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Poder, instituições e o ideal de normalidade

Capítulo I – Construção do problema de investigação

1.3. Poder, instituições e o ideal de normalidade

Os trabalhos de Nikolas Rose e Ian Hacking, apresentados no ponto anterior, destacam a existência de instituições e de profissionais autorizados socialmente a identificar, descrever, caracterizar, qualificar, socializar, regenerar ou curar pessoas. O pensamento racionalista, característico da modernidade, criou a necessidade e fomentou a ascensão destes profissionais e de instituições investidos de poder para diagnosticar, sinalizar e assistir as pessoas carenciadas. Para a minha investigação importa-me aprofundar o conhecimento sobre o poder que certos profissionais detêm, como se constituiu, desenvolveu e se intensificou e por que razão ele é aceite socialmente. Uma primeira abordagem deste tópico foi feita a partir de leituras de diversos autores, de entre os quais destaco Canguilhem, Foucault e Goffman, por me proporcionarem pontos de vista e reflexões úteis para a investigação que desenvolvi. Por comodidade na exposição dos contributos que estes autores me ofereceram, inicio com Foucault destacando a investigação produzida sobre o poder em geral e o poder dos especialistas que observam, caracterizam, identificam e desenvolvem técnicas que aplicam às pessoas sujeitas a programas de cura, de reinserção ou de regeneração. Um aspecto importante que retirei de Foucault refere-se ao modo como pesquisou e teorizou o poder.

Em O poder psiquiátrico, Foucault, 2006, apresenta uma esquematização de dois sistemas de poder político, fazendo a distinção entre soberania e disciplina. Identifica algumas características do poder soberano que pressupõe a existência de uma anterioridade fundadora, em que subsiste uma ameaça permanente de violência, e

que o poder se reactualiza através de rituais e cerimónias.

De acordo com Foucault, 2006, o poder soberano sustenta-se numa relação assimétrica entre o soberano e os seus súbditos, baseada no binómio colecta-despesa. A soberania necessita de um corpo somático (o rei), individualizado e identificado com a solidez do reino e da coroa, mas que é em simultâneo um corpo múltiplo. A relação de soberania não é isotópica; é diferenciada, relaciona um soberano com um grupo ou fragmentos de uma “singularidade somática”. Foucault caracteriza-a como uma relação de múltiplos corpos sem individualidade (os súbditos) com uma individualidade composta por uma multiplicidade de corpos (o soberano). A ideia de multiplicidade de corpos do soberano é um pouco complexa e Foucault, 2006, explica- a tendo por base um trabalho de Kantorowicz que defende que a ligação do soberano ao corpo não pode ser totalmente somática, pois, desaparecendo o soberano a soberania não termina, a soberania do rei não termina no corpo do rei (Foucault, 2006: 56-57).

Já no poder disciplinar, que Foucault, 2006, exemplifica a partir de modelos reconhecidos pela generalidade das pessoas, como a disciplina militar, a disciplina escolar, a disciplina operária, a disciplina policial e a disciplina civil, dá-se uma inversão da individualização. Enquanto no poder soberano a individualização se situa no topo, sendo na base muito difusa, já no poder disciplinar verifica-se a supressão da individualização no topo e uma individualização tendencialmente forte na base. Neste tipo de poder existe uma apropriação total do corpo, do tempo e da vida das pessoas, caracterizada por procedimentos de controlo global e contínuo: a disciplina e a escrita; as novas instituições disciplinares e a constituição da individualidade administrativa e centralizada. Foucault, 2006, utiliza o modelo pan-óptico de Benjamin Bentham, que preconizava a individualização celular de um grande conjunto de pessoas, dispostas de tal modo que podiam ser mantidas sob a vigilância constante apenas por um único indivíduo. O carácter pan-óptico do poder disciplinar é visível em marcas simples como a regulação do tempo, a individualização centrada na escrita e a acção punitiva constante. Uma outra característica do poder disciplinar é visível pela isotopia, isto é, a posição de cada um é bem marcada e hierárquica; esta hierarquia é replicada em diferentes sistemas sociais, nas classificações escolares, que ordenam os alunos com base nas avaliações, nas hierarquias militares e profissionais e na própria hierarquia civil. Os deslocamentos dentro das hierarquias obtêm-se por concurso, exame ou antiguidade. O sistema disciplinar tem limites – o inclassificável não se submete à ordem e ao posicionamento que mantém o próprio sistema em funcionamento.

“O poder disciplinar tem a dupla propriedade de ser anomizante, isto é, de sempre pôr de lado certo número de indivíduos, de ressaltar a anomia, o irredutível, e de ser sempre normalizador, de sempre inventar novos sistemas recuperadores, de sempre restabelecer a regra. Um perpétuo trabalho da norma na anomia caracteriza os sistemas disciplinares” (Foucault, 2006: 68).

O modo como Foucault, 2006, caracteriza e distingue o poder soberano e disciplinar e o torna evidente a partir de práticas correntes dentro dos sistemas sociais por onde circulamos desde o nascimento – na família, na escola, no trabalho, e em todas as

organizações pelas quais vamos passando ao longo da nossa existência – é fundamental para a minha pesquisa. O limite do sistema disciplinar, patente na propriedade anomizante, tem particular interesse para o tema da minha investigação. De facto, todo o trabalho que se desenvolve à volta das pessoas em situação de sem- abrigo surge sob um novo ângulo de visão, podendo ser interpretado como uma tentativa constante de criação de sistemas recuperadores de indivíduos que escapam à norma.

Um dos sistemas recuperadores de que fala Foucault, 2006, foi estudado e descrito por Goffman, 1961, em Manicômicos, Prisões e Conventos. Esta obra baseia-se nas investigações que o sociólogo efectuou na década de 1950 que visavam “tentar

conhecer o mundo social do internado em hospital” (Goffman, 1961: 7-8) a partir do

ponto de vista subjectivo dos sujeitos.

Goffman, 1961, desenvolveu um estudo etnográfico sobre a vida social dos internados em hospitais, estabelecendo similitudes com outro tipo de organizações. No texto classifica os vários tipos de instituições totais a partir da função para as quais foram criadas: cuidar de pessoas incapazes, como é o caso dos hospitais psiquiátricos, asilos para idosos ou leprosarias; os hospitais, com o objectivo de cuidar dos doentes; as prisões e casas de correcção para crianças e adolescentes com a finalidade de proteger a sociedade de pessoas indesejáveis, mantendo-as afastadas enquanto promovem a sua regeneração; instituições com funções instrumentais, como os quartéis, as escolas internas e os campos de trabalho; e as instituições com a finalidade de disponibilizar aos seus residentes um refúgio do mundo, como são os conventos.

Sistematiza as características gerais das instituições totais, que têm por missão o controlo dos internados por parte da equipa dirigente, e os modos como esse controlo é feito através do uso da autoridade e da anulação do “eu” dos internados. Uma das formas de garantir o controlo sobre os internados é conseguida através dos ataques elementares e directos ao “eu” que se faz de dois modos: a “mortificação do eu” e a “exposição contaminadora” (Goffman, 1961: 31). O primeiro ataque ao “eu", e o que na opinião de algumas pessoas das equipas dirigentes é decisivo, é a entrada do internado na instituição que pode passar por vários rituais, desde o rebaixamento, às humilhações e profanações do “eu”.

O autor dá vários exemplos de mortificação do “eu” dos novatos: manutenção duma barreira entre o internado e o mundo externo, através da proibição de visitas; a morte civil para o caso dos presos; as operações de limpeza, corte de cabelo e desinfecção; distribuição de roupas; divulgação de regras e do espaço físico que lhe é confinado. Um dos objectivos destes rituais de admissão é de fazer com que o novato coopere e obedeça à equipa dirigente. São exemplo destes rituais as cerimónias de boas-vindas, os testes de obediência, o despojamento dos bens pessoais e a manutenção da separação entre o “eu” e os seus bens. Segundo ele, “o indivíduo precisa de um ‘estojo

de identidade’ para o controlo da sua aparência pessoal” (Goffman, 1961: 28) e as

instituições totais, de um modo geral, procuram quebrar essa ligação entre a pessoa e os objectos que lhe conferem (subjectivamente ou não) uma identidade.

sentimentos, pensamentos e bens deixem de fazer parte do “eu” e passem a ser sujeitos ao olhar, interrogação e profanação da equipa dirigente e dos outros internados. O autor dá vários exemplos: “a violação da reserva de informação quanto

ao eu” (Goffman, 1961: 31) através da criação de um dossier que fica à disposição da

equipa dirigente; as sessões de mea culpa; a exposição física do internado face à equipa técnica ou aos restantes internados (por exemplo: os dormitórios, as instalações sanitárias, sem porta); a retirada dos bens pessoais; a revista aos bens admitidos; a revista física; a mudança de nome ou de identificação da pessoa; a invasão da privacidade (violação da correspondência); as confissões públicas; a desfiguração física e a profanação simbólica (Goffman, 1961: 28-40).

A leitura desta obra coincidiu com o processo de internamento de um dos meus entrevistados numa comunidade de reinserção. A similitude dos exemplos dados pelo autor e as vivências que a pessoa experienciou é por demais evidente. Por exemplo, o período de tempo em que a pessoa está proibida de contactar com o exterior, a violação da correspondência, o abuso de poder sobre o internado, a exposição pública de sentimentos do internado à equipa dirigente e aos restantes internados. Goffman, 1961, fornece indicações preciosas de como funcionam estas instituições e seria muito interessante para esta pesquisa identificar as similitudes entre as práticas das instituições totais dos anos 1950 e as actuais comunidades terapêuticas e de trabalho. Como tenho vindo a sustentar, as classificações são importantes organizadores do pensamento moderno, científico ou não, que informam e enformam as estruturas sociais onde nos movemos. Em O Normal e o Patológico, Canguilhem, 2002, procura demonstrar quanto o saber médico e as noções de saúde e doença, de normal e de patológico, são socialmente construídas, por exigências de regulação da existência colectiva e, como tal, arbitrárias e relativistas. Foi, de facto, um texto que provocou uma ruptura significativa em algumas certezas que julgava ter.

A tese de doutoramento em Medicina de Canguilhem foi apresentada em 1943 e procurava responder à questão: “seria o estado patológico apenas uma modificação

quantitativa do estado normal?”(Canguilhem, 2002:19) Este problema foi por ele

formulado a partir de duas concepções distintas, a egípcia, ou mágica, e a grega ou totalizante, enunciadas respectivamente: (i) o homem doente tem algo a mais ou a menos que poderá eventualmente ser restaurado; (ii) “a doença não é somente

desequilíbrio ou desarmonia; ela é também, e talvez sobretudo, o esforço que a natureza exerce no homem para obter um novo equilíbrio”. E acrescentava “estas duas concepções têm, no entanto um ponto em comum: encaram a doença, ou melhor a experiência de estar doente, como uma situação polémica, quer a luta do organismo contra um ser estranho, quer uma luta interna de forças que se afrontam”

(Canguilhem, 2002: 21).

Canguilhem, 2002, desenvolveu, então, a sua tese procurando responder à questão através de uma abordagem histórica e baseando-se no essencial das proposições de alguns autores. Inicia o argumento com Augusto Comte e o princípio de Broussais, assim formulado: “os fenómenos da doença e da saúde são coincidentes, diferem

apenas na intensidade” (Canguilhem, 2002: 29). Porém, esta enunciação contém uma

que é excesso e falta. Parte, portanto, de uma concepção de patologia que considera a existência de um ideal de perfeição e tem implícito o “carácter normativo do

normal” (Canguilhem, 2002: 36).

Vinte anos após a defesa da sua tese, Canguilhem, 2002, actualizou-a com novas reflexões relativas ao normal e ao patológico, confrontando as normas sociais com as normas vitais e procurando aplicá-las ao estudo da sociedade e aos grupos inadaptados. Defendia que os conceitos de norma e de normal quando aplicados às ciências sociais e humanas originam a condução de pesquisas que: “quer se trate de

tipos sociais, de critérios de inadaptação ao grupo, das necessidades e dos comportamentos de consumo, ou dos sistemas de preferência, se orientam, em última análise, para o problema das relações entre normalidade e generalidade”

(Canguilhem, 2002: 207). Advertia ainda para a utilização, por vezes descabida e abusiva do conceito de normal por parte da psicologia e sociologia.

“A definição psicossocial do normal a partir do adaptado implica numa concepção da sociedade que o identifica sub-repticiamente e abusivamente com o meio, isto é, com um sistema de determinismos, apesar dessa sociedade ser um sistema de pressões que, antes de qualquer relação entre o indivíduo e ela, já contém normas colectivas para a apreciação da qualidade dessas relações. Definir a anormalidade a partir da inadaptação social é aceitar mais ou menos a ideia de que o indivíduo deve aderir à maneira de ser de determinada sociedade, e, portanto, adaptar-se a ela como a uma realidade que seria, ao mesmo tempo, um bem. [...] Se a sociedade são conjuntos mal unificados de meios de acção, podemos negar-lhes o direito de definir a normalidade pela atitude de subordinação que elas valorizam, com o nome de adaptação. No fundo, transportado para o terreno da psicologia e da sociologia, esse conceito de adaptação volta à sua acepção original. É um conceito popular da actividade técnica. O homem adapta seus instrumentos e, indirectamente, seus órgãos e seu comportamento a determinada matéria, a determinada situação” (Canguilhem, 2002:

257-258).

Prossegue o seu argumento tendo por base as teorias da adaptação, com origem no século XIX, que a consideravam como uma relação de exterioridade, de desafio, entre o homem e o meio ambiente, e propõe uma inversão na relação entre o organismo e o meio, em que o ser vivo, “em vez de sofrer influências, recolhe as influências e as

qualidades que correspondem a suas exigências”, isto é, em vez de considerar que o

ser vivo sofre as influências do meio, pelo contrário, “ele estrutura seu meio ao

mesmo tempo que desenvolve suas capacidades de organismo” (Canguilhem, 2002:

258).

Formulando a adaptação deste modo inverso, o normal e o anormal seriam determinados mais pelas capacidades e condições dos organismos do que “pelo

encontro de duas séries causais, independentes – o organismo e o meio”. Assim as

normas de adaptação seriam determinadas “sobretudo, pela quantidade de energia

de que o agente orgânico dispõe para delimitar e estruturar este campo de experiências e de empreendimentos a que chamamos nosso meio”. Ilustra estas

afirmações exemplificando algumas normas individuais que cada um pode estabelecer para si próprio: “A norma do corredor de fundo não é a mesma do sprinter. Cada um

de nós muda suas próprias normas, em função da idade e de suas normas anteriores”.

Este exemplo salienta o carácter relativista das normas biológicas: “As normas de um

velho seriam consideradas como deficientes no mesmo homem, quando adulto”. E

prossegue: “Esse reconhecimento da relatividade individual e cronológica das normas

não representa um cepticismo diante da multiplicidade, e sim tolerância diante da variedade”. (Canguilhem, 2002: 258-259).

Este argumento de Canguilhem introduz um sentido biológico à palavra adaptação, que na genética tem o nome de mutação e “permite estabelecer uma distinção entre

seres vivos ultrapassados e seres vivos progressivos”. Socorre-se de uma terminologia

de Darwin, que considero muito relevante para a minha pesquisa, a qual defende a existência de “lugares vagos” em determinado local e que estes não são “tanto os

espaços livres mas, sobretudo, sistemas de vida (habitat, modo de alimentação, de ataque, de protecção) que são teoricamente possíveis nesse local, mas ainda não são praticados” (Canguilhem, 2002: 238).

“Segundo uma lógica rigorosa, uma teoria mutacionista da génese das espécies só poderia definir o normal como aquilo que é temporariamente viável. Mas, de tanto considerar os seres vivos apenas como mortos em perspectiva, não levamos em conta a orientação adaptativa do conjunto dos seres vivos, considerados na continuidade da vida, subestimamos este aspecto da evolução que é a variação dos modos de vida para a ocupação de todos os lugares vagos. [...] A animalidade é uma forma de vida que se caracteriza pela mobilidade e pela predação” (Canguilhem, 2002: 238).

De igual modo, quando se passa das normas biológicas para as sociais, o organismo determina a possibilidade de agir em situação social e, por consequência, podemos falar também de adaptação.

O contributo de Canguilhem, 2002, para o meu projecto proporciona inúmeras ideias geradoras de novas percepções da realidade. Em primeira análise, reafirma a relatividade e a arbitrariedade do conceito normal e, por conseguinte, dos seus contrários, tanto em termos fisiológicos, como psicológicos e sociais; os organismos vivos adaptam-se e equilibram-se em função das experiências que os condicionam e das normas individuais que os caracterizam; os lugares vagos constituem sistemas de vida potencialmente possíveis ainda não explorados. Canguilhem, 2002, não refere explicitamente o poder médico, embora ele esteja presente no modo de observar, medir, descrever e classificar.

As obras destes três autores complementam-se e marcaram claramente uma nova etapa no desenvolvimento da minha pesquisa. Essa mudança não se tornou visível no modo como tinha planeado conduzir a investigação ou nos critérios de selecção das minhas fontes de informação. O que mudou, com os contributos de Foucault, Goffman e Canguilhem, foi um alargamento da perspectiva ou do ângulo de visão pelo qual passei a observar a realidade que queria estudar. Esta nova percepção mais abrangente do meu campo de estudo implicou um reposicionamento da minha pesquisa.

A reflexão teórica que venho empreendendo fez emergir novas ligações, novos focos de interesse e modos de observar e compreender a realidade. Provavelmente o que me era dado a perceber ou pressentir anteriormente não seria ainda suficientemente

nítido e claro, ou seja, o tema que eu pretendia investigar continuava estável, o que mudou foi o meu olhar e o modo como passei a interrogar estes novos objectos, agora visíveis, no terreno da pesquisa.

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