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4. AS AÇÕES PREFERENCIAIS

4.2 As ações preferenciais sem direito de voto noutros ordenamentos jurídicos

4.2.1 Enquadramento

Concluído o preâmbulo histórico do presente capítulo, cabe agora passar breve revista sobre a figura das ações preferenciais noutros ordenamentos jurídicos antes de nos dedicarmos ao estudo do “renovado” regime das ações preferenciais sem direito de voto consagrado na lei portuguesa.

Desta forma, de maneira sucinta e sem a pretensão de sermos exaustivos ou de com este ponto empreendermos um verdadeiro estudo de Direito Comparado, trataremos de abordar rapidamente dois dos ordenamos jurídicos continentais de maior interesse para, num momento final, dedicarmos curtos parágrafos aos dois principais sistemas de Common Law.

4.2.2 Alemanha

No ordenamento jurídico alemão a disciplina legal das sociedades anónimas encontra-se prevista na AktG (Aktiengesetz), contendo este diploma o regime das ações preferenciais sem direito de voto (Vorzugsaktien ohne Stimmrecht) na parte referente à

343 Vide o ponto 4.3 infra. 344

Note-se que na versão originária do CSC não constava ainda a referência aos direitos de voto na disposição legal que regula as ações preferenciais remíveis, expressão que apenas recentemente foi introduzida com o DL 26/2015.

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constituição das sociedades anónimas, em concreto na quarta secção (Vierter Abschnitt), sexta subsecção (Sechster Unterabschnitt), entre o § 139 e o § 141.

Neste ordenamento jurídico os direitos especiais, em regra, são atribuídos a ações, sendo estas preferenciais (Vorzugsaktien) em função dessa atribuição e organizando-se por categorias de acordo com a semelhança do conteúdo dos direitos que lhes estão associadas346.

Para além disso, o regime aplicável aos direitos especiais tanto pode advir da cláusula geral de autonomia privada reconhecida quanto à conformação do conteúdo dos estatutos (§ 23, Abs. 5)347 e das normas que regem as categorias de ações (§ 23, Abs. 3, n.º 4)348, ou, alternativamente, resultarem já de regime típico legal, como são disso exemplo as ações preferenciais sem direito de voto (§ 139 a § 141)349.

Quanto ao regime legal das ações preferenciais sem direito de voto, que representam as ações privilegiadas de maior exposição350, como se referiu, não é muito extenso, bastando-se com a descrição da natureza desta modalidade de ações no § 139 (Wesen), com a regulação dos direitos que lhes inerem no § 140 (Rechte der Vorzugsaktionäre), e ainda com a revogação ou restrição dos direitos no § 141 (Aufhebung oder Beschränkung des Vorzugs).

Importa desde logo salientar que, de acordo com o disposto no § 139, Abs. 1, estas ações conferem um direito preferencial na distribuição dos lucros, quer sob a forma de dividendos ou de lucros de liquidação, e não atribuem direitos de voto. Por sua vez, por força do § 139, Abs. 2, estas ações só podem ser emitidas até ao limite máximo correspondente de 50% do respetivo capital social. Note-se, no entanto, que a AktG não fixa um limite mínimo para o dividendo a atribuir a estas ações.

De acordo com o § 140, Abs. 1, as ações preferenciais sem direito de voto conferem aos seus titulares todos os direitos normalmente reconhecidos aos acionistas, com exceção do direito de voto. Por sua vez, este dividendo prioritário é cumulativo nos termos do § 140,

346 Cf. PAULO OLAVO CUNHA, Os Direitos Especiais cit., p. 50.

347 Que, de forma genérica, permite que o conteúdo do contrato de sociedade inclua todas as previsões que não forem contrariadas pela AktG.

348 Norma que impõe também que o contrato de sociedade especifique os direitos concedidos às ações e o número de ações de cada categoria.

349 Cf. PAULO OLAVO CUNHA, Os Direitos Especiais cit., p. 50. 350 Idem, p. 55.

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Abs. 2, o que significa que se este não for pago, na íntegra ou em parte, durante dois anos os acionistas “recuperam” os direitos de voto até que aquele seja pago. Acrescente-se também que, conforme explica PAULO OLAVO CUNHA, a “supressão ou limitação de um privilégio

existente e a criação de acções privilegiadas em vida da sociedade, tal como qualquer outra modificação dos estatutos, têm de ser deliberadas pela assembleia geral (§ 179 Abs. 1 Satz 1), por uma maioria de, pelo menos, três quartos do capital social representado (§ 179 Abs. 2 Satz 2))”351.

4.2.3 Espanha

No ordenamento jurídico espanhol, desde 2010 que a disciplina legal aplicável às

sociedades de responsabilidad limitada e às sociedades anónimas passou a estar concentrado

na LSC (Ley de Sociedades de Capital). Este diploma veio assim proceder à unificação dos regimes daqueles dois tipos de sociedades comercias, que antes gozavam de regimes próprios autónomos, respetivamente, a Ley de Sociedades de Responsabilidad Limitada e a Ley de

Sociedades Anónimas.

Ao abrigo da LSC, as acciones sin voto gozam de um regime tipificado nos termos dos artigos 98 a 102, aplicável a ambos os tipos de sociedades referidos no parágrafo anterior. De acordo com o artigo 98, que regula a emissão destas ações, as sociedades anónimas poderão emitir estas ações até 50% do capital social pago, sendo que, como a própria denominação indica, não conferem direito de voto.

Por força do artigo 99, n.º 1, estas ações gozam de um dividendo preferente anual mínimo, fixo ou variável, de acordo com o que for estipulado pelos estatutos, sendo que não é estabelecida neste diploma uma expressão quantitativa mínima para aquele dividendo, ficando assim esta estipulação na disponibilidade da sociedade352.

351 Idem, p. 56.

352 Importa aqui salientar que este regime consubstancia uma das inovações da LSC, uma vez que na vigência da LSA era estabelecido no seu artigo 91, n.º 1, um dividendo mínimo de 5% do capital pago por cada ação. Neste sentido vide GUILLERMO PESO DE OJEDA, Las Acciones Sin Voto, in Contratos sobre Acciones: en homenaje a Frederico Pérez Padilla y Yanci, AA. VV., Civitas, Madrid, 1994, p. 256.

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Nos termos desta norma, uma vez pago o dividendo preferencial, cujo pagamento é obrigatório nos termos do n.º 2 se existirem lucros distribuíveis353, estes acionistas têm direito ao mesmo dividendo que for pago às ações ordinárias. Por sua vez, nos termos do n.º 3, este dividendo é cumulativo, devendo ser pago, na falta de os lucros distribuíveis em quantidade suficiente, nos cinco exercícios seguintes.

Nos termos do artigo 100, estas ações gozam de direitos especiais em casos de redução de capital para cobertura de perdas, gozando de um direito preferencial na liquidação da sociedade, pelo valor pago pela ação, nos termos do artigo 101.

Em matéria de direitos sociais, e de acordo com o artigo 102, n.º 1, “las acciones sin

voto atribuirán a sus titulares los demás derechos de las ordinarias, salvo lo dispuesto en los artículos anteriores”. Por sua vez, qualquer alteração estatutária que seja direta ou

indiretamente lesiva para o conteúdo destas ações está, nos termos do artigo 103, sujeita a deliberação aprovada maioria em assembleia especial de acionistas.

4.2.4 As ações preferenciais nos principais sistemas de Common Law

Uma vez que já foi dada grande ênfase às preferred stock a propósito do nascimento da figura no continente norte-americano354, interessa agora vermos rapidamente o enquadramento destas ações no MBCA (Model Business Corporation Act)355.

Quanto a este diploma interessa, no essencial, no âmbito do Capítulo n.º 6 (Shares

and Distributions), analisar o disposto no § 6.01. que versa sobre as ações que são admitidas

ao abrigo deste diploma. Assim, e de acordo com os comentários oficiais deste diploma: “Section 6.01(a) requires that the articles of incorporation prescribe the classes and series of

shares and the number of shares of each class and series that the corporation is authorized to issue. If the articles of incorporation authorize the issue of only one class of shares, no designation or description of the shares is required, it being understood that these shares

353 Idem, p. 257: “Por benefícios distribuibles há de entenderse tanto los benefícios del ejercicio como los que procedendo de ejercicios anteriores constituyan recursos de libre disposición”.

354 Vide o ponto 4.1.1 supra.

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have both the power to vote and the power to receive the net assets of the corporation upon dissolution”.

Desta forma, é expressamente previsto, nos termos do n.º 1 desta Section, que os estatutos de uma sociedade possam autorizar uma ou mais categorias ou séries de ações a ser dotadas “special, conditional, or limited voting rights, or no right to vote, except to the extent

otherwise provided by this Act”356. Por seu turno, o n.º 3 desta disposição prevê que as ações de uma sociedade possam conferir aos seus titulares direitos sobre as distribuições de lucros “calculated in any manner, including dividends that may be cumulative, noncumulative, or

partially cumulative”.

Ora, da leitura destes preceitos, e respetivos comentários, e como outra coisa não seria de esperar de um mercado de capitais com o grau de desenvolvimento como o norte-americano, a pedra de toque é claramente a liberdade de estipulação. Assim, respeitados os limites estabelecidos no MBCA, podem as sociedades conformar as ações que oferecem ao mercado como bem lhes aprouver, combinando as caraterísticas aludidas com uma amplíssima margem de discricionariedade.

Por sua vez, no Reino Unido o principal diploma normativo no plano do Direito das Sociedades é o Companies Act 2006 (Chapter 46). No entanto, e visto que este é um ordenamento jurídico historicamente descodificado, este diploma é ainda menos “impositivo” que o seu parente norte-americano. Em concreto, interessa a esta matéria o disposto na Parte 17 (A Company’s Share Capital), Capítulo 1 (Shares And Share Capital Of A

Company). Na Section 540 são tratadas as ações e na Section 541 a sua natureza, mas sem

detalhe algum que se diga poder impor um conteúdo predeterminado ao que será uma ação preferencial.

356 A propósito das voting shares, explicam os comentários oficiais à norma que “Any class or series of shares may be granted multiple or fractional votes per share without limitation”.

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