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3. OS DIREITOS ESPECIAIS NAS SOCIEDADES ANÓNIMAS

3.2 As categorias de ações e os direitos especiais

3.2.2 Conceito de direitos especiais

A exposição e análise do regime legal dos direitos especiais que temos vindo a efetuar até agora permite-nos que neste momento nos ocupemos de perceber qual afinal o conceito de direitos especiais284. Com isto pretendemos saber, pois, de um ponto de vista assumidamente teórico, o que se deverá entender por direitos especiais, e já não qual o regime que os disciplina, por exemplo, na sua criação ou nas vicissitudes que enfrentam pela sua existência nas sociedades – tarefa que, ainda que de um modo brando e conciso, deixámos já para trás.

Diga-se, em primeiro lugar, que esta discussão é transversal a todos os tipos de sociedades, não obstante apresentar especificidades no caso das sociedades anónimas. De modo congruente com o que temos vindo a fazer ao longo do presente estudo, procuraremos abordar esta questão por referência às sociedades anónimas (ainda que, lá está, as mesmas ideias e conclusões não procedam da mesma forma para os restantes tipos de sociedades).

Esta problemática deriva, desde logo, da letra da lei. Com efeito, o artigo 24.º, n.º 1, fala em direitos que por estipulação no contrato de sociedade sejam criados para “algum

sócio”. Discute-se, nesta medida, se devemos ver os direitos especiais como aqueles direitos

que são concedidos somente a alguns dos acionistas ou se, diversamente, a qualificação destes direitos como especiais é independente desta questão, e, como tal, todos os acionistas da sociedade poderão, em tese, ser titulares de direitos especiais.

Ora, como se vê, concorrem para a resposta a esta indagação duas correntes doutrinárias bem determinadas285. Apesar de já se poderem encontrar indícios nos pontos anteriores deste capítulo sobre qual a tese que julgamos ser a mais acertada, vejamos sucintamente em que consistem através de alguns dos contributos que podemos encontrar no seio da doutrina nacional.

Para uma primeira corrente doutrinária, que se mostra mais fiel a uma interpretação literal do artigo 24.º, n.º 1, o conceito de direito especial contém, por isso, uma conotação

284 Com a figura dos direitos especiais não se confundem as suas figuras afins. Sobre estas remetemos melhor desenvolvimento para, entre outros, PAULO OLAVO CUNHA, Os Direitos Especiais cit., pp. 166 e ss. e CRISTIANO DIAS, Os Direitos Especiais cit., pp. 113 e ss.

285 Segundo CRISTIANO DIAS (cf. Os Direitos Especiais cit., pp. 86 e ss.), estamos aqui perante uma conceção restrita e uma conceção ampla quanto ao entendimento do significado de direito especial.

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subjetiva de que é indissociável, razão pela qual a especialidade do direito encontra-se ligada àqueles que são seus titulares. Quer isto dizer que um determinado direito será especial se não for partilhado pela generalidade dos acionistas, ou seja, conforme ensina RAÚL VENTURA: “O direito atribuído a um sócio é especial porque é diferente dos direitos gerais atribuídos a

todos os outros sócios, porque só um sócio goza desse direito, tal como no contrato de sociedade é configurado. E, como é natural, a diferença é para favorecer o titular e daí a terminologia também usada, «direitos prioritários» ou «direitos privilegiados»”286.

Do mesmo modo, para PAULO OLAVO CUNHA o modo de aferição do caráter especial de determinado direito não tem que ver necessariamente com a substância do direito em causa, devendo este juízo entroncar-se na pessoa do titular, razão pela qual defende que “[o] critério que nos permite distinguir estes direitos dos direitos gerais reside, precisamente,

no facto de só poderem ser atribuídos a alguns sócios, estando por isso primordialmente afetos a interesses próprios do seu titular”287. Evidencia-se, mais uma vez, que para este entendimento sobre o conceito de direito especial releva a concessão de determinada vantagem ou favorecimento pretendido pela sociedade para um ou mais sócios, ou, no caso das sociedades anónimas, para uma ou mais categorias de ações.

De acordo com a conceção adotada por RAÚL VENTURA e por PAULO OLAVO CUNHA288, não podem ser titulares dos direitos especiais a totalidade dos sócios porque tal redundaria em que essa mesma especialidade se dissipasse, fazendo com que nenhum daqueles direitos fosse verdadeiramente especial289.

Em sentido oposto, a segunda corrente doutrinária identificada não vê através daquela perspetiva subjetiva o conceito de direito especial, defendendo, inversamente, que este é descoberto objetivamente, ou seja, pela análise do conteúdo do direito especial. Assim, ainda que não se pronunciando diretamente sobre direitos especiais, antes se referindo às ações especiais (o que, face ao que vimos antes, permite a extração da conclusão que se pretende), COUTINHO DE ABREU explica que “[s]ão especiais as acções que

286

Cf. RAÚL VENTURA, Direitos Especiais dos Sócios cit., p. 215.

287 Cf. PAULO OLAVO CUNHA, Direito das Sociedades Comerciais cit., p. 331.

288 Segue a mesma linha de pensamento, por exemplo, PUPO CORREIA, Direito Comercial cit., pp. 226-227. 289 Cf. PAULO OLAVO CUNHA, Direito das Sociedades Comerciais cit., p. 332.

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compreendem mais, ou menos, ou mais e menos direitos do que os legalmente estabelecidos para as acções em geral”290.

É também de acordo com esta perceção que CRISTIANO DIAS aborda esta matéria, referindo que “a forma mais correcta de abordar a questão não é recorrendo à ideia de

generalização ou não do direito especial. A «especialidade» do direito especial não deve ser colocada no campo de quem pode ser titular do direito especial, mas na natureza do direito especial em si mesmo”291. Da mesma maneira, conclui este raciocínio dizendo sobre o direito especial que este “é «especial» porque tem um regime diferente do comum/geral”292.

Tal como já se evidenciava pelo modo como fomos edificando este capítulo, somos da opinião de que a especialidade destes direitos não deve efetivamente ser aferida por um critério subjetivo que considere os seus respetivos titulares. Desta sorte, julgamos que a especialidade dos direitos deriva da diferença entre o seu conteúdo (para mais ou para menos) e o conteúdo elementar geral que já resulta da lei. É que, como vimos, a lei reserva uma série de preceitos à construção da condição de socialidade293, estabelecendo assim o supedâneo legal do que se deve considerar a panóplia de situações jurídicas ativas que derivam daquela e que são, por conseguinte, gerais, como é, de resto, a própria lei. Na sequência desta premissa, parece-nos ser a melhor opção aquela que toma por evidência da especialidade a vantagem (ou desvantagem) que por efeito de estipulação no contrato de sociedade se faz acoplar a determinada categoria de ações294.

Importa também destacar que se é verdade que esta conclusão é de suficiente certeza e amplitude que se possa (e deva) aplicar a qualquer tipo de sociedade, mais se aclara a precisão desta ideia quando vista sob o prisma das sociedades anónimas. Com efeito, enquanto no campo das sociedades de pessoas a maior relevância das pessoas dos sócios pode levar a que (erradamente) se adira ao referido critério subjetivo (ancorando-se tal defesa no favorecimento pessoal algum ou alguns sócios), tal conclusão perde algum sentido no caso das sociedades anónimas, onde efetivamente o benefício se faz por categoriais e as ações que

290 Cf. COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial cit., p. 215. 291

Cf. CRISTIANO DIAS, Os Direitos Especiais cit., p. 86. 292 Idem, p. 110.

293 Vide o ponto 2.2 supra.

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as conformam são transacionadas sob o princípio da livre transmissibilidade (artigo 328.º). Adicionalmente, parece-nos também refutar aquela ideia o facto de, nas sociedades anónimas, e considerando a livre transmissibilidade que se referiu, (à partida) nada impedir que todos os acionistas sejam titulares de pelo menos uma ação de uma categoria cujas ações confiram direitos especiais, o que leva a que todos os acionistas tenham direitos especiais295.

295 Tal como evidenciado pela exposição de SOVERAL MARTINS / RICARDO COSTA, anotação ao artigo 24.º, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário cit., Vol. I, p. 416.

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