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3 AS CARTAS E SEUS AUTORES: UMA CONTEXTUALIZAÇÃO

3.4 A Assembleia de Deus como uma comunidade de prática

3.4.2 Pastor Zequinha: vida e obra

Antes do nascimento da AD no Brasil, na capital paraense em 2011, a Região Norte viveu um período de intensa imigração ocasionada pela valorização da borracha, produzida a partir do látex extraído da seringueira (Hevea brasiliensis). Segundo Bueno (2012), o grande boom no consumo da borracha, o qual fez com que milhares de pessoas migrassem para a Amazônia em busca de trabalho, se deu com a popularização da bicicleta na década de 1890 e, pouco depois, com a popularização do automóvel. A produção dos pneus desses veículos, além de muitos outros produtos que se tornaram populares no mercado, fez com que a borracha passasse a ser o segundo produto brasileiro, constituindo 24% da exportação total do país, atrás somente do café. O autor explica que

Com o contínuo crescimento da demanda pelo produto no mercado mundial, a economia amazônica teve de incrementar sua produção do único modo que se julgava possível, até então: via expansão física para seringais ainda não explorados rio acima, especialmente na província do Amazonas. Em decorrência, Belém assumiu o papel de principal porto de escoamento da produção gomífera. (BUENO, 2012, p. 36).

O autor afirma ainda que o maior surto econômico da região se deu de 1870 a 1910 e que a borracha alcançou o primeiro lugar nas exportações do Pará em 1871, com 4,8 milhões de quilos, contra 3,3 milhões de quilos de cacau. A esse período da história da economia brasileira costuma-se chamar de Ciclo da Borracha.

Enquanto a economia no Norte prosperava com a produção e exportação da borracha, o Nordeste vivia as consequências da seca de 1877-79, que, segundo De Nys et al. (2016, p. 22), foi a mais terrível de todas, dizimando metade da população cearense e quase todo o rebanho bovino. Por causa dessa seca, teriam migrado para a Amazônia 15% da população na época, e mais da metade da população de Fortaleza sucumbiu à fome e às doenças. Ainda no século XIX, a cada 10 anos, outras secas (a de 1888/89 e a de 1899/1900) voltariam a castigar os estados nordestinos.

Foi numa dessas grandes secas, em 1º de dezembro de 1899, na cidade de Crato, no Ceará, que nasceu José Alencar de Macedo. Era o primeiro filho do casal José Antônio de Macedo e Martinha Barros de Alencar. O pai, segundo Aquino (2005), era farmacêutico, pertencente a uma família tradicional católica e foi colega de escola de Cícero Romão Batista, que se tornaria nacionalmente conhecido como Padre Cícero.

Em 1900, em plena seca, o casal partiu para o Pará, fixando-se no povoado de Pau Amarelo67, no atual município de Santarém Novo. Mas a esperança de uma vida melhor converteu-se em tristeza: Martinha de Alencar faleceu, deixando órfão o filho com apenas quatro anos. O viúvo casou-se novamente, e a nova companheira lhe deu três filhas: Etelvina, Ernestina e Iracema.

O menino Zequinha, como era chamado José, foi posto pelo fervoroso pai católico para estudar no Colégio de Santo Antônio, instituição tradicional fundada pela Ordem dos Capuchinhos, e prestou serviços na Basílica Nossa Senhora de Nazaré antes de ir para o Seminário.

Aos 20 anos, porém, para a surpresa do pai, Zequinha interessou-se pela doutrina evangélica após assistir a um culto dirigido na residência de um cidadão chamado Manoel Zuca no dia 28 de dezembro de 1919 (AQUINO, 1997). O historiador Evandro Aquino, que entrevistou Zequinha na velhice, conta em seu texto sobre a vida do pastor publicado na revista Eclesiástica, da AD cearense, em 2005, que ele contava que “começou a sentir a

67 Há divergência de informação nas obras consultadas sobre José Alencar de Macedo quanto ao destino da família ao deixar o Ceará. Aquino (2005) e Costa (2008) afirmam a família foi residir em Belém, mas Castro (2011) informa que foi no município (sic) de Pau Amarelo.

chamada para regressar à sua terra natal para pregar o Evangelho da Salvação em Cristo” (AQUINO, 2005, p. 11).

Segundo o historiador, Zequinha foi incentivado a evangelizar por Celina de Albuquerque, uma das mulheres que, de acordo com Fajardo (2015), faziam parte do grupo de dissidentes liderados por Gunnar Vingren que resultou na fundação da AD no Brasil. O próprio Vingren batizou Zequinha num culto em Timboteua (PA) no dia 1º de março de 1920, conforme Castro (2011).

Conforme Costa (2008, p. 199), no dia 13 de janeiro de 1926, Zequinha retornou ao Ceará para divulgar a AD pelo interior do estado onde nascera, mas que não conhecia. Aquino (2005) afirma que foi Vingren quem incumbiu o jovem dessa missão, e Rego (1942, p. 20) informa que o cunhado de Zequinha, Juvenal Roque de Andrade, que já era pastor no Pará, acompanhou-o nessa tarefa.

Os dois homens desembarcaram numa pequena estação ferroviária denominada Miguel Calmon, em um povoado que hoje se chama Ibicuã e pertencia ao município de Senador Pompeu (hoje faz parte do município de Piquet Carneiro). Naquele povoado, segundo Rego (1942), já havia uma congregação da AD com cerca de quinze membros, os quais se reuniam numa fazenda cujo dono acolheu os recém-chegados.

Costa (2008) comenta sobre o início do trabalho de Zequinha como difusor da AD no sertão cearense nestes termos:

Foi o início de uma peregrinação gloriosa, desbravando o sertão na árdua tarefa de levar a mensagem viva da verdade. O entusiasmo em defesa da palavra de Deus o fez vencedor nas ferrenhas batalhas que travou com agressores gratuitos, que contestavam a sua pregação de paz e amor. Enfrentou insultos e agressões de grupos poderosos e prepotentes, combatendo com paciência, altruísmo e humildade, tendo a Bíblia Sagrada como única e poderosa arma. (COSTA, 2008, p. 199).

Zequinha, na companhia do pastor Juvenal, passou a pregar nos povoados vizinhos (Monte Sinai, Jirau, Buenos Aires, Luna). No ano seguinte, 1927, iniciou o trabalho de pregação no município de Morada Nova, visitando vários povoados da região. Foi num culto realizado no dia 4 de novembro daquele ano, na casa de um cidadão do povoado de Cipoada (distrito de Roldão), que Zequinha conheceu Maria Crispiniano de Brito, conhecida como Mariinha, com quem se casaria no dia 25 do mesmo mês.

No início da década de 1930, estendeu o trabalho de evangelização ao município de Quixadá, pregando em diversos povoados. Também por esse período, costumava viajar por até 15 dias, montado num jumento, para além do rio Jaguaribe, chegando à região na divisa

entre o Ceará e o Rio Grande do Norte. A AD em Apodi (RN) teve início por obra sua em 1934. Castro (2015), que entrevistou Zequinha no dia 5 de março de 1984, relata um episódio marcante na vida do futuro pastor:

Por várias vezes, foi humilhado e até preso, como aconteceu em 1935. Após o pastor Zequinha e o irmão José Rufino ter orado por uma mulher endemoniada, a mesma acabou se ferindo devido à ação maligna. Ao tomar conhecimento do ocorrido, o irmão da mulher, conhecido pelo nome de Joca, acusou os dois pregadores de ter espancado a sua irmã, o que acabou levando os dois obreiros do Senhor a serem presos injustamente por dois dias na cadeia pública de Quixadá. (CASTRO, 2015, p. 170).

Castro também relata que, certa vez, Zequinha, em suas andanças sob o sol escaldante do sertão central cearense, bateu à porta de um casebre para pedir água. Foi atendido por uma senhora a quem se apresentou e que, após lhe dar água, convidou-o a retornar para realizar um momento de oração em seu lar. O evangelista se dirigia a um povoado onde havia uma pequena congregação da AD e, após o culto, retornou, como prometido, à casa da mulher que lhe dera água. A senhora já havia reunido alguns vizinhos, e Zequinha deu início à pregação. Nesse momento, chegou o dono da casa, um cangaceiro chamado Zé Dantas. Este se pôs ao lado do evangelista em oração, pegou uma faca de dois gumes e um revólver, pôs o dedo no gatilho e assim ficou durante quase duas horas de pregação. Após o culto, Zequinha deu um exemplar do Novo Testamento ao cangaceiro e foi embora em paz.

Uma nova detenção ocorreria dois anos depois, em 1937, no município de Aracoiaba, quando Zequinha, acompanhado de João Arlindo, seu cunhado (casado com Iracema), recebeu ordem de prisão por parte de dois soldados. Estes detiveram os dois homens e os espancaram “de forma desumana” (CASTRO, 2011, p. 147).

O pastor Alcebíades Pereira de Vasconcelos, importante figura da história da AD brasileira, em carta a Zequinha, datada de 8 de novembro de 1955, comenta:

Porém no saber das suas lutas de pioneiro do evangelho nos sertões do Ceará e Rio Grande do Norte, veio-me as lágrimas nos olhos, por ver a semelhança do trabalho entre nós – eu também participei do tempo dos pioneiros nos sertões maranhenses! e, então, nosso traje era o seguinte – rede, roupas, calçado, livros as costas através de centenas de léguas... subindo serras e descendo ravinas, através de tombadores de areia, com sede e com fome – centenas de dias quebrando o jejum de vinte e quatro em vinte e quatro horas!... Mas, quantas bênçãos, quanta alegria, quanta felicidade!... Os perigos, as ameaças, os escarneos, os despresos, as incompreensões, são no dizer do poeta – outras tantas flôres a nos alegrar com o seu odor!...

No dia 9 de dezembro de 1938, José Alencar de Macedo é ordenado pastor pelo missionário sueco Nels Justus Nelson durante a Convenção Estadual das ADs, realizada no Templo Central, em Fortaleza, sob a presidência do pastor José Teixeira Rego.

Fig. 8: Certificado de Ordenação de Pastor de José Alencar de Macedo

FONTE: Arquivos da família Alencar.

Como pastor, Zequinha foi trabalhar na região do Vale do Jaguaribe (Jaguaribe, Jaguaribara, Jaguaretama, Limoeiro do Norte, Iracema, Ererê, Pereiro etc.) e do Oeste Potiguar, no Rio Grande do Norte.

No dia 8 de agosto de 1946, instituiu a AD de Quixadá, tornando-a sede de muitas congregações do sertão central. Foi o pastor da região até o final dos anos 1970. Durante esta década, de acordo com Costa (2008), manteve um centro social, com escola de alfabetização para crianças e adultos, aprendizagem doméstica (home schooling) e distribuição de donativos.

Segundo Aquino (2005, p. 11), “sua casa foi sempre um ponto de referência para os crentes. Além de ser uma casa de oração, servia de abrigo, hospedagem e, sobretudo, de amparo às mulheres crentes que se deslocavam do interior para dar à luz suas crianças”.

No dia 11 de janeiro de 1986, em culto solene, o empresário e prefeito municipal de Quixadá Aziz Okka Baquit conferiu a Zequinha a Medalha do Cedro, a mais alta condecoração do município, “pelos relevantes serviços prestados à sociedade quixadaense” (AQUINO, 2005, p. 11).

Fig. 9: Pastor José Alencar de Macedo (Zequinha)

FONTE: Arquivos da família Alencar

Pai de seis filhos, José Alencar de Macedo levou uma vida bastante simples, atravessando dificuldades financeiras em muitos períodos. Para Costa (2008, p. 200), “sua vida foi um caminhar de sacrifício e dedicação ao próximo. Quer em sua residência ou no templo, acolhia a todos com muito carinho”. Faleceu aos 91 anos, no dia 24 de agosto de 1991.

A fim de verificar a aplicabilidade da Distinção T/V de Brown e Gilman (1960) quanto ao uso das formas de tratamento entre membros da Assembleia de Deus no século XX, quando a igreja foi fundada e disseminada pelo país, bem como de descrever a variação de formas pronominais com referência à 2ª pessoa do singular por parte dos membros dessa comunidade, utilizo cartas pessoais escritas por assembleianos para o referido pastor da AD. A descrição da amostra e suas propriedades será feita no Capítulo 4.