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3 AS CARTAS E SEUS AUTORES: UMA CONTEXTUALIZAÇÃO

3.1 As cartas como meio de flagrar a segunda pessoa gramatical

Em qualquer pesquisa, a amostra deve ser constituída de material que propicie a observação do objeto estudado. Se este é a forma como as pessoas se tratam, as interações, seja através da fala, seja por escrito, tornam-se o melhor caminho para a observação. No caso de sincronias passadas, na ausência de material sonoro gravado, as cartas pessoais vêm a ser o principal meio de acesso às formas de tratamento. Isso decorre do fato de que a carta simula uma conversa em que apenas uma pessoa fala enquanto a outra escuta. No entanto, quem escreve (e se põe no papel de falante) não perde a consciência de que está ausente e de que demorará certo tempo até que a carta seja lida. A presença simulada e a ausência real produzem um efeito que molda a interação através da carta e a torna diferente da conversa cara a cara ou por telefone.

Berlinck, Barbosa e Marine (2008) defendem que,

nas cartas, a presença de um determinado destinatário condiciona o momento da sua produção. Quando aquele que escreve escolhe aquele para quem escreve, ele, consequentemente, modula o seu discurso de acordo com essa escolha. Nesse sentido, uma das estratégias que pode nos auxiliar na percepção do grau de formalidade nas cartas é, por exemplo, o estudo dos pronomes e expressões de tratamento. As expressões de tratamento exprimem o grau de distanciamento e a subordinação em que uma pessoa voluntariamente se põe em relação a outra, a fim de agradá-la e ensejar um bom relacionamento. (BERLINCK; BARBOSA; MARINE, 2008, p. 175).

Diferentemente do que ocorre na fala, a escolha do repertório vocabular e da forma de elaborar as frases pode ser mais bem planejada na comunicação por carta. É costume de quem escreve cartas e outros gêneros da modalidade escrita “passar a limpo” o texto, revisando-o e reelaborando-o conforme considere mais adequado para causar as impressões desejadas. Assim, nas cartas, são encontrados diferentes graus de formalidade, desde o mais

formal, em que se seguem fórmulas tradicionais de elaboração de frases, até o mais informal, em que se busca agir como se remetente e destinatário estivesse numa costumeira conversa descontraída. É possível que o missivista passe do formal ao informal na mesma carta.

Andrade (2011) defende que a carta converte-se num espelho da conversação face a face, porém deve apresentar uma escrita própria, entre a elegância oratória e a conversação familiar. A autora defende ainda que a comunicação por cartas busca estabelecer uma relação entre pessoas ausentes, servindo de nexo informativo em um momento de separação espaço- temporal e cumprindo uma finalidade comunicativo-interacional. Para ela, é a relação estabelecida entre os interlocutores que garante a eficácia de uma carta, que deve encerrar confidencialidade e, desse modo, “as cartas são um retrato da sociedade de seu tempo, porque revelam e desvelam não só o missivista, mas também seu destinatário numa prática social que os instanciam no momento da enunciação.”

3.1.1 Origem e estrutura das cartas

Segundo Bazerman (2005, p. 86), as cartas surgiram no antigo Oriente Próximo e na Grécia como forma de transmitir comandos e outros assuntos de Estado. Naquela época, as cartas eram entregues por um mensageiro designado pela autoridade remetente. O mensageiro costumava recitar a carta em voz alta no ato de sua entrega, como uma espécie de projeção do emissor. Doty (2014 [1973]) acrescenta que, mesmo depois que as cartas deixaram de ser recitadas pelo portador, permaneceu a ideia da projeção da presença do remetente.

Bazerman (2005, p. 87) afirma ainda que as cartas evoluíram a partir de usos formais e oficiais para correspondência pessoal transmitindo mensagens particulares, e que “cartas pessoais familiares tornaram-se comuns entre todas as classes dos mundos helênico e romano”.

Quanto à estrutura da carta, Adam (1998) faz a seguinte exposição:

Apesar de uma inegável diversidade genérica, a forma epistolar apresenta um certo número de constantes composicionais. Para a tradição medieval, uma carta tem cinco partes: a salutatio, a captatio benevolentiæ, a narratio, a petitio (pedido ou objeto da carta) e a conclusio. A tradição clássica reduz mais precisamente a composição a três grandes conjuntos: o contato com o destinatário da carta que corresponde ao exórdio da retórica, a apresentação e o desenvolvimento do objeto da fala cuja noção retórica de narratio não abrange todas as possibilidades, enfim a interrupção final do contato ou conclusão47 (ADAM, 1998, p.41).

47 No original: “En dépit d’une indéniable diversité générique, la forme épistolaire presente um certain nombre de constantes composicionelles. Pour la tradition médiévale une lettre comporte cinq parties: la salutatio, la captatio benevolentiæ, la narratio, la petitio (demande ou objet de la lettre) et la conclusio. La tradition classique réduit plus

As partes designadas por Adam (1998) segundo a tradição medieval correspondiam aos seguintes elementos:

Salutatio (“saudação”) — Cumprimento com formas de tratamento cerimonioso ou de familiaridade entre o remetente e o destinatário.

Captatio benevolentiae (“captação da benevolência”) — Serve como um exórdio para capturar a atenção ou a benevolência do destinatário, mostrando- se o destinatário geralmente com humildade para com aquele a quem escreve.

Narratio (“narração”) — Detalhamento do(s) motivo(s) da carta, quando se expõe(m) o(s) assunto(s) importante(s) a tratar na ocasião.

Petitio (“petição”) — Trecho em que se fazem pedidos e recomendações.

Conclusio (“conclusão”) — Encerramento com a expressão emoções, sentimentos, saudações.

Andrade (2011) aponta as seguintes partes constitutivas da carta pessoal moderna:

 local e data

 saudação ou abertura

 corpo da carta

 fechamento (contendo a despedida)

 assinatura

A essas partes, pode-se acrescentar o post scriptum, aquilo que se escreve após a assinatura, e que não ocorrera ao autor ou não convinha juntar com o assunto principal.

Na figura seguinte, uma carta de Machado de Assis a Franklin Dória (ANDRADE, 2011, p. 124-5) serve de modelo para a identificação das partes desse gênero textual:

justement la composition à trois grands ensembles: la prise de contact avec Le destinataire de la lettre qui correspond à l’exorde de la rhétorique, la présentation e le développement de l’objet du discours dont la notion rhétorique de narratio ne recouvre pas tous les possibles, enfin l’interruption finale du contact ou conclusion”.

Fig. 5: Partes da carta pessoal. Local e data Corpo da carta Saudação Fechamento Assinatura FONTE: O autor.

A estrutura acima (excluindo-se a indicação de local e data e a assinatura e considerando o post scriptum, quando há) é a que apresento como grupo de fatores para a análise da variação entre as formas com referência ao destinatário no capítulo de análise com viés variacionista.

3.3.2 Tradições discursivas em cartas

Um conceito muito importante a ser considerado por quem trabalha com cartas é o de tradição discursiva (TD), o qual, segundo Kabatek (2006), tem origem na Linguística alemã, especificamente nos estudos sobre as línguas românicas. Para o autor (p. 512), uma tradição discursiva é “a repetição de um texto ou de uma forma textual ou de uma maneira particular de escrever ou falar que adquire valor de signo próprio (portanto é significável)”.

Assim, uma tradição discursiva nasce da recorrência a um modo anterior de expressão que vai se firmando ao longo do tempo e adquirindo um valor fático. A repetição pode ser da expressão inteira, como acontece com as saudações “Bom dia!” ou “Tudo bem?”, mas pode ser também parcial (“Tudo bem?” / “Tudo bom?”) ou apenas formal, ou seja, sem repetir nenhuma das palavras usuais, mas a forma de expressar (“Tudo bem?” / “Como vai?”).

Uma TD, portanto, apresenta variação, mas a função fática permanece. Por exemplo, é comum na seção de abertura de uma carta pessoal uma frase como “Escrevo-te esta carta para te dar as minhas notícias e ao mesmo tempo receber as tuas”. O sentido dessa frase é o mesmo de “O fim destas poucas linhas é somente dar as minhas notícias esperando saber as suas”.

Kabatek (2006) argumenta que

Considerar a TD só desde o seu lado textual unicamente tem em conta um aspecto dela, precisamente o aspecto que nos interessa, mas que não é explicável sem a contrapartida que o evoca. A saudação, por exemplo, é evocada por uma situação concreta que se repete: o mencionado encontro evoca outros encontros nos quais se pronunciava a mesma sequência de palavras. (...) Ou pode haver tradições evocadas pelo canal ou o meio de comunicação, como o telefone, o SMS, o telegrama. (KABATEK, 2006, p. 511).

Assim, a carta, por se fazer através da escrita, apresenta TDs que evocam o próprio ato de escrever, como nestes trechos extraídos da amostra aqui analisada:

(2) É com sublime prazer e emoção na nossa alma que lanço mão da minha rude penna para lhe responder a sua emissiva cartinha [Carta 001]

(3) Com muito praser na manhã deste dia lanço mão de uma caneta para dar-lhe minhas notícias e ao mesmo tempo desejando resposta [Carta 029]

(4) É com imensa satisfação que te escrevo estas veixadas linhas para dizer-te que recebi a tua amorosa cartinha [Carta 045]

Segundo Kabatek (2006), uma TD tem o mérito de comunicar mais do que aquilo a que se referem seus termos componentes, uma vez que ela própria é um signo e evoca uma referência à tradição concreta. Nos trechos (2), (3) e (4), por exemplo, há uma referência ao próprio hábito de escrever cartas, e não apenas ao ato isolado praticado pelo remetente ao escrever aquela carta específica. Para o autor, “uma TD é mais do que um simples enunciado; é um ato linguístico que relaciona um texto com uma realidade, uma situação etc., mas também relaciona esse texto com outros textos da mesma tradição” (KABATEK, 2006, p. 513 – grifo do autor).