. Sendo assim, a percepção envolve graus de intensidade em um campo afetivo. Perceber, para Simondon, é atravessar um campo de intensidades, de tensões, formado por relações transindividuais.

110 Ambos são professores na Universidade Federal de Juiz de Fora. Aravena-Reyes, no curso de

Engenharia Civil; e Krenak recebeu ali o título de professor Honoris Causa, em 2016, após dois anos colaborando na universidade através do Curso de Especialização “Cultura e História dos Povos Indígenas” e da disciplina “Artes e ofícios dos saberes tradicionais”.

Se associarmos a noção de intensidades afetivas ao conjunto dispositivo celular-ser humano-mundo, teremos que os celulares se alimentam também das intensidades afetivas das relações transindividuais. Mas como isso se traduz nas cadeias operatórias dos celulares? Nossa pergunta inicial neste capítulo era: “onde estamos quando estamos online?”. A partir da observação de como são constituídos os “sentidos” dos aparelhos celulares podemos distinguir inicialmente dois pontos de percepção que se retroalimentam. O primeiro é o nosso corpo e seu contato com o aparelho como modo de perceber o mundo. O segundo é o aparelho e sua percepção do nosso corpo e de sua orientação. Dessa relação recíproca, se seguirmos Simondon, produz-se uma terceira, que é resultado das duas interações e destas com o mundo que as rodeia. Pensemos então sobre o que é a transindividualidade neste cenário.