• Nenhum resultado encontrado

2. Aprendendo as Abordagens

2.1 As Abordagens de Graça Mizukami

O livro Ensino: As Abordagens do Processo da Profa. Dra. Maria da Graça Nicoletti Mizukami, lançado em 1983 e tornou-se um clássico do ensino de pedagogia no Brasil. Elaborado a partir da tese de doutoramento da professora Mizukami, o livro vem sendo uma referência para alunos de pedagogia. A tese original foi uma pesquisa entre professores para verificar quais formas didático- pedagógicas vinham sendo praticadas em sala de aula, principalmente pelos professores do ensino básico.

A hipótese original para investigação perguntava “O que fundamenta a ação docente? ”, e “Qual a intencionalidade de toda ação educativa exercida por professores? ” (1983, p.XV). Havia a intenção em descobrir como a atividade letiva era exercida de fato. A forma de pesquisa utilizada foi quantitativa, com formulário que apresentava perguntas que apontavam para práticas docentes, através de categorias que poderiam evidenciar as práticas em sala de aula.

Mizukami aponta para a dificuldade ética de perguntar para o professor qual sua forma de trabalho (1983, p.XVI). Talvez esta dificuldade esteja relacionada com o período histórico que o trabalho foi desenvolvido, pois o Brasil vivia ainda os últimos anos da Ditadura Militar estabelecida desde 1964, que tinha suspendido as liberdades individuais em 1968/69, e que mesmo com uma certa tolerância do regime chamado de “Abertura” a partir de 1972/73, ainda censurava livros, canções, filmes e jornais nacionais e estrangeiros.

Havia um esforço por parte da intelectualidade da época, muito apoiado por setores cada vez maiores da Igreja Católica, em resgatar valores como a liberdade do indivíduo, entendida principalmente como liberdade de expressão, e liberdade de participação política. Neste sentido, as discussões públicas sobre a ética atraíam multidões de jovens que lotavam os anfiteatros das universidades, em busca de respostas para uma situação cotidiana de autoritarismo expresso a partir do uso das forças armadas e da polícia política, que prendia e torturava todos aqueles que eram considerados perigosos para a manutenção da ditadura.

Numa democracia contemporânea, a exigência de transparência no trato com a coisa pública, e também na iniciativa privada, transformou a coleta de informações cada vez mais numa obrigação. Talvez hoje em dia, a preocupação ética original se mantivesse no sentido de não expor um profissional à curiosidade mórbida de seus colegas. Mas em todo mundo há grande interesse em constante verificação das práticas escolares, pois acredita-se no senso comum, que os primeiros anos escolares são decisivos para a determinar a qualidade de convivência democrática de uma sociedade.

Nos países onde toda a formação desde o ensino básico até a conclusão do ensino médio o conhecimento permite não apenas o entendimento da realidade a partir da ciência, mas principalmente a profissionalização da maior parte da população, identifica-se um respeito evidente pela coisa pública e pelo outro. A alteridade permite uma cooperação social que é transformada em resultados práticos, como a manutenção de espaços públicos como parques e jardins, do patrimônio público como museus e prédios históricos, mas também de menor violência no trânsito com um número menor de fatalidades.

Também facilita campanhas de hábitos preventivos de saúde, a reciclagem do lixo e a busca de formas menos agressivas de industrialização e de produção de energia. Com maior segurança e estabilidade do cidadão, as questões éticas se deslocam dos maus tratos infligidos às pessoas físicas, permitindo a construção da ética social, que desde os gregos, através de Spinoza e Hegel é pensada como a ética de maior importância histórica.

A preocupação investigativa de Mizukami era evidenciar as escolhas didáticas dos professores para poder analisar o fazer pedagógico através de conceitos que podiam ser categorizados numa taxionomia (1983, p.XVI). Podemos intuir que a pertinência deste estudo à época, podia desvelar motivos do autoritarismo presente através do apoio que a ditadura militar encontrava junto à população.

A pesquisa investigou os posicionamentos de professores de escolas públicas do ensino de quinta a oitava série, como também da nona a décima segunda série na cidade de São Carlos, no interior de São Paulo.

São Carlos hoje conta com um dos maiores Índices de Desenvolvimento Humano do Brasil, com um crescimento desde 1991 até 2015, de 0,620 para 0,805. A presença de dois campi da Universidade de São Paulo (USP), além do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) e da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), além de um centro universitário privado, e de centros de formação profissional do Senai, Sesi, Sesc, Senac, Instituto de Educação e Tecnologia de São Carlos (IETECH), uma Faculdades de Tecnologia de São Paulo (FATEC) e uma Escola Técnica Estadual tornam São Carlos a cidade com maior número proporcional de professores universitários do país. Também hoje em dia o ensino público oferece mais de 100 unidades desde o ensino básico até o ensino médio17. Um conjunto de aproximadamente 50 escolas privadas complementa a

grande diferença entre esta cidade de cerca de 240 mil pessoas18 e o resto do

Brasil.

Mesmo assim, a censo de 2010 indicava a presença de aproximadamente 6000 pessoas analfabetas acima de 15 anos, distribuídos de forma igual entre a população branca e parda. Pelo mesmo censo de 2010, a população da cidade é composta de 72,34% de brancos descentes principalmente da migração italiana do começo do século 20, 5,28% de negros e 21,56% de pardos. O cenário em que Mizukami desenvolveu sua tese, era um prenúncio deste retrato estatístico que temos hoje em dia.

Mencionamos isso pois no texto do prefácio, Mizukami aventa a possibilidade da “intenção de prever e controlar a ocorrência dos fenômenos observados” (1983, p.XVI). Esta tese de alguma forma procede na observação desses fenômenos, principalmente no que diz respeito à comparação das ideias pedagógicas da época, com a atual.

Por outro lado, quando da sua pesquisa Mizukami estava consciente que ela não garantia a diferenciação do material teórico por parte dos professores, que de alguma forma adotam aqui e ali diversas propostas de teorias díspares no seu todo, mas que se tornaram instrumentos para os professores conseguirem trabalhar em sala de aula (1983, p.XVII).

Isto porque os elementos que ela buscava eram os elementos valorados pelos professores no processo de ensino-aprendizagem (1983, p.XVII). Outra ressalva era que eventualmente os professores não tivessem expressado suas

crenças e valores reais, mas “opções teóricas declaradas”, provavelmente pela força da moda acadêmica da época (1983, p.XVII). Percebe-se aqui que Mizukami está deixando claro a distância entre as práticas didáticas e as ideologias confessadas pelos professores.

Estas ideologias poderiam advir não simplesmente da compreensão dos professores das próprias teorias pedagógicas, ou eventualmente de um “ideário pedagógico” aprendido nos cursos de licenciatura (1983, p.XVII). O que ela não sabia na época, é que justamente este seu livro viria se tornar mais uma cartilha no ideário dos cursos de pedagogia e licenciatura em todo o país, quando os alunos passaram a utilizá-lo para “escolher” a linha de ação didática que viriam tentar praticar.

Os resultados da pesquisa foram analisados em três partes: conceitos referentes a diversas abordagens do processo de ensino-aprendizagem, opções teóricas declaradas e práticas manifestas.

Para Mizukami, o fenômeno educativo nunca é uma realidade acabada “que se dá a conhecer de forma única e precisa em seus múltiplos aspectos” (1983, p.XVIII). Para ela, é um fenômeno humano, histórico e multidimensional. Com esta afirmação Mizukami declara um caráter hegeliano originário de sua forma de pensar naquele momento. A dialética necessária para o entendimento do fenômeno assume a justaposição de diversas dimensões, como a técnica, a cognitiva, a emocional, a sócio-política, a cultural, aceitando suas múltiplas implicações e relações (1983, p.XVIII).

Mizukami percebeu que cada abordagem do processo ensino – aprendizagem privilegia um ou outro aspecto do fenômeno educacional, proporcionando sempre uma visão parcial. Portanto é possível reduzir a uma síntese cada grupo de teorias similares, onde o núcleo da teoria é o conceito básico sobre o qual elas são construídas. Numa abordagem humanista, a relação pessoal é o centro e a dimensão humana é o núcleo do processo de ensino-aprendizagem.

Na abordagem comportamentalista, há ênfase sobre a dimensão técnica, quando são esperados medidas e controles sobre o próprio processo. É interessante também verificar com ela as três características presentes nas

teorias do conhecimento que são o primado do sujeito, o primado do objeto e a interação sujeito-objeto (1983, p.2).

Essas posições teóricas resultam em diferentes formas pedagógicas, resultam de diferentes posições epistemológicas em relação ao sujeito e ao meio. Em outras palavras, Mizukami estabelece que toda filosofia desde o Iluminismo está presente nas diversas teorias psicológicas que sustentam o desenvolvimento de práticas pedagógicas. Veremos alusões a John Locke e sua ideia de que a criança é uma “tábula rasa” ou quadro em branco pronto a absorver o conhecimento do mundo. Também está presente a ética social de Spinoza, assim como os princípios da vontade de Kant. A dialética de Hegel vai se transformar na platônica dialogicidade de Paulo Freire, e o cientificismo do positivismo do século 19 terá continuidade nos estudos de Piaget (1983, p.2).

Neste sentido, a partir do primado do objeto, uma posição originalmente aristotélica, toda realidade se encontra dada no mundo, e o conhecimento desta forma é orientado por um associacionismo empirista através de uma aquisição exógena (1983, p.2).

Por outro lado, quando a ênfase está no sujeito, pretende-se a eventualidade de ideias inatas, que podem ou não sofrer processos de atualização. Para Piaget o conhecimento seria proporcionado através de uma pré-formação endógena. É interessante percebermos que as escolhas para formulação de teorias no século 20 ainda ecoavam discussões filosóficas anteriores em muitos casos a própria filosofia de Hegel. Essas teorias partiam do princípio lógico do terceiro excluído: A é x ou não-x, não há terceira possibilidade. Do ponto de vista lógico, a dimensão humana sempre permite a ideia de um bi condicional – por exemplo, se somente se – coisa que nas teorias pedagógicas são pouco aventadas.

Mas quando pensamos no cotidiano da sala de aula, verificamos que o aluno presta atenção, se somente se tiver comido antes da aula. Também o aluno consegue seguir um raciocínio, se somente se tiver entendido as suas premissas. Um aluno faz uma boa redação, se somente se conhecer anteriormente o contexto do seu tema. Todo esse bi condicionalidades, óbvias num ambiente escolar, não são apresentadas nas teorias pedagógicas tradicionais, tornando-as assim ideários de práticas.

Um aspecto mais ameno é proposto pelas teorias de advogam a interação entre sujeito e objeto. A construção do conhecimento se dá por descoberta, quase uma intuição do sujeito. Por outro lado, a construção do conhecimento avançaria através da formação de novas estruturas que permitiriam uma etapa mais sofisticada do entendimento. O construtivismo sequencial sugere que haveriam interações entre a posição endógena e exógena, permitindo assim um desenvolvimento alternado de percepção da realidade (1983, p.3). Isto permitirá à criança uma descoberta gradual conferida por sua genética hereditária e sua adaptação ao meio.

Assim de acordo com diversos referenciais da gênese do conhecimento humano, haveriam diversos condicionamentos do que é o ser humano, sua cultura e sua sociedade, e consequentemente sua educação. Esta hipótese será perseguida por Mizukami ao longo de todo livro.

Ela percebe que mesmo dentro das linhas principais, há abordagens diversas. Estas abordagens determinam a ação educativa a partir do planejamento das situações de ensino-aprendizagem, e são, portanto, intencionais (1983, p.3).

Portanto é possível extrair dessas ações algum referencial teórico a partir dos conceitos que ela elegeu como categorias de pesquisa. Isto porque os alunos de pedagogia aprendem teorias que se tornam ideários pedagógicos, que são filtrados por cada professor de acordo com sua própria visão de mundo, muito determinadas por suas vivências pessoais (1983, p.4).

Enquanto algumas abordagens apresentam claro referencial filosófico e psicológico, outras são intuitivas ou apenas imitações de modelo. Assim ela chega às categorias das abordagens, nomeadamente a abordagem tradicional, a comportamentalista, a humanista, a cognitivista e a sócio cultural. Uma abordagem fica deliberadamente de fora, que é a decorrente do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, quando a Revolução de 1930 comandada por Getúlio Vargas buscava diretrizes educativas para o futuro. Esta abordagem era, nas palavras de Mizukami, didaticista, privilegiando práticas educativas e a ideia de uma escola pública de tempo integral para a transformação social do país. Mas esta abordagem não defendia princípios teóricos claros, razão pela

qual, apesar de eventualmente importante para a formação prática do professorado brasileiro, não foi considerada uma abordagem (1983, p.4).

Também fica claro que para Mizukami, como até hoje não conhecemos uma teoria que explique todas as variáveis do comportamento humano, em situações de ensino-aprendizagem, seria necessário considerar o caráter parcial e arbitrário de seu estudo. Também as próprias categorias que constituem cada abordagem poderiam ser revistas e aperfeiçoadas, permitindo inclusive a configuração de novas abordagens (1983, p.5).

Mas uma vez construídas as categorias das abordagens, elas próprias foram construídas sobre conceitos que ela considerou básicos para seu exame. São estes conceitos “homem”, “mundo”, “sociedade e cultura”, “conhecimento”, “educação”, “escola”, “ensino-aprendizagem”, “professor-aluno”, “metodologia” e “avaliação” (1983, p.5) Depois de revistos neste capítulo, estes conceitos serão utilizados para verificar as ideias do Prof. Azevedo, e também servirão de guia para os artigos das propostas de educação rizomática.

De posse deste quadro, Mizukami distribuiu questionários para poder captar de forma quantitativa as impressões dos professores, para desvelar o ideário pedagógico que pudesse surgir (1983, p.5). Cada abordagem será descrita a partir de suas características gerais, e em seguida pelos conceitos de “homem”, “mundo”, “sociedade e cultura”, “conhecimento”, “educação”, “escola”, “ensino-aprendizagem”, “professor-aluno”, “metodologia” e “avaliação”. Fazemos um breve resumo de cada abordagem, com comentários onde esses se tornam importantes para a nossa própria investigação.