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3 AS CARTAS E SEUS AUTORES: UMA CONTEXTUALIZAÇÃO

3.2 As cartas para a Sociolinguística histórica

Uma vez que se volta para analisar a variação linguística em sincronias passadas, em épocas em que não se dispunha de aparelhos de gravação de fala ou, ainda que já houvesse essa tecnologia, de uma amostra de fala gravada, os documentos escritos tornam-se primordiais para a Sociolinguística Histórica. Conde Silvestre (2007) afirma que, no caso dessa disciplina,

são mais úteis determinados tipos de textos que contêm informação sobre seus autores, as possíveis relações entre eles e seus destinatários, assim como dados sobre o contexto social que marca a comunicação. Neste sentido, as cartas públicas ou privadas de caráter autógrafo ou hológrafo refletem esta diversidade de níveis de interação e de estilos do passado (ao menos mais ampla do que a procedente de textos literários objeto de análise tradicional pela linguística histórica) e costumam ser, além disso, textos assinados ou rubricados, de autor conhecido, o que ajuda o linguística a reconstruir a informação pessoal e social necessária para seu estudo, oferecendo assim dados imprescindíveis para a extensão dos métodos de análise sociolinguística a estágios linguísticos históricos. (CONDE SILVESTRE, 2007, p. 51-2)48

Trabalhos sobre gêneros da modalidade escrita, sobretudo cartas pessoais, revelam sua importância no estudo das variações e mudanças linguísticas. Seara (2006) defende que a autenticidade das relações sociais, culturais e pessoais encontra seu testemunho de forma ímpar nas cartas, as quais traduzem o cotidiano e a vivência, em determinada época, de uma sociedade. Para a autora, o passado memorizado, o presente vivido e o futuro, esperado e desejado, podem ser encontrados no desenvolvimento das cartas, que é, portanto, lugar de temporalidade múltipla, pois “encerra esta mistura de tempos diversos: o da história passada, o da seleção da informação, o da escrita, o do envio, da recepção, da leitura e da releitura”.

Chagas (2011) afirma que os textos escritos são importantes quando pretendemos ter uma noção das mudanças de alguma língua num período mais extenso ou mais distante do atual. Porém o pesquisador deve estar preparado para interpretar o que está registrado nos textos de sincronias pretéritas e em que medida eles são um retrato fiel da língua falada naquele período, pois, apesar de ser algo conhecido que as línguas mudam, tanto em sua

48 No original: “son más útiles determinados tipos de textos que contienen información sobre sus autores, las posibles relaciones entre ellos y sus receptores, así como los datos sobre el contexto social en que se enmarca la comunicación. En este sentido, las cartas públicas o privadas de carácter autógrafo u hológrafo reflejan esta diversidad de niveles de interacción y los estilos del pasado (al menos más amplia que la procedente de los textos literarios de objeto el análisis tradicional por la lingüística histórica) y suelen ser, además, textos firmados o rubricados, de autor conocido, lo cual ayuda al lingüística a reconstruir la información personal y social necesaria para su estudio, ofreciendo así los datos imprescindibles para la extensión de los métodos de análisis sociolingüístico a estadios lingüísticos históricos.”

forma falada quanto em sua forma escrita, a modalidade escrita é sempre mais conservadora do que a falada. Por normalmente ser regulada por regras socialmente estabelecidas e estáveis, como os acordos ortográficos e as gramáticas normativas, a modalidade escrita de uma língua causa a impressão de se encontrar em um estado normalizado, estagnado, o que leva a achar que certas mudanças linguísticas ocorrem em bloco e em saltos, coisa com que nem todos os teóricos concordam. Assim, a nossa percepção da ocorrência de mudanças linguísticas é, em certa medida, filtrada pelo contato com textos escritos.

Silva (2011) diz que cartas pessoais, assim como outros corpora de língua escrita, são importantes fontes de investigação dos resultados de mudança em tempo real ou mesmo em tempo real de curta duração, ficando a cargo do pesquisador decidir o quanto vai retroceder na língua para fazer sua análise. Dependendo do veículo a ser utilizado como recorte da língua, o pesquisador pode fazer um recuo de séculos (cujo resultado será em tempo real) ou apenas de décadas (o que dará um resultado de tempo real de curta duração).

Como se viu em 2.2, cartas brasileiras escritas no período colonial e durante o Império têm sido o meio através do qual os pesquisadores têm podido estudar a implementação de você no sistema pronominal do português brasileiro e, consequentemente, os rumos que foram tomando as formas da P2 canônica a partir dessa implementação.

3.2.1 Problemas com amostras de cartas para a Sociolinguística histórica

A Sociolinguística histórica, como qualquer outro campo de investigação histórica, parte do princípio do uniformitarismo (principle of uniformitarianism), que, de modo geral, diz que “os seres humanos são criaturas biológicas, psicológicas e sociais que permaneceram, em grande parte, imutáveis ao longo do tempo” (NEVALAINEN; RAUMOLIN-BRUNBERG, 2012).49

Romaine (1988) reelabora o princípio do uniformitarismo adaptando-o à Sociolinguística histórica da seguinte maneira:

As forças linguísticas que operam hoje e são observáveis ao nosso redor não são diferentes daquelas que operaram no passado. Esse princípio é, sem dúvida, básico para a reconstrução linguística pura também, mas, sociolinguisticamente falando, significa que não há razão para acreditar que a língua não variava nos mesmos modos padronizados como se observa variando hoje. (ROMAINE, 1988, p. 1454).50

49 No original: “humans are biological, psychological, and social creatures that have remained largely unchanged over time”

50 No original: “The linguistic forces that operate today and are observable around us are not unlike those which operated in the past. This principle is of course basic to pure linguistic reconstruction as well, but, sociolinguistic-

Quanto às amostras de cartas, para sua validação em termos de análise, o pesquisador em Sociolinguística histórica tem de lidar com sete problemas, conforme Hernández-Campoy e Schilling (2012): 1) representatividade; 2) validade empírica; 3) variação; 4) autenticidade; 5) autoria; 6) validade social e histórica; e 7) ideologia padrão. Na primeira seção do Capítulo 4, depois que apresentar as peculiaridades do corpus, retomarei esses problemas relacionando-os à amostra que coletei.

3.2.1.1 Representatividade

O problema da representatividade consiste no desafio de que todos os membros da comunidade devam ter as mesmas chances de ser selecionados como informantes representativos; além disso, os informantes devem ser selecionados preservando-se as características sociológicas e demográficas da população inteira.

Esse é o critério mais difícil de ser atendido, conforme Milroy e Gordon (2003.p. 177), pois “os dados são frequentemente irregulares como consequência da preservação aleatória de alguns textos e da igualmente aleatória perda de outros”.51

3.2.1.2 Validade empírica

Para ser considerado válido em termos quantitativos, o número de ocorrências por células de uma variável dependente deve ser, no mínimo 15 e, idealmente, 30 ou mais (HERNÁNDEZ-CAMPOY; SCHILLING, 2012).

Por trabalhar com corpora limitados, nem sempre é fácil ao pesquisador em Sociolinguística histórica seguir esse critério.

3.2.1.3 Invariação

O fenômeno investigado deve-se apresentar de forma variável na amostra. O fato de que a pesquisa em Sociolinguística histórica depende de amostras de língua escrita, que tende a ser mais conservadora, mais formal e mais normativa do que a língua falada acaba por dificultar a manifestação variável das estruturas linguísticas, sobretudo quando os autores

ally speaking, it means that there is no reason for believing that language did not vary in the same patterned ways in the past as it has been observed to do today”.

51 No original: “the data are often patchy as a consequence of the random preservation of some texts and the equally random loss of others”.

pertencem à camada mais letrada da sociedade, sendo conhecedores da norma padrão e das convenções do texto escrito.

Para Hernández-Campoy e Schilling (2012), as variações encontradas nos documentos escritos são fruto das diferenças dialetais, sociológicas ou demográficas ou das diferenças estilísticas entre os falantes ou entre períodos de tempo distintos.

3.2.1.4 Autenticidade

O texto contido nos documentos deve refletir o vernáculo do autor.

Labov (1994, p. 11) comenta que as formas linguísticas nos documentos históricos (escritos) “são frequentemente distintas do vernáculo dos escritores, refletindo esforços em capturar o dialeto normativo que nunca foi a língua nativa de nenhum falante. Como resultado, muitos documentos estão cheios de hipercorreção, mistura dialetal e erro do copista”.52

Além disso, muitos documentos históricos apresentam problemas decorrentes do fato de terem sido copiados de outros anteriores que agora estão perdidos, de modo que muitos deles podem trazer o dialeto original misturado com o do copista.

3.2.1.5 Autoria

O texto contido nos documentos deve ter sido escrito de próprio punho ou ter sido ditado pelo autor.

Seja por problemas de saúde, seja por nível de instrução insuficiente para redigir um texto, era comum que remetentes de cartas pessoais pedissem a terceiros para escrever por eles. Uma carta de Tomás Pompeu de Sousa Brasil, o Senador Pompeu, disponível em Câmara (1960, p. 114), revela esse tipo de procedimento: “Sou obrigado a servir-me de mão estranha para responder a tua carta de 19 de julho p.p.; tal é o estado de meus padecimentos.”

No caso de correspondência oficial, os funcionários que exerciam cargos importantes em sociedades passadas costumavam contar com um secretário, o qual também atuava como copista, “responsável por escrever as cartas e organizá-las em um livro copiador” (MARCOTULIO, 2010, p. 93, n. 22).

52 No original: “are often distinct from the vernacular of the writers, and instead reflect efforts to capture the normative dialect that never was any speaker’s native language. As a result, many documents are riddled with hypercorrection, dialect mixture, and scribal error”.

3.2.1.6 Validade social e histórica

O texto contido nos documentos deve refletir o contexto social e histórico do autor.

Milroy e Gordon (2003, p. 177) alegam que “reconstruir a informação social necessária para interpretar padrões de variação em textos escritos nem sempre é simples”53

porque, dependendo da distância temporal que separa o pesquisador dos autores dos documentos, pouco se sabe sobre a posição social destas e sobre a estrutura social da comunidade delas.

Na busca por analisar formas de tratamento empregadas em sincronias passadas, tendo-se que recorrer a amostras de textos escritos, a carta pessoal se torna o documento propício para essa análise.

Andrade (2011, p. 113) defende que a carta pessoal testemunha de forma ímpar “a autenticidade das relações pessoais, culturais, de trabalho, entre outros, traduzindo a vivência de uma sociedade ou grupo.”

Para o aspecto linguístico mencionado (uso das formas de tratamento), a carta pessoal adquire grande valor uma vez que corresponde a uma conversa, ou a um momento de uma conversa em que apenas um dos interlocutores fala. A natureza da carta já pressupõe o surgimento de alguma forma com que o remetente trate o destinatário, seja para cumprimentá- lo, seja para lhe fazer um pedido, dar uma instrução ou conselho ou relembrar alguns momentos vividos juntos. Por mais objetiva que seja a carta, geralmente se encontra nela algum elemento dêitico com referência ao destinatário.

Conde Silvestre (2007, p. 52) argumenta que o fato de a carta ser assinada, identificando o autor, ajuda ao linguista reconstruir a informação pessoal e social necessária para seu estudo, “oferecendo assim os dados imprescindíveis para a extensão dos métodos de análise sociolinguística a estágios linguísticos históricos”.54

53 No original: “reconstructing the social information needed to interpret patterns of variation in written texts is not always straightforward”.

54 No original: “ofreciendo así los datos imprescindibles para la extensión de los métodos de análisis sociolingüístico a estadios lingüísticos históricos”.

3.2.1.7 Ideologia padrão

Milroy (1999, 2001) alega que existe o pensamento, tanto entre linguistas quanto entre outros estudiosos, de que certas línguas apresentam uma forma superior, mais correta e mais clara a qual é usada por alguns falantes naturalmente. Essa noção de “língua correta” é tão forte que resulta em uma padronização do idioma, as normas-padrão, que acabam por se tornar uma ideologia linguística. Assim, os estudos acerca dos dialetos não padrão são prejudicados por esse pensamento, uma vez que frequentemente os dialetos e falares tendem a ser descritos a partir da norma-padrão, como se derivassem dela ou fossem distorções suas.

Ao coletar uma amostra de cartas para conhecer fenômenos como a variação linguística, o pesquisador não deve priorizar aquelas que se aproximam da norma-padrão, escritas por pessoas que tenham maior conhecimento das regras gramaticais padronizadas. A coleta deve estar isenta dessa preocupação.