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4. AS AÇÕES PREFERENCIAIS

4.1 Evolução histórica das ações preferenciais sem direito de voto

4.1.1 O nascimento das ações preferenciais

As ações preferenciais, que nos dias de hoje estão liberalizadas globalmente enquanto instrumento de financiamento das empresas, nasceram em tempos idos, caminhando para a celebração do seu bicentenário ainda na primeira metade deste século. Contraposta à história do Direito, a história das ações preferenciais encontra-se num estádio de desenvolvimento que quase se pode dizer pueril, todavia, é visível neste tipo de ações uma evolução que julgamos merecer análise própria. No encalço deste mote, delinearemos nos próximos parágrafos algumas das principais feições das ações preferenciais originárias, em homenagem ao valor histórico do instituto para a sua compreensão no Direito das Sociedades contemporâneo.

Segundo relata HEBERTON EVANS, JR.296, as ações preferenciais nascem nos Estados Unidos da América ainda na primeira metade do séc. XIX, em concreto, no ano de 1836, no Estado de Maryland297. De certa forma, o surgimento deste tipo de ações decorre das mesmas linhas gerais que a fundação das sociedades anónimas, dado que emergem da necessidade de captação de fundos para grandes empreendimentos junto de pequenos aforradores, visto que reunir as avultadas somas necessárias de outro modo revelar-se-ia tarefa hercúlea e extremamente onerosa. Com efeito, a origem das ações preferenciais neste país está ligada à indústria da construção no setor dos transportes298, encontrando-se como sua manifestação primitiva a participação do Estado de Maryland em determinadas empresas de

296 Cf. HEBERTON EVANS, JR., The Early History of Preferred Stock in the United States, in The American Economic Review, Vol. 19, No. 1 (Mar., 1929), p. 43.

297 Todavia, conforme ressalva este Autor, o verdadeiro berço das ações preferenciais é europeu, referindo que esta figura era já admitida em Inglaterra desde há uma década, conforme se pode ler na nota n.º 20 deste ensaio que ora se transcreve na íntegra: “An example of an English statute authorizing the issue of «new» shares with a priority of dividend may be found in The Local and Personal Acts of Great Britain, 7 George IV c. 45 (1826)”. 298 Com a proeminência do setor ferroviário a ser saliente mas sem que esta obnubile o papel dos setores fluvial e rodoviário no desenvolvimento das ações preferenciais – que viriam posteriormente a ser exportadas para outros setores industriais nos meados do séc. XIX.

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desenvolvimento interno das infraestruturas, com especial relevo para a entrada no capital da

Chesapeake and Ohio Canal Co. e da Baltimore and Ohio Railroad Co.299-300.

Este tipo de grandes obras de infraestruturas eram não raras vezes orçamentadas por estimativas inferiores aos seus custos reais, o que levava a que fosse necessário recorrer à captação de novos fundos na pendência dos projetos. Sucedia, porém, que era difícil atrair novos investimentos uma vez que este tipo de empresas normalmente não geravam lucros nesta fase da sua vida e, para além do investimento feito na subscrição de capital por parte dos acionistas, recorriam frequentemente a outras fontes externas de financiamento, quer através de empréstimos concedidos por entidades públicas e de empréstimos por investidores privados, assim diminuindo a disponibilidade destes para novas contribuições. Foi assim, como se vê, num clima de emergência de capital por parte das sociedades emitentes que nasceram as ações preferenciais.

Desta feita, e depois de um pedido de ajuda financeira endereçado pelos administradores da Chesapeake and Ohio Canal Co. ao Estado de Maryland, deu-se início ao processo legislativo através do qual se visava permitir que este último participasse no capital de um elenco de cinco empresas (ligadas à construção de canais e de linhas ferroviárias), mas não sem que fosse devidamente “recompensado” pelo risco e esforço financeiro que assumia nestas circunstâncias. Consequentemente, depois de avanços e recuos nas “negociações” deste projeto legislativo, foi aprovada a lei que autorizava o Estado de Maryland a participar no capital das referidas empresas e que viria a desembocar na criação das ações preferenciais nos Estados Unidos da América.

Cumprido o devido introito quanto ao contexto histórico do surgimento das ações preferenciais, cabe agora referirmos as principais caraterísticas que estas ações apresentavam e que faziam delas ações especiais face às demais. Por um lado, as ações subscritas pelo Estado de Maryland na Chesapeake and Ohio Canal Co. eram dotadas de um dividendo prioritário anual de 6%, pago semestralmente, e devido até ao momento em que os lucros da

299 Cf. HEBERTON EVANS, JR., The Early History of Preferred Stock cit., pp. 44 e ss.

300 A primeira empresa foi responsável pela construção e exploração deste canal, que une as cidades de Washington, D.C. e de Cumberland (Estado de Maryland), e através do qual foi transportado carvão entre as duas cidades durante quase um século (sendo nos dias de hoje um parque nacional). Quanto à segunda empresa, estava encarregue de construir a linha ferroviária de mesmo nome e que é uma das mais antigas nos Estados Unidos da América.

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empresa alcançassem um determinado nível, a partir do qual passariam a participar nos lucros gerados em situação de igualdade com os restantes acionistas. Quanto a estas ações ficara ainda estabelecido que o pagamento inicial dos referidos dividendos apenas teria lugar três anos após a sua subscrição301. Por sua vez, no caso da Baltimore and Ohio Railroad Co., estas ações eram dotadas de um dividendo prioritário anual de 6%, exclusivo e perpétuo302, e, ainda, de uma “posição preferencial” na designação dos administradores da empresa303.

O caráter preferencial destas ações, como se percebe, era por isso manifestado na posição vantajosa conferida ao respetivo acionista quer no plano patrimonial, por referência ao dividendo prioritário, quer também no plano político, de acordo com a mencionada “posição preferencial” quanto à designação de administradores. No entanto, esta iniciativa legislativa não abordava de modo especial os direitos de voto do acionista preferencial, i.e. do Estado de Maryland. Esta era uma questão que à data não se colocava porquanto não se sentia a urgência de “equilibrar” o conteúdo destas participações sociais com a privação dos direitos de voto304.

Em rigor, é até antagónica a ideia que preside à criação destas ações. É que no caso da Chesapeake and Ohio Canal Co. não foram “exigidas” especiais prerrogativas no domínio político da empresa uma vez que por efeito da subscrição de ações o Estado de Maryland passaria a deter mais de metade do capital, razão pela qual controlaria por esse efeito o respetivo conselho de administração, o que não sucedia no caso da Baltimore and Ohio

Railroad Co., onde esta participação se cifrava em apenas um terço do respetivo capital. De

facto, a ausência da privação dos direitos de voto justificava-se pela fragilidade da situação financeira da empresa, julgando-se ser equilíbrio bastante o facto de se investir em empresas

301 Cf. HEBERTON EVANS, JR., The Early History of Preferred Stock cit., p. 46.

302 Ou seja, devendo o eventual remanescente dos lucros da empresa ser repartido pelos restantes acionistas mas já não cabendo qualquer fatia ao Estado de Maryland e, por outro lado, mantendo-se estas ações com o descrito caráter preferencial enquanto fossem por ele detidas.

303

Cf. HEBERTON EVANS, JR., The Early History of Preferred Stock cit., p. 47.

304 Idem, p. 57, afirmando o Autor que “[i]t seems that preferred stock had the same or practically the same voting rights as common in spite of the fact that statutes seldom covered this point”, reiterando posteriormente que “[g]enerally preferred stock had the same voting rights as common” (cf. p. 58).

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que não geravam lucros à data e que obrigavam a um dispendioso buy-in, pelo que a esta posição de elevado risco deveria corresponder uma rentabilidade acima da média305.

Uma vez aprovada esta lei, a efetiva entrada no capital destas empresas exigia, não obstante, o consentimento das mesmas para o efeito. Ora, o conteúdo destas ações encontrou opositores entre os acionistas da Chesapeake and Ohio Canal Co. que chamaram a atenção dos restantes acionistas (que participariam no processo deliberativo com vista à obtenção do referido consentimento) para o que entendiam ser o “unreasonable and anomalous character

of the loan”, que os colocava numa situação em que os seus direitos e interesses eram

coartados de modo a dar espaço à presença do Estado de Maryland na empresa, que viam como um “monopolizing «preferred stockholder»”306.

Este é, assim, um dos marcos iniciais na história das ações preferenciais, tendo nascido nos Estados Unidos da América como um instrumento financeiro sui generis à data e que permitiu o “empréstimo” de fundos a empresas de construção por parte de entidades estatais, através da subscrição de ações preferenciais, e que rapidamente se metamorfoseou num instrumento de financiamento disponível ao público em geral.

Exemplo desta abertura ao público é o caso da Boston and New York Central

Railroad Co., em 1855307. Neste caso concreto, em que estava em causa um aumento de capital por emissão de ações preferenciais de “primeira classe”, foi reconhecida aos credores da empresa a faculdade de converterem a sua dívida (incluindo os respetivos juros) em ações que conferiam um dividendo prioritário anual de 6%, pago semestralmente, que incluía também o direito a participarem na partilha dos lucros remanescentes em condições de igualdade, depois de pagos os restantes acionistas ordinários pelo mesmo valor. Merece também destaque nesta autorização para a emissão de ações preferenciais o facto de se tutelar

305 Uma vez mais, ressalta aqui o significado ínsito no brocardo latino ubi commoda, ibi incommoda. 306

Cf. HEBERTON EVANS, JR., The Early History of Preferred Stock cit., pp. 48-49.

307 Empresa de construção e exploração de linhas ferroviárias que foi autorizada a aumentar o seu capital através da emissão de ações preferenciais, conforme diploma legal em arquivo disponível em

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expressamente os direitos de subscrição destas novas ações por parte dos acionistas da empresa à data308.

Concluindo, nos primórdios das ações preferenciais estas eram configuradas como instrumentos de financiamento especialmente vocacionados para a injeção de capital em empresas de grande envergadura em dificuldades financeiras e que, por essa mesma razão, conferiam aos seus titulares vantagens de índole patrimonial – sendo o dividendo prioritário o seu traço distintivo e que erguessem vozes no sentido de o considerarem uma verdadeira garantia do investimento efetuado309 –, normalmente de caráter temporário, sem que com isso implicassem uma necessária diminuição dos direitos políticos reconhecidos à generalidade dos acionistas.