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Capítulo II – A construção social da pessoa sem-abrigo

2.3. As artes

realizou-se paralelamente ao trabalho de investigação. Alguns autores eram já conhecidos antes de esta pesquisa ter sido iniciada. Paul Auster, o novelista norte- americano, escreve sobre coincidências e situações limite. Romances como Timbuktu,

No país das últimas coisas e O palácio da Lua transportam o leitor para trajectos e

vivências próximas dos mundos sem-abrigo. Em Na penúria em Paris e em Londres, George Orwell relata as experiências vividas, na primeira pessoa, com Boris, em Paris e Paddy, em Londres, descrevendo quartos de pensões baratas, camas com percevejos, lojas de penhores, asilos com lençóis cinzentos de sujidade acumulada, o trabalho de plongeur e estratégias para se dormir sentado, em Londres, num local público sem a repressão da polícia. Já em Portugal, Filomena Marona Beja ficciona um grupo de personagens num ambiente de um centro de acolhimento para pessoas em situação de sem-abrigo, no romance intitulado A sopa.

No cinema há vários filmes e documentários sobre situações limite de pobreza ou de humilhação. O trabalho que considero mais abrangente e actual e sobre o qual irei incidir esta análise é o filme de Rui Simões, intitulado Ruas da Amargura, exibido pela primeira vez em Outubro de 2008, no DocLisboa. Trata-se de um belíssimo documentário que acompanha, ao longo de vários meses, sete pessoas a viver em diferentes condições de sem-abrigo ou de pobreza. As personagens vão sendo apresentadas ao espectador, na primeira pessoa, relatando pedaços de memórias passadas e mostrando momentos do quotidiano presente. O conhecimento que vamos tendo de cada uma das pessoas vai sendo gradual, adensando-se a sua aparente simplicidade, em camadas de complexidade mais espessas, profundas e comoventes. A visão deste filme é, no meu entender, uma experiencia marcante e inesquecível.

Fernando Moedas, por mim considerado o actor principal, deixa-se acompanhar em vários momentos do seu dia-a-dia, preenchendo-os com relatos fragmentados da sua juventude, cruzados com episódios do presente, pensamentos, reflexões e actividades corriqueiras, como ir ao talho, tomar banho no balneário público, medir a tensão arterial na carrinha dos Médicos do Mundo, ou partilhar conversas com amigos. A sua filosofia de vida é simples: “Eu vivo no presente. Não vale a pena viveres no futuro, pá.

Porque o passado já passou e águas passadas não movem moinhos. E o futuro também não te interessa muito. Se não viveres o presente e se morreres hoje o que é que te interessa o futuro?”

E é este presente de Fernando Moedas que Rui Simões acompanha com a sua câmara. O despertar no banco de jardim na Praça da Alegria, os cuidados com a sua aparência física, controlados no espelho do carro de bombeiros e o almoço numa esplanada. La

Bohème, de Charles Aznavour, é-nos oferecida pela voz emocionada de Fernando

Moedas. Fala-nos da sua relação com o pai, “um gajo porreiro” que o deixa fazer um pouco de tudo na sua juventude. Fala sobre a droga, o LSD, da namorada e do consequente desgosto de amor. A imagem do pai porreiro é alternada com a da mãe que chora e se angustia pela eminente desgraça que irá apanhar o filho. Sobre a situação presente, fala vagamente em recuperar em Trás-os-Montes, onde as pessoas bebem vinho e duram até aos cento e tal anos. É impossível não simpatizar com Fernando Moedas. Seguimo-lo nos seus encontros com vários amigos e conhecidos em diversos pontos da cidade: Natalyia, uma amiga ucraniana que arruma carros no

Jardim Constantino; o plastificador de documentos; os funcionários da Ourivesaria da Estefânia, do Bar e do Talho. Acompanhamo-lo no balneário público, na visita à carrinha dos Médicos do Mundo e também numa discussão no Jardim da Praça da Alegria. Outras cenas do quotidiano são acompanhadas indirectamente, como o relato da difícil negociação com uma prostituta, no jardim da Praça da Alegria, ou o murro, que lhe deixou o olho negro, na estação de metro de Arroios. A ida à missa e os planos para entrar numa comunidade que o irá ajudar a mudar de vida são também acompanhados pelo espectador. De facto, o filme termina com um encontro com um voluntário da Comunidade Vida e Paz que o visita na Praça da Alegria e lhe pergunta o que o leva a continuar a sua vida no jardim. O voluntário promete que irá sempre visitá-lo e fazer-lhe a mesma pergunta, ao que Fernando responde: “Faz isso, Vítor” e acrescenta: “Dá-me o número do teu telemóvel”.

Nataliya Kuzmenko é-nos apresentada por Fernando Moedas, com ele partilha vinho e canções. Nataliya tem as mãos inchadas pelas mordeduras de insectos e Fernando dá- lhe um pouco de pomada para minorar o incómodo. Noutro momento, Nataliya conta que é arrumadora de carros, vive no Jardim e que “não tem vida”. Perdeu um filho e: “quando uma mãe perder um filho, isto não é mãe”.

Manuel Vicente apresenta-se do seguinte modo: “sou educado, não sou drogado,

tenho um problema com o álcool”. Acompanhamo-lo em momentos do seu

quotidiano: a venda de cautelas, os copos de vinho, não em tabernas, porque “tabernas é para os bêbados”. Fala da vida bonita que teve antigamente, antes de se meter na batota e em bailaricos. “Vou vivendo até chegar a altura de ir para o buraco.

*…+ O culpado fui eu. É para abrir os olhos”. Mostra o local onde dorme e deixa-se

acompanhar numa tarde de baile num Domingo. Apresenta-nos um outro amigo com quem joga damas, Carlos Ferreira. A vida de Manuel Vicente é também acompanhada por Fados, O pinheirinho e um outro cantado por um amigo.

Carlos Ferreira é amigo de Manuel Vicente, jogam damas, partilham comida, cigarros e bebida. Carlos mostra-nos a casa onde vive e conta um pouco da sua história: teve doze anos na droga, deixou a droga e agora tem o vício do vinho. De olhos lassos confessa: “o meu comer é o vinho”. A irmã dá-lhe de jantar todos os dias. Acompanhamo-lo numa refeição em casa da irmã, não consegue encher o copo porque as mãos tremem demasiado. No final do jantar joga cartas com a sobrinha. Sobre o seu presente diz: “isto é uma vida do caraças”. Tem dois filhos, um de cada mulher, “não ligo nada a eles, nem sequer os vou visitar”. Conseguiu curar-se da droga com a metadona mas é difícil largar. “Isto do vinho não é um vício, é uma doença. Foi

o que me explicaram lá na clínica”. Despedimo-nos de Carlos, no interior silencioso da

casa que ocupa. O seu olhar é triste. Come um pouco de fruta e fuma. Tosse e bebe um pouco mais de vinho, fixando a câmara.

Manuel Barbosa descreve os seus consumos da droga milionária, a cocaína, as terríveis ressacas e como ela o deixava bem-disposto: “não passava sem aquilo”. Afirma, com orgulho, que sempre conseguiu guardar alguns gramas para o dia seguinte, uma proeza que parece não estar ao alcance de todas as pessoas. É acompanhado pela câmara de Rui Simões ao deitar, num jardim, dentro do seu saco- cama; ao acordar, pela manhã, e dirigir-se ao bar onde se lava e toma o café. Num

outro momento, Manuel Barbosa inicia um tratamento com metadona e é novamente entrevistado nesse local. É também com orgulho que mostra como faz a sua cama e como esse trabalho é reconhecido pelos técnicos da instituição. Informa que vai entrar para o Vale de Acór para fazer tratamento. Volta a ser entrevistado passados dois meses. Continua com o olhar triste, afirma que está a ser muito difícil mas: “Já

vejo algo em mim. Eu agora só penso um dia de cada vez. Não está a ser nada fácil, mas com a ajuda do grupo eu vou compreendendo as coisas melhor”.

Cidália Pratas vive num espaço pequeno com o filho de vinte e pouco anos. Conta-nos sobre a sua infância dura, as tareias da mãe e os trabalhos domésticos pesados. Recorda as discussões entre o pai e a mãe e como culminavam em agressões físicas. Periodicamente o pai desaprecia de casa e “passávamos mal”. Vem para Lisboa trabalhar numa casa de uma família e após a morte do pai, a mãe tenta convencê-la a regressar para o Alentejo, pois vai ter um bebé do novo companheiro e pretendia a ajuda da filha. Cidália conta que passou a sua vida a fugir, mantendo sempre o apoio incondicional da sua irmã mais velha. Acompanhamos Cidália em diversos momentos do seu quotidiano, a tomar café, próximo de sua casa, a conversar com o espectador no interior da sua casa, enquanto lava a louça ou faz uma actividade manual para ganhar algum dinheiro. Fala duma tentativa de suicídio, recente, e como foi apoiada pela médica do centro de saúde. Cidália recorre à prostituição quando precisa de dinheiro. Relata um episódio em que foi atacada por vários homens e como a polícia recusou ajudá-la. Vemos ainda Cidália a conversar com uma voluntária duma associação de apoio a prostitutas e ainda no Jardim do Campo Santana a dar de comer aos patos.

Helena Anacleto gosta de pintar. Encontramo-la na rua Augusta. Fala com admiração da mãe que era uma artista e do pai que também tinha estudos. Acompanhamo-la de regresso ao Centro de Acolhimento onde reside, puxando o caixote com os seus pertences e durante o jantar. Afirma que odeia o dinheiro e que procurou a pobreza, convicta que iria encontrar aí o calor humano. Confessa que se enganou, não encontrou beleza alguma na pobreza. Está sozinha, gosta de arte e cita Léo Ferrer: “la

solitude est une forme supérieure de lucidité”. Helena frequenta o Centro de Apoio

Social dos Anjos onde pode pintar. Apesar das dificuldades agradece a Deus diariamente por tudo o que tem. Acredita que está a pagar por algo que fez. A sua opção é: “não morrer estúpida e não morrer em pecado”. Despede-se do espectador no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. Gostaria de ter um lugar para morar, onde pudesse pintar e ter as suas coisas: “Não tenho vergonha

nenhuma de ser mulher-a-dias”.

Há ainda alguns testemunhos de pessoas em situação de sem-abrigo, algumas moradoras na Praça do Comércio. Um homem diz que é o presidente da Câmara que manda molhar as arcadas da Praça de Comércio, durante a noite. Pergunta-se se o presidente gostaria que lhe molhassem a cama todos os dias! “Parecem nazis” – e acrescenta revoltado: “Os ciganos da Roménia têm casa e recebem 500 euros”.

Uma senhora idosa diz que veio de Alfragide depois da morte do marido e que gostaria de pedir ao menino Jesus para não estar na rua. Uma outra mulher diz que fala para a câmara porque precisa de ajuda.

Num outro local na cidade, José Manuel diz que é ex-combatente: “eu sou um herói”. É toxicodependente mas não vive à conta do Estado: “Não me pagam a pensão de

guerra”. Um outro homem apresenta o seu testemunho, afirmando que há maus

governantes em Portugal e culpa o primeiro-ministro: “Sócrates, enganaste os

portugueses”.

Rui Simões filma o trabalho voluntário em várias organizações com equipas de rua que fornecem comida, serviços médicos, troca de seringas ou distribuição de preservativos para grupos carenciados da cidade de Lisboa. Segue algumas dessas equipas e filma testemunhos de pessoas atendidas pelos voluntários. Assim como as pessoas em situação de sem-abrigo, alguns voluntários contam histórias do seu passado e mostram igualmente pedaços do seu quotidiano.

Síntese das artes

Qual a novidade do discurso das artes em relação aos dois precedentes? O que o distingue dos discursos das ciências e dos média? Considerando a arte no sentido estético, o dicionário electrónico Houaiss da Língua Portuguesa define-a como: “uma

produção consciente de obras, formas ou objectos, voltada para a concretização de um ideal de beleza e harmonia ou para a expressão da subjectividade humana”.

O discurso artístico é, dentre os três, o que mais liberdade concede ao seu produtor. Liberdade na forma de comunicar, nos conteúdos e nos modos de expressão. Rui Simões usou da sua liberdade de artista, concedendo-a, quase integralmente, aos seus personagens. O artista esconde-se por detrás da câmara, deixando que os seus sete “actores” se apresentem e se mostrem aos espectadores. É evidente que o realizador investiu longamente em tempo de pesquisa sobre o tema, em entrevistas, em horas de filmagens, em conversas e na montagem. Fez escolhas sobre o que filmar, como, quando, onde. Seleccionou as cenas, elegeu umas, desprezou outras. A opção por se esconder por detrás da câmara foi também deliberada e aparentemente apolítica e acrítica; concedeu total liberdade aos personagens de se apresentarem e aos espectadores de interpretarem, de sentirem, de ajuizarem o que presenciam. Neste sentido, o artista foi simplesmente um facilitador, ou uma ponte entre dois mundos, o das pessoas que vivem nas ruas e o das pessoas que se deixam impressionar por esse espaço íntimo, desconhecido. O artista não tomou posição, não interferiu, não aconselhou, não criticou, não perguntou, apenas mostrou o que as personagens queriam dar a conhecer.

Esta liberdade de modos de expressão é lícita no discurso artístico. Pelas suas incontáveis opções tudo pode ficar em aberto; no campo das artes tudo é possível. No entanto essa mesma liberdade é simultaneamente um fardo, no sentido em que torna qualquer escolha mais arriscada, perigosa e responsável. Na rigidez e formalismo do discurso científico, não há grande espaço para inovar, e por conseguinte, os riscos são também menores. Bourdieu, 1993, em La misère du monde, escondeu-se atrás dos

discursos dos seus entrevistados, os riscos que correu não foram grandes, a sua carreira estava já consagrada, contudo, não ficou imune a críticas pela opção tomada. Alguns investigadores portugueses também se deixaram impressionar pelo mundo das pessoas em situação de sem-abrigo, produzindo relatos expressivos, como os de Rui Simões. Foi o que sucedeu em certos excertos das dissertações de Adília Rivotti ou de Diogo Mateus.

Os discursos mediáticos são também formais, embora seja possível e aceitável um certo espaço para a inovação. Algumas reportagens feitas na primeira pessoa, são incentivadas, as imposições que possam existir sobre estes profissionais estarão, provavelmente, mais ligadas às regras de mercado da compra e venda de informação, do que à credibilidade do autor. Algumas peças escritas na primeira pessoa são também, elas próprias, pequenas obras de arte, como é o texto de José Miguel Gaspar intitulado “Toxicódromo habitado no coração do Porto” e transcrito, parcialmente, neste capítulo.

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