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4 A AMOSTRA E OS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

4.2 O corpus

A pesquisa aqui apresentada é de caráter documental, com base em um corpus constituído de 141 cartas pessoais escritas por falantes do português brasileiro entre 1940 e 1986.

Segundo Marconi e Lakatos (2011, p. 49-55), cartas constituem dados de fontes primárias, pois são compilados pelo autor, não sendo transcritos de outras fontes. A aquisição delas, conforme as autoras, dá-se em domicílios particulares, sendo documentos cuja importância reside no fato de que são escritos na própria linguagem do autor.

Os documentos usados nesta pesquisa foram escritos num período em que a comunicação por cartas no Brasil era intensa, com a atuação das instituições que melhoraram o sistema de distribuição de correspondências e encomendas no país (o Departamento de Correios e Telégrafos [DCT], criado em 1931, e a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos [ECT], criada em 1969) e com o crescimento da população alfabetizada.

As cartas aqui usadas como corpus fazem parte do acervo familiar de José Alencar de Macedo, conhecido como pastor Zequinha (e chamado de Zeca por alguns membros da família). Encontram-se guardadas, junto com fotografias, livros e outros objetos que pertenceram ao pastor, sob os cuidados de D. Elizabeth Brito de Alencar, sua filha mais nova. Esta senhora, residente no centro de Quixadá, no sertão central cearense, gentilmente emprestou as cartas para cópias.

As cartas foram digitalizadas para gerar o fac-símile de cada uma delas. Os fac- símiles, por sua vez, foram organizados em ordem cronológica, conforme a data utilizada pelo remetente, catalogadas com a letra C seguida de um número de três dígitos, de 001 a 141, impressos e encadernados para facilitar o manuseio durante a pesquisa. Os originais foram devolvidos à proprietária, que demonstra grande apreço pelo material. Tomei conhecimento da existência destas cartas em conversas com os membros da família do pastor, de quem sou amigo, mesmo não sendo evangélico como eles.

Nos trechos das cartas transcritos neste trabalho, preservei a grafia e a pontuação usadas pelos remetentes, mas dispensei as indicações de mudança de linha ou de presença de rasuras, usando-as apenas quando conveniente, por não as considerar relevantes para a análise. Os grifos (sublinhados) destacam o que está sendo exemplificado e não constam do texto original. Havendo corte no trecho, este é indicado por [...]. Ao fim de cada trecho transcrito, indico o número da carta precedida da letra C (de “carta”). Para informações sobre data, local, nome e identificação do remetente, q. v. ANEXO 02.

Quanto aos critérios expostos por Hernández-Campoy e Schilling (2012) ― v. 3.2.1 no capítulo anterior ― ao relatarem os problemas com os quais os pesquisadores devem se preocupar ao compor suas amostras, o corpus aqui utilizado contempla-os plenamente:

1) Representatividade — As cartas foram escritas por membros de uma comunidade específica, a Assembleia de Deus, tanto do sexo masculino, quanto do feminino, e de diferentes setores da rede de relações do destinatário;

2) Validade empírica — A quantidade mais baixa de ocorrências das formas com referência ao destinatário são 20 tokens na única carta de neta, sendo mais de 30 em todos os outros grupos de remetentes;

3) Variação — Constata-se variação no uso das formas de tratamento em todas as cartas da amostra;

4) Autenticidade — Grande parte das cartas reflete o vernáculo dos autores, uma vez que muitos deles não tinham muita instrução, deixando transparecer na escrita traços de sua pronúncia, construções morfossintáticas e vocabulário próprios das variedades populares ou regionais;

5) Autoria — Sendo cartas privadas, elas naturalmente foram escritas pelo remetente ou ditadas por eles a algum parente ou conhecido alfabetizado. Há uma única carta em que o remetente assume não saber ler [C-054], e uma das cartas de genro foi escrita por sua esposa, que também escreveu para o pastor (a letra na carta do genro é a mesma das cartas da esposa enviadas a outros membros da família);

6) Validade social e histórica — As cartas registram o contexto social e histórico em que os remetentes estavam, pois trazem assuntos ligados ao cotidiano, como clima (notícias de chuvas, secas, colheitas), política (há menção à II Guerra Mundial e ao que os remetentes chamam de “ameaça comunista”), perseguições católicas aos evangélicos, dificuldades financeiras comuns aos nordestinos de meados do século XX, surtos de sarampo no sudeste, registros de implantação da AD em diversas localidades, conflitos internos à igreja. Todavia, é especialmente importante para a análise o registro dos aspectos sociais que definem a relação entre os remetentes e o destinatário e apontam para o papel do pastor Zequinha na AD cearense.

7) Ideologia padrão ― As cartas que constituem a amostra representam variedades diastráticas diversas, sendo umas escritas por mãos inábeis, com letra de difícil compreensão e diversas fugas da ortografia oficial, diversas construções não padrão, enquanto outras são escritas com esmero, passadas a limpo, sobretudo as dos pastores que tinham nível

superior, aproximando-se mais da norma-padrão. No entanto, todas foram consideradas no mesmo grau de importância para a análise.

Como alerta Labov (1994, p. 11), os documentos históricos (neste caso, as cartas) sobrevivem por acaso, independentemente da intenção, e a seleção que está disponível é o produto de uma série imprevisível de acidentes históricos. Infelizmente, por se tratar da junção de um material já produzido e o único disponível, não foi possível obter, na mesma proporção, cartas que representassem os mais diversos segmentos da rede de relações do pastor Zequinha. Assim, têm-se, por exemplo, mais cartas de um cunhado do que de outro, mais de alguns pastores do que outros, como também não há na amostra as cartas escritas pelo referido pastor, à exceção de uma, da qual ele fez uma cópia datilografando-a sobre o papel- carbono, que foi preservada (C-041).

Como a análise será feita em duas etapas ― primeiramente, observando-se o aspecto social da amostra; depois, controlando-se sobretudo os condicionadores linguísticos ―, enviesamentos estão descartados. Assim, a configuração da amostra, com sua natural desproporção entre o número de cartas nos diferentes grupos de remetentes, não prejudica a análise.

Após a coleta das cartas, foram colhidas, a partir de conversas com a proprietária e guardiã dos documentos, as informações sobre os remetentes (de onde eram, qual a faixa etária quando escreveram as cartas, qual a relação que mantinham com o destinatário). A essas informações foram acrescentadas as que constavam das próprias cartas.

Os remetentes de todas as cartas coletadas eram pessoas da camada popular (sem destaque na vida política ou artística, como deputados, senadores ou escritores)89. Não foi possível identificar a naturalidade de todas essas pessoas. Sabe-se apenas que viveram na área que Nascentes (1953) caracteriza como sendo de falar nordestino (Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas e parte de Tocantins) e de falar amazônico (Pará, Amapá, Amazonas, Roraima, Acre e parte de Tocantins). Alguns remetentes residiam em cidades cearenses; outros eram do Ceará e migraram para o sudeste, durante os anos 1960/70; outros, enfim, eram paraenses e haviam migrado também para o sudeste.

O fato de esses remetentes morarem ou de terem morado por longos anos na área dialetal definida por Nascentes (1953) levou-me a considerar sua produção escrita através de

89 Há na amostra cartas de um remetente que, posteriormente à escrita de suas cartas ao pastor Zequinha, se tornou deputado estadual no Ceará e também cartas de pastores que chegaram a publicar livros sobre a Assembleia de Deus e se tornaram ilustres em suas comunidades de prática.

cartas pessoais como uma manifestação da variedade linguística do norte/nordeste do Brasil. Sendo amostras da modalidade escrita, as cartas tendem a seguir certas normas nacionalmente usadas, não diferindo substancialmente das variedades escritas em outros estados do país. Há, porém, certas categorias gramaticais cujo emprego, mesmo na escrita, pode variar bastante de uma região para outra, e os pronomes são exemplos dessas categorias, havendo dentre eles formas que se empregam mais em algumas áreas do que em outras90.

O corpus usado nesta pesquisa foi analisado conforme a relação entre remetente e destinatário tomando-se este como referência. Essa relação foi considerada em três níveis: 1) proximidade (intimidade e não intimidade); 2) simetria (relações simétricas e relações assimétricas); e 3) condição (irmão, cunhado, amigo etc.).

A intimidade foi definida aqui adaptando os critérios estabelecidos por Nunes de Souza (2011). Em sua análise de peças do teatro florianopolitano, a autora definiu como íntimas as personagens que eram cônjuges, compartilhavam segredos ou tinham uma amizade antiga e significativa. Nesta pesquisa, considero íntimos do destinatário os remetentes que, além de pertencerem à mesma família dele (seja por parentesco congênito, seja por parentesco adquirido), ainda frequentassem sua casa ou dessem indícios de terem uma relação antiga, de modo a conhecer-lhes os hábitos, os gostos e fatos importantes da vida.

Quanto à condição do remetente em relação ao destinatário, preferi o termo “condição” a “tipo de carta”, pois compreendo que “tipo de carta” se refere a um subgênero epistolar que apresenta características que o distinguem de outros, como “cartas de amor”, “cartas familiares”, “cartas de amigo” e “cartas de leitor”. Neste grupo, considero o que o remetente era para o destinatário, se aquele escrevia na condição de cunhado, de pastor, de fiel etc.

O quadro a seguir mostra as quantidades de remetentes e de cartas em cada uma dessas categorias:

90 Estudos como o de Lopes, Rumeu e Carneiro (2012) atestam que a forma lhe, por exemplo, é mais usada em algumas áreas do Nordeste, e vários estudos comprovam que você ocorre de forma exclusiva em algumas áreas, dos quais são exemplos as pesquisas de RAMOS (1997) e de COELHO (1999).

Quadro 6: Configuração da amostra analisada relação condição nº de remetentes nº de cartas quanto à intimidade quanto à simetria intimidade (relações familiares) simétrica irmãs 2 11 cunhados 2 25 assimétrica genros 3 5 neta 1 1 não intimidade (relações extrafamiliares) simétrica pastores 9 15 assimétrica pastor-presidente 2 12 pastor discípulo 1 5 fiéis (homens) 30 40 fiéis (mulheres) 23 25 total 73 139 FONTE: O autor.

Como se percebe, a amostra está dividida em dois grandes grupos: o da intimidade, constituído por cartas de relações familiares, e o da não intimidade, constituído por cartas de relações extrafamiliares. Cada grupo, por sua vez, está dividido quanto à dicotomia poder/solidariedade, que compreende as relações como simétricas (de solidariedade) e assimétricas (de poder).

Além das 139 cartas mencionadas no quadro acima, ainda constam da amostra 1 carta de um remetente não evangélico e 1 carta escrita pelo próprio pastor José Alencar de Macedo usadas para demonstrar oportunamente alguma peculiaridade da amostra. No primeiro capítulo de análise serão apresentados mais detalhes dessa divisão.