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As concepções teóricas sobre os direitos de liberdade e direitos sociais

A TUTELA INTERNACIONAL DOS DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL: ESTUDO

4. As concepções teóricas sobre os direitos de liberdade e direitos sociais

Esta controvérsia alimenta-se de três distintas orientações teóricas sobre os direitos de liberdade e direitos sociais: uma perspetiva unitária, que se opõe à distinção entre direitos de liberdade e direitos sociais; uma perspetiva de complementaridade entre a liberdade e a igualdade visível nos textos constitucionais em estudo (CRP e CF) e, por último, uma perspetiva da contraposição entre direitos de liberdade e direitos sociais.

Segundo a perspetiva unitária, na contraposição entre os direitos fundamentais de liberdade e os direitos sociais alimentada pelos liberais, acaba por se atribuir “uma menoridade axiológica dos direitos econômicos, sociais e culturais no quadro do sistema de direitos fundamentais”53, mas a descoberta da

existência de espaços de percetividade em todos os direitos fundamentais permite uma visão unitária destes. Esta perspetiva concretiza-se “num regime geral único comum, tradicionalmente associado aos “direitos, liberdades e garantias”.54

Quer a CFB quer a CRP adotaram uma via intermédia, sugerindo uma complementaridade dos valores da liberdade e da igualdade numa interdependência e conexão de preceitos fundamentais. Tomando como exemplo a liberdade de criação cultural plasmada nos artigos 42° da CRP/ 5° CFB, em conexão com a garantia do direito à cultura vertida nos artigos 73° da CR/ 215° CFB, é possível extrair da Constituição uma liberdade de criação que se apresenta na base da liberdade de outros direitos.

Face à perspetiva da contraposição entre direitos de liberdade e direitos sociais, verifica-se uma primazia das liberdades pessoais no confronto com os direitos sociais. Porém, a posição cimeira atribuída 51 Cfr. Nelson NERY JUNIOR, e Rosa, NERY, Constituição Federal, 2013, p. 283.

52 Idem, p. 216.

53 Cfr. André Salgado de MATOS, O Direito ao Ensino, 1998, p.2. 54 Idem, p. 75.

aos direitos de liberdade, não desvaloriza os direitos econômicos, sociais e culturais, antes não permite que se faça “a inversão antiliberal e antidemocrática de se afirmarem ou conformarem os direitos sociais em substituição das liberdades pessoais, civis e políticas”.

Em forma de balanço, regressamos ao significado da distinção constitucional entre direitos de liberdade e direitos sociais para reafirmar que a mesma não se reconduz apenas enquanto suscetíveis de regimes jurídicos diferenciados. Existe uma articulação dos direitos, liberdades e garantias ao Estado liberal e com ele a igualdade formal55 a liberdade e o Estado de Direito. Os direitos econômicos, sociais

e culturais preferencialmente se articulam com o Estado social, a igualdade material56 e os princípios da

solidariedade.

Além deste destaque, e não obstante alguns direitos poderem ter natureza análoga, beneficiando desse modo, do regime dos direitos, liberdades e garantias, há ainda um limite constitucional à comunicabilidade entre os direitos de liberdade e os direitos sociais, tal como refere José Alexandrino, na medida em que não opera essa comunicabilidade “sempre que o “problema da efetividade» dos direitos econômicos, sociais e culturais possa pôr em causa o princípio da efetividade jurídica dos direitos, liberdades e garantias”57.

Partindo para uma primeira aplicação ao direito de propriedade intelectual, com base na Lei Constitucional, podemos observar o seguinte:

i) A liberdade de criação intelectual, artística e científica e a proteção legal dos direitos de autor encontram-se acantonadas na Constituição Federal (CF) no Título II Dos Direitos e Garantias Fundamentais, artigo 5.º e na Constituição da República Portuguesa (CRP) igualmente no Título II, Direitos, Liberdades e Garantias, Capítulo I Direitos, liberdades e garantias pessoais, artigo 42.º;

ii) O aspeto patrimonial dos direitos autorais, bem como os direitos industriais encontram-se na CFB protegida pelo inciso XXII, referente ao direito de propriedade (Direito económico) XXIII, enquanto na CRP esse direito está consagrada no Título III, artigo 62º, inscrita na Constituição Econômica.O objeto do direito de propriedade, não se limita ao universo das coisas mobiliárias e imobiliárias, mas antes inclui a propriedade científica, literária ou artísticas, prevista no artigo 42º, bem como outros direitos designadamente os direitos de autor.

ii) O direito à cultura encontra-se previsto nos textos fundamentais (artigo 73º da CRP e artigo 215º da CF. Configura um direito social cuja definição fica a cargo do legislador. Permite- nos questionar se se trata de um verdadeiro direito, mesmo quando qualificado no texto constitucional?

55 GOMES CANOTILHO define igualdade como a “igualdade jurídica”, “igualdade liberal” “liberdade individual”, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2010, p. 426.

56 GOMES CANOTILHO fala-nos de uma “igualdade justa” onde o arbítrio é proibido e refere também que existem formas diferentes de promover a igualdade material por intermédio da lei, “devendo tratar-se por “igual o que é igual e designadamente o que é desigual”, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2010, p. 428.

Desta forma, os direitos econômicos, sociais e culturais beneficiam do regime geral dos direitos fundamentais mas não do regime especial58 previsto no artigo 18.º da CRP, para os direitos, liberdades

e garantias. Assim se conclui, que mesmo na ausência de uma hierarquia constitucional, os direitos, liberdades e garantias gozam de primazia face aos direitos, econômicos, sociais e culturais. Também se conclui que a proteção legal dos direitos de autor não se circunscreve à liberdade de criação cultural mas é também um direito de propriedade privada.

A sistemática constitucional tem alimentado um debate entre eminentes autores brasileiros, que aqui sublinhamos, dada a sua pertinência e atualidade:

Denis Borges Barbosa, argumenta que a “instituição da propriedade Intelectual é uma medida de fundo essencialmente econômico” 59, mas reconhece que pelo menos “os direitos pessoais (…) podem

estar incluídos entre os direitos fundamentais, como o que acede a boa parte da doutrina nacional e estrangeira.” 60. Algumas vozes defendem no entanto, que a Propriedade Intelectual, em concreto dos

direitos industriais deveriam ser inseridos na Constituição Econômica (artigo 170.º da CF) e não no capítulo dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, onde aliás foi sistematicamente inserida desde a Constituição Imperial de 1824.

No mesmo sentido, Fábio Konder Comparato, defende que nem toda a propriedade privada está sob a tutela dos direitos e garantias fundamentais. Nessa conformidade refere o seguinte:

O reconhecimento constitucional da propriedade como direito humano liga-se, pois, essencialmente à sua função de proteção pessoal. Daí decorre, em estrita lógica, a conclusão – quase nunca sublinhada em doutrina – de que nem toda propriedade privada há de ser considerada direito fundamental e como tal protegida (...) Escusa insistir no fato de que os direitos fundamentais protegem a dignidade da pessoa humana e representam a contraposição da justiça ao poder, em qualquer de suas espécies. Quando a propriedade não se apresenta, concretamente, como uma garantia da liberdade humana, mas, bem ao contrário, serve de instrumento ao exercício de poder sobre outrem, seria rematado absurdo que se lhe reconhecesse o estatuto de direito humano, com todas as garantias inerentes a essa condição (...)61.

José Afonso da Silva refere que, ao tratar a CF no inciso XXIX do artigo 5º a propriedade industrial, este “dispositivo que a define e assegura está entre os dos direitos individuais, sem razão plausível para isso, pois evidentemente não tem natureza de direito fundamental do homem. Caberia entre as normas da ordem econômica”62.

58 Cfr. Cristina QUEIROZ, Direitos Fundamentais: Teoria Geral, 2002, p. 149.

59 Cfr. Denis Borges BARBOSA, Capítulo II Bases Constitucionais da Propriedade Intelectual, 2010, p. 7-8. 60 Cfr. Denis Borges BARBOSA, Capítulo II Bases Constitucionais da Propriedade Intelectual, 2010, p. 7.

61 Cfr. Fábio COMPARATO, Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, nº. 7, p. 73-88, 1998.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho afirma que “esta matéria não mereceria ser alçada ao nível de direito fundamental do homem. Trata-se aqui da chamada propriedade imaterial que seria protegida pelo inciso XXIII, referente ao direito de propriedade. Como se viu, propriedade, nos termos do citado inciso XXIII, não abrange apenas o domínio. Compreende todos os bens de valor patrimonial, entre os quais, indubitavelmente, se incluem as marcas de indústria e comércio ou o nome comercial” (…)63.

Uma posição menos radical defende que os dispositivos sobre Propriedade Intelectual da Constituição, ainda que de natureza patrimonial, encontram-se vinculados de forma correta no artigo 5.º da CRF, mas devem ser submetidos às limitações das propriedades em geral, em particular ao uso social, além das limitações típicas dos bens imateriais”. Allan Rocha revela que “a efetivação da função social tem como objetivo principal a limitação da utilização social dos bens intelectuais pelo titular, em razão de diversos interesses da coletividade”64.

Denis Borges Barbosa argumenta que tendo em conta os objetos da Propriedade Industrial, onde se incluem as “criações industriais” e “outros signos distintivos”, constituem cláusulas abertas de modo a incluírem novas formas destes direitos. O autor afirma verificar-se uma dupla incidência de vetores, na medida em que à funcionalização geral do artigo 5º, XXIII da Constituição se soma à cláusula finalística do artigo 5.º, XXIX. Sobre esta questão o autor refere o seguinte:

“A Constituição Federal assegura ao inventor de patentes, um monopólio temporário para a sua utilização, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País (artigo 5º, XXIX), mas a mesma Lei Magna também determina que a propriedade deve atender à sua função social (artigo 5º, inciso XXIII). AI 200602010084342, decidido em 27 de junho de 2007, Relatora Marcia Helena Nunes, Juíza Federal Convocada”65.

O autor reforça o seu argumento apresentando jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 2ª Região no qual se dispõe:

Assim, o direito intelectual, mesmo sendo garantia constitucional, deve ser funcionalizado a fim de promover a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, e o seu exercício não é um fim em si mesmo, mas antes um meio de promover os valores sociais, cujo vértice encontra-se na própria pessoa humana. Assim, aspetos sociais devem prevalecer sobre as razões econômicas de um direito de patente, o que caracteriza a sua função social. Um desses aspetos se mostra quando se verifica a imensa diferença tecnológica existente entre os países desenvolvidos e os subdesenvolvidos. Aumentar em demasia o período de vigência da patente significará um prejuízo para toda a sociedade que não poderá utilizar uma tecnologia já obsoleta para realizar novos desenvolvimentos ou simplesmente

63 Idem Ibidem.

64 Cfr. Denis Borges BARBOSA, Capítulo II Bases Constitucionais da Propriedade Intelectual, 2010, p. 22. 65 Idem, p. 21.

utilizar um produto de tecnologia ultrapassada”, 1ª Turma Especializada, AMS 2006.51.01.524783-1, JC Márcia Helena Nunes, DJ 12.12.2008”66.

É possível extrair do artigo 5º, XXII da Constituição, o direito de propriedade intelectual, mas deve ser sempre mitigado com as restrições do inciso seguinte, ou seja, atender à função social. De igual modo, a propriedade privada, prevista no artigo 170.º da CF, é definida como princípio essencial da ordem econômica, mas deve igualmente atender à transcendência do bem comum, ou seja deve servir a função social.

Do lado dos doutrinadores portugueses, Oliveira Acensão defende que a forte ligação do direito de autor a sectores muito poderosos da atividade econômica, constitui um marco na nossa época67. Estes

sectores desenvolvem-se no ciberespaço implicando que, “os objetivos empresariais do direito de autor sejam mais nítidos e o significado efetivo do criador intelectual cada vez mais modesto.”68 Assim sendo,

“a invocação da dignidade da criação cultural e o reforço da proteção destinar-se-ão na realidade, antes de mais, à tutela das empresas de copyright”.69

Gomes Canotilho, defende que “a ponderação ou balancing ad hoc é a forma característica de alocação do direito sempre que estejam em causa normas que revistam a natureza de princípios” 70. E

concretiza referindo que “As ideias de ponderação (Abwägung) ou de balanceamento (balancing) surgem em todo o lado, onde haja necessidade de “encontrar o Direito” para resolver “casos de tensão” (Ossenbühl) entre bens juridicamente protegidos”71.