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5 O CAVALO MARINHO: UM “BRINQUEDO” POPULAR REGIONAL

5.1 AS CONFIGURAÇÕES TECIDAS ENTRE O CANAVIAL E O TERREIRO

Ao descrever as configurações do Cavalo Marinho, apresento uma estrutura que foi percebida como uma escolha comum aos grupos que desenvolvem este “brinquedo” popular regional, apresentando-se também em eventos culturais fora de suas respectivas comunidades. Por isso, saliento desde já, que as descrições aqui expostas estão ancoradas em observações que aconteceram em ambientes diferentes dos terreiros das comunidades, nas quais, o Cavalo Marinho é melhor desenvolvido e vivenciado.

O primeiro elemento apresentado na organização desse “brinquedo” popular regional é o “banco”, como o próprio nome diz, é o local onde se organizam e se instalam os brincantes que irão tocar os instrumentos musicais que, como pode ser observado na ilustração a seguir, geralmente são: um ganzá, duas bages, um pandeiro e uma rabeca:

Figura 13 – O Banco

Fonte: arquivo do autor.

A roda se forma a partir da instalação do “banco” e, todas as figuras, mesmo que circulem por outros lugares da roda, sempre fazem suas evoluções na frente do “banco” – seja em resposta ao Capitão que, geralmente, se encontram do lado direito do conjunto de músicos, seja como

forma de estabelecer uma relação direta com estes que realizam as “toadas”, que regem as entradas e saídas das figuras.

A estrutura apresentada no desenvolvimento de uma “sambada” de Cavalo Marinho pode sofrer mudanças e variações de acordo com as comunidades de onde os “brinquedos” procedem e, igualmente, de acordo com as deliberações estabelecidas pelos grupos que os desenvolvem. Diante da possibilidade de mudanças e variações na ocorrência desse “brinquedo” popular regional, existem alguns procedimentos que, ao meu ver, serão sempre concretizados da mesma forma. Dentre estes, apresento a configuração espacial circular que assegura a instalação e organização do “brinquedo” no terreiro:

Figura 14 – Roda de Cavalo Marinho.

Uma sambada de Cavalo Marinho dura em média oito ou nove horas, geralmente começa a noite e termina pela manhã. Quando se estabelece o “banco” – no qual se encontram os tocadores e o puxador das músicas denominadas “toadas” – acontece o Mergulhão, uma dança de aquecimento que é denominada pelos brincantes de “marguio” ou “magulho”. Como pôde ser observado na ilustração anterior, geralmente uma roda de Mergulhão é composta em sua maioria por homens que se desafiam em um jogo corporal que envolve escárnio, provocação e compartilhamento de alegrias.

Figura 15 – Roda de Mergulhão.

Fonte: Arquivo do autor

Mesmo que essa dança de aquecimento seja uma das especificidades do Cavalo Marinho, nem sempre é possível presenciá-la numa sambada. As vezes alguns brincantes optam por não

realizar o Mergulhão e seus movimentos denominados “trupés”. O “trupé” básico do Mergulhão é realizado da seguinte forma: pisa-se com o pé direito no mesmo lugar, em seguida, pisa-se com o pé esquerdo também no mesmo lugar e pisa-se com o pé direito dando um passo à trás do corpo, mas, sem transferir o peso para a perna direita que nesse momento apoia-se no ante pé.

Esse movimento pode ser também iniciado com o pé esquerdo seguindo a mesma sequência, ou seja, o pé que iniciou a pisada é que vai para trás do corpo e, quando volta para o lugar, é novamente o iniciador do movimento. Quando os brincantes desafiam-se na roda de Mergulhão, esse “trupé” é realizado de diversas maneiras, dando lugar a outros movimentos que os brincantes realizam para superar em agilidade e destreza aquele que o convidaram para entrar na roda. Sobre a dinâmica do Mergulhão, Oliveira (2006, p. 561) diz “Neste tipo de dança, um brincador busca outro na roda e o traz ao centro pelos braços, onde desenvolvem os passos característicos ou recriam através do improviso corporal e da fixação visual”.

Depois que acontece o Mergulhão inicia-se o desenvolvimento do enredo que é seguinte: o Capitão, que numa livre analogia, pode ser entendido como aquele que representa os donos de engenhos e de usinas de cana-de-açúcar da região, quer promover uma festa para homenagear os Santos Reis do Oriente que, segundo a tradição da religião cristã, visitaram o Menino Jesus logo após o seu nascimento, trazendo-lhe, cada um deles, presentes como incenso, ouro e mirra. Assim, para cumprir a sua intenção de promover a referida festa, o Capitão manda chamar o Mestre Ambrósio, que é um vendedor de figuras, para negociar com este, a compra de algumas figuras que possam animar a festa. A negociação entre os dois já acontece diante do público e é permeada por diálogos, músicas e danças que ficam a cargo do Mestre Ambrósio que, entre uma oferta e outra, imita as movimentações das figuras que serão compradas pelo Capitão.

Nas apresentações de alguns grupos essa negociação entre o Capitão e o Mestre Ambrósio acontece depois do Mergulhão, em outros acontece depois de um tempo de iniciada a festa e, posteriormente, algumas das evoluções que comumente são realizadas por Mateus, Bastião e Catirina, que sempre surgem em meio ao público com quem interagem antes mesmo de adentrar a roda. Dito isto, sigo descrevendo o Cavalo Marinho tendo como referência a estrutura que apresenta a figura do Mestre Ambrósio no início da sambada, após a realização do Mergulhão.

O Capitão não usa máscara e figurinos específicos, geralmente, ele é desempenhado pelo próprio mestre do brinquedo que, sendo também o “puxador” das “toadas”, se posiciona do lado

direito do “banco” e, através de um apito, coordena as “toadas” que regem as entradas e saídas das figuras e as demais ações que são realizadas na roda. Assim, durante o diálogo que estabelece com o Mestre Ambrósio que está no centro da roda, o Capitão permanece ao lado do “banco” ou um pouco à frente do mesmo. O diálogo entre o Capitão e o Mestre Ambrósio é permeado por firulas e algumas frases de duplo sentidos que, geralmente, provocam risos e identificação do público. Um trecho de um diálogo realizado entre um Capitão e um Mestre Ambrósio pode ser observado na transcrição apresentada a seguir:

“Mestre Ambrósio: Eu fui lá em cima e lá em baixo, meti a mão dentro … Capitão: Do saco!

Mestre Ambrósio: Do saco Capitão. Encontrei umas aqui, se eu botar serve? Capitão: No samba serve! Vai servi sim.

Mestre Ambrósio: Então o Capitão me pague o combinado.

Capitão: Ô seu Ambrósio! Só posso pagar se o senhor botar uma a uma. Mestre Ambrósio: Botar uma a uma Capitão?

Capitão: Figura!

Mestre Ambrósio: Se o Capitão falasse antes, eu já tinha botado. Capitão: Então bote Seu Ambrósio!

Mestre Ambrósio: Pode botar Capitão? Capitão: A figura no samba pode!

Mestre Ambrósio: Então vou botar Capitão! Capitão: Tem que abrir direito!

Mestre Ambrósio: Abrir o que Capitão? Capitão: a história Seu Ambrósio! Mestre Ambrósio: Já vou botar Capitão! Capitão: Figura no samba!”

Depois dessa passagem o Capitão também contrata o Nego Mateus para cuidar do espaço de ocorrência da festa, este, por sua vez, aciona seu auxiliar Bastião, a quem chama “parêa”, e também agrega a Nega Catirina, uma figura feminina feita por um homem. Essas três figuras são os “cuidadores” do “brinquedo”, elas asseguram o espaço da roda, provocando o alargamento da mesma quando ela fica muito pequena, preenchem os espaços entre as saídas e as entradas das outras figuras e, de modo geral, animam toda a ocorrência do Cavalo Marinho.

A partir desse momento outras figuras vão aparecendo na roda e, por intermédio de “toadas”, movimentos, comportamentos e falas versificadas, denominadas “loas”, vão narrando suas histórias e realizando danças que, em tudo, auxiliam na narração de suas respectivas sagas. São mais de 50 figuras, cada uma possui um nome, comportamentos peculiares e movimentos que caracterizam e revelam os motivos pelos quais aparecem na roda e interagem com os seus pares e com o público.

Considerando a complexidade desse “brinquedo” popular regional, assinalo que o mesmo possui uma dimensão religiosa que aparece nas “toadas” dedicadas aos santos católicos e, mesmo, em alguns momentos das Danças dos Arcos que são realizadas pelas figuras dos Galantes, pois, segundo alguns brincantes, os arcos representa o arco-íris, e este é interpretado pelos mesmos como uma aliança tecida entre a terra e o céu. Realizada coletivamente pelo grupo de Galantes e Damas, a Dança dos Arcos é desenvolvida com os arcos abertos e, em determinados momentos, com os arcos fechados, como apresentado nas ilustrações a seguir:

Figura 16 – Dança dos Arcos com os arcos abertos.

Figura 17 – Dança dos Arcos com os arcos fechados.

Fonte: arquivo do autor.

A outra atmosfera mágico-religiosa presente no Cavalo Marinho é trazida ao Cavalo Marinho pela presença do Caboclo d'Arubá, uma figura que, segundo alguns brincantes, dança descalço sobre vidros quebrados e não sofre nenhuma lesão pela realização dessa façanha. Não presenciei a aparição dessa figura, o que sei acerca da mesma foi colhido através de relatos de

brincantes e de registros de pesquisadores dentre os quais cito Oliveira (2006, p. 354) que, em meio as descrições das figuras do Grupo Estrela de Ouro, Condado - PE, diz o seguinte:

Seguindo a sequência da entrada das figuras, chega a vez do Caboclo d'Arubá, que adentra o terreiro sempre por volta das duas ou três horas da manhã. É ele próprio que desenvolve sua toada, acompanhado pelo Banco. É outro momento solene, ritual e religioso da brincadeira, porém, não mais voltado para o catolicismo, mas para o culto afro-ameríndio da Jurema, o que fica evidente tanto na figura do Caboclo, como na sua corporeidade e no seu canto.

A partir desta exposição, observo que, assim como as outras figuras, o Caboclo d'Arubá também apresenta movimentos e comportamentos que o descrevem e auxiliam na narração de sua saga e de seus feitos. E isso também inclui a dança que realiza sobre os vidros quebrados, como igualmente descreve Oliveira (Idem, p. 368-369):

O Caboclo d'Arubá utiliza a sua 'Toada de evolução' com dois objetivos bem claros. O primeiro é atrair a atenção dos espectadores para a roda, […] O outro objetivo é o de narrar todas as etapas do ritual da dança sobre os vidros quebrados. Desde a preparação da própria figura (descalçar-se, tirar a parte superior da vestimenta, etc.), ao trabalho de Mateus e Bastião que são os responsáveis por quebrar as garrafas na frente do público. Em seguida, o Caboclo se prepara espiritualmente com sua 'Toada de proteção' que é executada pelo Banco. É nesta toada que o Caboclo d'Arubá dança sobre os vidros pisados, primeiramente com os pés, depois com o rosto, com o ventre e com as costas.

Depois da participação do Caboclo d'Arubá, algumas “toadas soltas” são cantadas, seguidamente de “toadas” especificas para chamar outras figuras que também aparecem para abrilhantar a realização do brinquedo. Nem todas as figuras aparecem em uma sambada, por motivos que permanecem desconhecidos do grande público, umas figuras aparecem sempre, outras aparecem de forma esporádica.

Geralmente inserida nesse “brinquedo”, a figura do Boi é a última a aparecer na roda e, depois de realizar suas firulas junto aos presentes, dá lugar a uma grande roda de Coco de Umbigada, momento em que as figuras de Mateus, Bastião e Catirina recolhem a “sorte”, dinheiro solicitado ao público. Em seguida acontecem os agradecimentos, denominados “viva”, os tocadores vão até o centro da roda e, juntamente, com os demais brincantes, agradecem a presença de todos e desfaz a roda.

Essa estrutura é uma descrição do que comumente ocorre em algumas sambadas quando realizadas nas próprias comunidades, pois, quando são realizadas em eventos culturais a estrutura

é outra e varia de acordo com cada evento. Dito isto, saliento que, de acordo com as exposições feitas até aqui, pode-se observar que o Cavalo Marinho é um “brinquedo” popular regional que agrega diálogos com músicas, danças, uso de máscaras, adereços e alegorias, na construção de cenas e situações que são vivenciadas pelos brincantes que corporificam as diferentes figuras.

5.2. AS FIGURAS DO CAVALO MARINHO: CORPOS COMPOSTOS ENTRE O BARRO E