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Capítulo I – Construção do problema de investigação

1.4. Biografia e identidade

Iniciei esta pesquisa ouvindo as pessoas que viviam ou viveram na rua; pretendia compreender, a partir do ponto de vista delas, o que tinha sucedido nas suas vidas que as tinha conduzido à condição de sem-abrigo. Entrevistei três pessoas que tinham vivido ou ainda viviam nessa situação, utilizando uma abordagem biográfica. Socorri- me de Josso, 1991 e Dubar, 1997, para realizar estas primeiras entrevistas e também para as analisar. Esta primeira incursão ao terreno da pesquisa foi muito rica e proveitosa mas também inquietante. Algumas dúvidas com que me deparei na interpretação das narrativas dos entrevistados foram já referidas anteriormente: umas dizem respeito à reconstituição, ilusória e consistente da biografia, e outras à publicação do material recolhido em bruto, com o mínimo de intervenção do investigador. Situo esta minha tensão bourdieuna na procura da relação entre as narrativas biográficas e a construção identitária do sujeito. Confesso que este tema foi o que mais hesitação me colocou, quer no modo de o formular, quer na dificuldade sentida em o descrever e problematizar.

A relação entre biografia e identidade trata-se de uma questão central para o meu projecto de investigação. Não podia prescindir de a aprofundar, no entanto, foi difícil escolher o trilho certo que me permitiu chegar a alguns lugares interessantes e produtivos. Para início de estrada socorro-me de um excerto de Michel Foucault impresso na abertura do livro de Nikolas Rose, 1990, Governing the soul: the shaping

of the private self.

“It would be wrong to say that the soul is an illusion, or an ideological effect. On the contrary, it exists, it has a reality, it is produced permanently around, on, within the body by the functioning of a power... on those one supervises, trains and corrects, over madmen, children at home and at school, the colonized, over those who are stuck at a machine and supervised for the rest of their lives” (Foucault, citado em Rose, 1990: v).

Escolhi esta asserção de Foucault, para abertura deste tema, pela surpresa que me causou. Ao afirmar que a alma existe e é real, que funciona e é produzida no corpo de todos e de cada um, através de um mecanismo de poder que supervisiona, treina e corrige em todo o lado e em todos os lugares, Foucault provocou-me e confundiu-me ainda mais um pouco, tendo-me obrigado a rever as noções de sujeito, de alma e de ser. Esta consciência, sujeito, pessoa, self, indivíduo, ser humano, enfim, o que habitualmente designamos por “eu”, transporta um pouco de todos estes nomes e cada um deles foi pensado, reflectido, proposto e discutido por filósofos, teólogos,

jurisperitos, psicanalistas, psicólogos, médicos, educadores1.

Não irei aqui distinguir cada uma destas propostas, todas têm significações distintas, com variações; contudo pretendem conceptualizar uma parte ou a totalidade de uma mesma realidade, a de um corpo humano limitado pelo envelope da pele, um corpo que sente, age, pensa, aprende e reflecte, chora e ri, deseja, odeia, mata, acaricia, sente dor e prazer e tem consciência de si. Este corpo ou máquina desejante, na metáfora de Deleuze e Guattari, 2004, é limitado e impedido de usufruir do seu desejo, é sujeito a constrangimentos, uns que provêm dos próprios limites físicos e psicológicos da máquina, outros com origem nas pressões e condições externas e da convivência com outros corpos desejantes que também procuram satisfazer os seus prazeres e se vêem, eles próprios, também limitados nos seus quereres.

A ligação desejo/repressão sugere a tensão eu/outro : – eu desejo, o outro restringe ou participa do meu desejo. Esta relação entre o eu e os outros, entre o desejo individual e a satisfação colectiva, marca a vida em comunidade, sustentada pela procura de protecção, e, paradoxalmente, pelo desejo individual de autonomia. Bauman, 2003, em Comunidade: a busca por segurança no mundo actual exprime essa tensão entre segurança e liberdade.

“Há um preço a pagar pelo privilégio de ‘viver em comunidade’ – e ele é pequeno e até invisível só enquanto a comunidade for um sonho. O preço é pago em forma de liberdade, também chamada ‘autonomia’, ‘direito à auto-afirmação’ e à ‘identidade’. Qualquer que seja a escolha ganha-se alguma coisa e perde-se outra. Não ter comunidade significa não ter protecção; alcançar a comunidade, se isto ocorrer, poderá em breve significar perder a liberdade. [...] A tensão entre a segurança e a liberdade e, portanto, entre a comunidade e a individualidade, provavelmente nunca será resolvida e assim continuará por muito tempo; não achar a solução correcta e ficar frustrado com a solução adoptada não nos levará a abandonar a busca – mas a continuar tentando. Sendo humanos, não podemos realizar a esperança, nem deixar de tê-la” (Bauman, 2003: 11-12).

A tensão entre o eu e o outro, a segurança e a liberdade, o conformismo e a resistência são aspectos importantes que estão implícitos nesta investigação, todavia, senti necessidade de aprofundar, em primeiro lugar, a questão do sujeito e a importância das narrativas biográficas para a construção e consolidação da sua identidade.

As narrativas biográficas apresentaram-se-me sempre como um material com elevado potencial de interpretação do indivíduo e do social, reconheço-lhes virtualidades na auto consciencialização do sujeito, apesar de nem sempre conseguir captar precisamente qual a sua função na construção da auto-identidade e o que poderia aprender com a análise dessas narrativas. Aproveitei estas incertezas e hesitações para explorar certas questões filosóficas relativas ao ser e ao sujeito e como foram tratadas por alguns pensadores. Esta incursão numa disciplina difícil, para mim, mas

1 Jean-Pierre Vernant propõe uma classificação interessante a partir da perspectiva da antropologia

histórica: o indivíduo, stricto sensu; o sujeito, quando o indivíduo fala sobre si próprio; o eu, a pessoa interior e única. (Vernant, 1988).

igualmente estimulante, permitiu-me identificar algumas questões fundamentais acerca do sujeito, da noção de consciência, da identificação do sujeito com o corpo, da continuidade ou descontinuidade do “eu”. Se bem que esta passagem pela filosofia me devolvesse uma visão mais abrangente da questão da individualidade e da identidade, sentia que era complicado, para mim, ligar estes conceitos e a discussão filosófica à minha pesquisa. Procurei auxílio noutros lugares e com Anthony Giddens parte das minhas hesitações atenuaram-se.

Como já referi anteriormente, a modernidade tardia, segundo a designação de Giddens, 1997, resulta numa série de consequências para o indivíduo que o sociólogo aborda de um modo sistemático no seu livro Modernidade e Identidade Pessoal. O autor desenvolve parte substancial da sua argumentação com base na proposição de que toda a actividade humana pode ser conhecida e descrita pelo próprio: “Partimos

da premissa de que ser-se humano significa conhecer, a todo o momento e nos termos de um qualquer tipo de descrição, o que se faz e porque se faz” (Giddens, 1997: 33).

Esta consciência reflexiva não se limita a uma “consciência discursiva”, ela está incorporada na prática das acções do quotidiano. Giddens, 1997, identifica quatro questões existenciais fundamentais, comuns a todo o ser humano, interiorizadas através da interacção social. Uma primeira relacionada com a própria experiência da existência ou da natureza do ser e do mundo que o rodeia; a segunda questão existencial diz respeito à finitude da existência humana e às respostas que cada cultura ou indivíduo encontra para lidar com a inevitabilidade da morte; um terceiro ponto relaciona-se com o outro e com o modo como cada indivíduo interpreta as acções e qualidades de outros indivíduos; por último, o autor refere a noção de auto- identidade e da necessidade de cada um se sentir contínuo num eu (ou self) e num corpo. Esta noção de auto-identidade, que Giddens, 1997, liga com a de autobiografia, foi-me útil para orientar a minha investigação e organizar o meu pensamento.

“A auto-identidade não é um traço distintivo, ou sequer uma colecção de traços, possuídos pelo indivíduo. É o self tal como reflexivamente compreendido pela pessoa em termos da sua biografia. Aqui a identidade ainda pressupõe continuidade através do tempo e do espaço, mas a auto-identidade é uma continuidade tal como interpretada reflexivamente pelo agente. Isto inclui a componente cognitiva de pessoa. Ser uma ‘pessoa’ não é apenas ser um actor reflexivo, mas sim ter um conceito de pessoa (tal como aplicado tanto ao self como aos outros). O que se quer dizer com ‘pessoa’ certamente varia com as culturas, embora haja elementos da noção que são comuns a todas as culturas. A capacidade de usar ‘eu’ em contextos cambiáveis, característica de todas as culturas conhecidas, é a característica mais essencial das concepções reflexivas de pessoa” (Giddens: 1997: 49).

Esta noção de auto-identidade destaca os aspectos temporal e espacial que constituem a concepção de pessoa, em que a narrativa biográfica tem um papel preponderante na construção da ideia de continuidade do self: “A identidade de uma

pessoa não se encontra no comportamento, nem – por muito importante que o sejam –, nas reacções dos outros, mas na capacidade de manter a continuidade de uma narrativa”. Para que uma biografia não seja totalmente ficcional, o indivíduo “deve integrar continuamente eventos que ocorrem no mundo exterior, e escolhê-los para a ‘estória’ contínua sobre o self”. (Giddens: 1997: 51).

As narrativas biográficas, ou as autobiografias, são um instrumento com múltiplas finalidades: como método de investigação em ciências sociais, como processo terapêutico ou de reconversão profissional, utilizado actualmente na elaboração do balanço de competências, por exemplo, ou simplesmente, como projecto reflexivo do indivíduo. É deste modo, enquanto projecto reflexivo do self, que Giddens, 1997, as trabalha nesta obra. O valor de uso deste processo de autoconhecimento e de reconstrução da estória de vida possibilita uma reflexão retrospectiva de acontecimentos passados, e, eventualmente, uma “intervenção correctiva” na narrativa identitária. Este processo de reflexão sobre a vida passada tem potencialidades para influenciar as acções futuras, contudo é uma tarefa exigente.

“No projecto reflexivo do self, a narrativa da auto-identidade é inerentemente frágil. A tarefa de forjar uma identidade distinta pode ser capaz de fornecer ganhos psicológicos distintos, mas é também, obviamente, um fardo. Uma auto-identidade tem de ser criada e mais ou menos continuamente reordenada sobre um pano de fundo de experiências cambiantes na vida do dia-a-dia e das tendências fragmentadas das instituições modernas. Mais, a manutenção de uma tal narrativa afecta directamente, e em certa medida ajuda a construir, o corpo e o self” (Giddens, 1997:

171).

As considerações de Giddens, 1997, sobre a ligação entre as narrativas biográficas e a identidade foram oportunas para o meu projecto. Como já referi anteriormente neste capítulo, na primeira análise e interpretação dos discursos dos meus entrevistados apercebi-me que a estrutura da narrativa e a linguagem utilizada para descrever o passado e o presente denotavam um trabalho de reflexão e de reinterpretação das condutas passadas. Parecia-me evidente que se tratava de uma reconstituição da

história pessoal dos indivíduos, sobretudo, dos que tinham passado por processos

institucionalizados de reinserção na sociedade. Mas a minha exploração sobre este tema não estava ainda esgotada – precisava de aprofundar um pouco mais a ligação entre as narrativas biográficas e a construção de uma identidade ou de consciência do eu.

O número 62/63 da revista francesa Actes de la Recherche en Sciences Sociales de 1986 é dedicado à investigação que tem como base o material biográfico. Para além do texto de Bourdieu, 1986, L’illusion biographique, que já aqui referi e que tanta perturbação me causou, encontrei mais dois trabalhos que me interessaram por acrescentarem algumas notas particulares acerca das biografias.

O artigo de Aloïs Hahn, 1986, faz uma ligação entre as práticas confessionais e a construção da identidade ou da auto-tematização, na expressão do autor, que instituíram o exame de consciência e a confissão como forma de auto-regulação interior, de compreensão da conduta individual e, também, como um processo de estabelecimento de biografias, continuamente alimentadas por novas confissões2. Relacionando as práticas confessionais com as entrevistas já realizadas e também com conversas informais que mantive com pessoas que tinham passado por processos de reinserção, recordo que referiram que uma das etapas do programa terapêutico

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passava pela escrita de um texto biográfico, de carácter confessional, em que se encorajava o relato e a análise do percurso biográfico. Regra geral esse documento é destruído no final do processo, como se o gesto simbolizasse o final de uma etapa, a esquecer, e o começo de uma nova vida. Evidentemente que este exercício tem significados distintos para cada uma das pessoas, mas quem passou por este ritual recorda-o como sendo um processo doloroso e simultaneamente libertador.

O segundo artigo, publicado nesta revista, que me despertou a atenção, é um texto de Howard S. Becker, 1986, que trata das funções dos documentos biográficos na investigação sociológica e reflecte acerca dos seus usos, explorando algumas hipóteses explicativas do aparente abandono a que esta metodologia foi votada. O autor baseia-se no livro de Clifford Shaw, The Jack-Roller, publicado em 1930, que relata, na primeira pessoa, a biografia de um jovem carteirista em Chicago, e contém também informação recolhida nas instituições por onde Stanley, o protagonista, passou durante o seu percurso em centros de detenção. Faz parte ainda do livro uma análise da biografia de Stanley realizada pelos sociólogos da escola de Chicago, Robert Park e Clifford Shaw.

Neste artigo, Becker, 1986, inventaria as funções do trabalho biográfico, tendo por base o livro de Shaw. Um primeiro interesse nesta obra deve-se à interpelação que ela vem impor nos fundamentos teóricos da delinquência juvenil. Ainda que a história de Stanley possa divergir das teorias psicológicas acerca da delinquência, o interesse na biografia mantém-se pois contribuiu com novos conhecimentos acerca da criminalidade juvenil, contada na primeira pessoa, e também sobre os processos institucionais de reinserção e punição e como estes são experienciados pelos sujeitos que os vivenciam. Ou seja, este tipo de investigações pode fornecer informação valiosa para a concepção de programas de reinserção, promovendo a reflexão dos profissionais sobre as suas práticas ou como elas podem ser sentidas pelas pessoas que são alvo de tratamento. Becker, 1986, assinala também uma outra vantagem na utilização das biografias por estas serem materiais muito ricos em pormenores que podem ser explorados, permitindo, por vezes, reorientar a evolução da investigação. Um outro aspecto que Becker, 1986, assinala tem por base o trabalho de George Herbert Mead que defende que a vida social: “est un échange de symboles significatifs

au cours duquel les gens esquissent des actions et, ensuite, ajustent et réorientent leur activité en fonction des réponses (réelles ou imaginaires) que les autres ont faites à ces actions”. Se tomarmos em consideração esta concepção de vida social como sugere

Mead, citado em Becker, 1986, então: “la biographie décrira ces séquences cruciales

d’interactions dans lesquelles de nouvelles voies de l’action collective et individuelle sont forgées, dans lesquelles de nouveaux aspects de la personnalité surgissent”

(Becker, 1986: 108). Para além das razões já destacadas, as biografias dão a conhecer aos profissionais e cidadãos comuns aspectos e modos de viver e de sentir de indivíduos e grupos que dificilmente teriam possibilidade de exprimir essas vivências junto de um grande número de pessoas.

Becker, 1986, também enumera algumas mudanças que fomentaram o abandono gradual dos métodos biográficos em investigações sociológicas. Um dos aspectos mais relevantes, na minha opinião, prende-se com a própria evolução do trabalho do

sociólogo e das expectativas que estas investigações geram, quer no mundo científico, quer na sociedade em geral. O que aqui está em causa é o desenvolvimento do conhecimento científico nesta área e quais os pressupostos em que assenta a produção científica e a procura da verdade. Este tema será retomado posteriormente, por agora, fica apenas a anotação de Becker.

“Nous pouvons espérer peut-être qu’une meilleure compréhension de la complexité de la démarche scientifique redonnera aux sociologues le sens de la valeur et des avantages multiples de la méthode biographique. Une nouvelle série de documents personnels comme ceux produits par l’école de Chicago, il y a plus d’une génération, pourrait nous aider dans toutes les directions que j’ai déjà suggérées et aussi dans de nouvelles directions qui restent à définir” (Becker, 1986 : 110).

Se bem que, na mesma linha de Giddens, 1997, certos autores defendam que a narrativa biográfica proporciona um sentido de continuidade do eu, outros, como Deleuze, 1994 e Rose, 2001, preferem insistir na multiplicidade de narrativas que se reclamam do eu, o que vale por dizer que o eu não lhes preexiste. Deleuze, 1994, salienta a ‘não unidade’ do eu, adoptando a metáfora das máscaras comunicantes de Nietzsche.

“Em Nietzsche tudo é máscara. *...+ Nietzsche não acredita na unidade de um Eu e não o experimenta: relações subtis de poder e de avaliação entre diferentes “eu” que se escondem, mas que exprimem também forças de outra natureza, forças da vida, forças do pensamento – tal é a concepção de Nietzsche, a sua maneira de viver”

(Deleuze, 1994: 12-13).

Baseando-se, essencialmente, nas propostas de reflexão de Foucault, Deleuze e Guattari, Nikolas Rose publicou, em 2001, um texto com um título provocador,

Inventando nossos eus incluído numa colectânea de trabalhos, traduzidos e

organizados por Tomas Tadeu da Silva, 2001, com um título igualmente sugestivo:

Nunca fomos humanos – nos rastros do sujeito. O tema central do texto de Rose,

2001, parte da crise do eu, enquanto sujeito universal, estável e interiorizado (para a psicanálise o eu é imaginário), na morte da noção de sujeito e na sua substituição pelo conceito de subjectivação. Considera subjectivação como: “o nome que se pode dar

aos efeitos da composição e da recomposição de formas, práticas e relações que tentam transformar – ou operam para transformar – o ser humano em variadas formas de sujeito, em seres capazes de tomar a si próprios como os sujeitos de suas próprias práticas e das práticas de outros sobre eles” (Rose, 2001: 143).

A questão organizadora deste texto é formulada do seguinte modo: “Como os

humanos são subjectivados, em quais agenciamentos3, e como podemos pensar as

práticas psi como um elemento operativo no seu interior”. Os conceitos de

subjectivação e de práticas psi serão explicitados um pouco mais adiante neste texto, por ora, importa-me explorar as ideias de Rose, 2001, que relacionam a linguagem

3 O tradutor do texto de Rose, 2001, esclarece a origem do “neologismo” agenciamento. Este foi

traduzido do inglês a partir do vocábulo assemblage, que significa montagem, combinação. Por sua vez, o vocábulo francês agencement é frequentemente traduzido para inglês por assemblage. Deste modo, neste contexto, agenciamento deve ser entendido como combinação, ou montagem. (Rose, 2001: 198- 199).

com a noção de eu.

Este argumento parte da função da linguagem na “narração do eu” e fundamenta-se em trabalhos de autores que ligam a linguagem à noção de “eu”, ainda que expressem posições divergentes, como Marcel Mauss e Émile Benveniste, mobilizados por Rose, 2001, na construção do seu texto. Enquanto, segundo Rose, 2001, o primeiro defendia que a categoria do eu é uma concepção moderna, mas acreditava que em todas as línguas existia uma palavra que exprimia a noção de “eu”, Benveniste sustentava que o sujeito se constituía através da linguagem, ou seja, por detrás do eu não existia qualquer sujeito. Rose, 2001, por seu lado, defende uma outra perspectiva, inspirada nos trabalhos de Foucault, Deleuze e Guattari de que a linguagem é um “agenciamento de enunciação” ou um conjunto de “modalidades enunciativas”. O que significam estas expressões? De acordo com Foucault, as modalidades enunciativas referem-se às diversas formas pelas quais a linguagem se torna uma categoria, num espaço e época determinado. Deleuze e Guattari basearam-se no conceito de “práticas discursivas”4 proposto por Foucault defendendo que toda a linguagem, “mesmo na forma de ‘fala’, aparece como um agenciamento de ‘práticas discursivas’” (Rose, 2001: 151). As práticas discursivas não são discursos construídos num vazio social.

“Não habitam um domínio amorfo e funcionalmente homogéneo de significação e negociação entre indivíduos – elas estão localizadas em locais e procedimentos particulares, os afectos e as intensidades que as atravessam são pré-pessoais, elas são estruturadas em variadas relações que concedem poderes a alguns e delimitam os

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