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2 CONSIDERAÇÕES INICIAIS: PISTAS PARA NORTEAR O CAMINHO

2.3 A VOZ DO CORPO E O CORPO DA VOZ NO TEATRO DE RUA

Em meio as suas reflexões sobre a expressão corporal e a conduta vocal dos atores com quem trabalhou, Grotowski (2007, p. 143) faz a seguinte observação: “Os atores têm problemas e as pessoas comuns não têm. Os camponeses cantam também quando está frio ou quando chove, em campo aberto, até mesmo quando é fácil forçar a voz, cantam e não têm problemas”. Também faço essa observação quando correlaciono o trabalho dos atores que atuam no teatro de rua, com o comportamento vocal dos jongueiros, que cantam, tocam e dançam por várias horas sem apresentar qualquer indicio de fadiga vocal.

Em meio à investigação do trabalho dos atores que atuam no teatro de rua, essa questão tem se apresentado como uma indagação sobre a qual tenho suspeitas, mas não possuo, ainda, uma resposta satisfatória que possa ser apresentada. Por isso, continuo buscando respostas e olhando com admiração para os dançadores e para os cantores que, em diferentes práticas populares regionais, dançam e cantam por horas e horas sem apresentar fadiga, rouquidão ou afonia. Esses dançadores e cantores populares apresentam qualidades corporais que, a meu ver, podem servir como valiosas referências para o trabalho dos atores que atuam no teatro de rua.

Norteado por essa perspectiva, assinalo que, ainda que os caminhos para o treinamento dos corpos dos atores sejam diferentes para a gestualidade e para a voz, as práticas de diferentes danças populares regionais podem auxiliar na promoção de uma equipolência entre a voz e a

gestualidade na atuação no teatro de rua. Colaborando com essa constatação Fortuna (2000, p. 127) diz: “Gestual, corpo e oralidade andam de mãos dadas, numa práxis única, tecendo juntos uma sinfonia sonora carregada de intenções que se desenvolvem entre os personagens, entre os atores, dos atores para os personagens, dos personagens para os atores”.

Também identifico a reciprocidade entre atores e personagens e, da mesma forma, concordo com a possibilidade de aprendizado a partir da construção das personagens que, às vezes nos exigem fluxos energéticos totalmente diferentes dos habituais. Entretanto, não tratarei da relação dos atores com as personagens, ainda manterei as observações na relação dos atores com eles mesmos e, por isso, mais uma vez cito Fortuna (2000, p. 63), que diz que “Na verdade, o corpo expressa imagens extraídas de dentro do ator, assessoradas pelo acervo técnico”.

As reflexões apresentadas neste momento tomaram como ponto de partida as atuações que foram desenvolvidas dentro do prédio teatral. Assim como as outras investigações, essas reflexões possibilitam aproximações com as especificidades da atuação no teatro de rua por apresentarem observações que servem a atores de diferentes práticas teatrais. Um exemplo dessa questão é observado quando Fortuna (Idem, p. 69) diz que “Cabe ao ator identificar o ambiente onde vai materializar sua voz”. A autora não estabelece um tipo de ator e, ao falar em “ambiente” ao invés de palco, ela não restringe esta indicação ao interior do prédio teatral e assim, possibilita conexões com diferentes contextos nos quais os atores atuam. Como parte dessas conexões, cito ainda a seguinte reflexão:

Sabendo-se que cada tempo tem um espaço e que cada espaço envolve a oralidade do ator num determinado tempo, cabe a ele construir um abraço sonoro no local de atuação. [o abraço sonoro] Consiste na percepção sônica global, na constatação espacio-temporal do ambiente, na abertura, enfim, de todos os canais sensoriais, conectores do ator no espaço de materialização do som. A expansão mais forte ou mais fraca da emissão será determinada pelo envolvimento do abraço. É como abraçar a plateia, para que a comunicação oral lhe atinja com perfeição e plenitude. Se o público não houve, não entende o que o ator fala, ele dá indícios de um incompetente jogador, impossibilitado de participar do jogo teatral completo. (Idem.).

Ao falar em “local de atuação” a autora contempla as práticas teatrais que são realizadas em diferentes espaços e, não somente no interior do prédio teatral. Não obstante, também identifico a mesma abertura para a conexão com o teatro de rua quando me deparo com a seguinte construção “conectores do ator no espaço de materialização do som” ao invés de palco,

como é usual entre aqueles que não se ocuparam com a atuação nos espaços diferentes do interior do prédio teatral.

Com base nessa exposição, penso como seria esse “abraço sonoro” numa prática teatral que acontece em um espaço polifônico e policromático, que fomenta a dispersão dos atores e do público, ao mesmo tempo em que acolhe, consome e submete a oralidade dos atores à sua dinâmica própria. A rua acolhe a oralidade dos atores na proporção que permite que a “expansão mais forte ou mais fraca da emissão” tenha espaço para a sua concretização; consome porque incluí em seu diverso conjunto de sons, as sonoridades produzidas pelos atores; e, submete essa sonoridade a sua dinâmica por não a interromper em função da atividade teatral.

Como assinala Carreira (2007, p. 45) a rua é “[...] Um espaço no qual o ator está submetido a duras exigências para poder cumprir com sua tarefa criativa”. De acordo com esta constatação, defendo que os atores precisam “construir um abraço sonoro no local de atuação” e que este abraço é, dentre outras coisas, a “percepção sônica global”. Em outras palavras, os atores devem dilatar seus sentidos e expandir seus limites para perceber, interagir com a polifonia da rua e tocar o público com as suas sonoridades.

Sobre a expansão dos limites dos atores, Lima (2008, p. 58) diz: “Com seus limites expandidos, o corpo nunca será um impedimento para o ator experimentar, mas propiciador de suas explorações”. Do mesmo modo, Meyerhold (2012, p. 202-203) diz:

O ator é um dançarino, e sabe dançar como um grande bailarino ou como um bando de moleques de rua. O ator sabe fazer chorar e, após alguns segundos, rir. Ele segura sobre seus ombros o gordo Doutor e ao mesmo tempo salta pela cena, como se fosse a coisa mais fácil do mundo. Ele é leve e flexível ou desajeitado e encarquilhado. […] O ator sabe falar rápido quando interpreta o papel de um espertalhão e vagarosa e cantadamente quando representa um pedante. O ator sabe desenhar através do tablado com seu corpo figuras geométricas, e de vez em quando pular imprudente e alegremente, como se voasse pelos ares.

Nesta exposição, observo que, mesmo que as descrições apontem para uma competência comum a todos os atores, e pode-se também, sem nenhum esforço, dizer que contempla os atores que atuam no teatro de rua. O termo “tablado” denota o contexto onde as mesmas foram elaboradas, ou seja, o teatro feito sobre o interior do prédio teatral. Aponto novamente esta questão, para evidenciar que o movimento de aproximação entre as diferentes teorias teatrais e a prática do teatro de rua segue por toda a escrita desta investigação.

Seguindo este percurso de aproximações, cito Lima (2008, p. 110) que, ao falar de um dos intentos de sua proposta de treinamento para o ator, apresenta uma reflexão que também abarca os impulsos que movem as articulações tecidas entre a prática do Jongo e do Mergulhão do Cavalo Marinho com os jogos e improvisações teatrais no teatro de rua, ao dizer o seguinte:

Ao propor um treinamento que prima pela valorização e aproveitamento de características individuais do ator, aspira-se à imagem do estandarte; onde se sustenta o que se quer lembrar, afirmar, reconhecer. Evoca-se uma imagem que, como o estandarte, invada o imaginário de quem o assiste, mas, de tal modo que possa o espectador ser tocado em sua humanidade e desarmado em suas expectativas. Que como um estandarte apreenda o espectador pelo que é e apresenta, e que o permita vivenciar em sua inteireza o ato, o espetáculo apresentado.

Ao enveredar por um caminho no qual concretizo um “treinamento que prima pela valorização e aproveitamento de características individuais do ator”, constato que a disponibilidade, a disposição corporal e o entendimento dos atores determinam o grau de assimilação que terão diante das articulações ora tratadas.

A questão referente à observação da sonoridade na concepção de corpo em festa permanece mobilizando uma pertinente reflexão acerca da expressão vocal dos atores que atuam no teatro de rua e, da mesma forma, dos dançadores que também utilizam a voz na interação com espaços abertos. O que é observado nos dançadores e precisa ser inserido no comportamento dos atores é a inteireza e o entendimento da vocalidade e da gestualidade de forma integrada.Esta inteireza e integração, no contexto das danças populares regionais, liga-se a motivos e sentidos tão profundos que é preciso adquirir um olhar multidisciplinar para tentar percebê-los – isso implica entender que, o olhar tecido através da arte não é suficiente para assegurar tal percepção. Colaborando com essa questão Geertz (1997, p.145) diz:

O sentimento que um povo tem pela vida não é transmitido unicamente através da arte. Ele surge em vários outros segmentos da cultura deste povo: na religião, na moralidade, na ciência, no comércio, na tecnologia, na política, nas formas de lazer, no direito e até na forma em que organizam sua vida prática e cotidiana.

Quando os atores percebem esse “sentimento pela vida”, eles entendem o sentido das danças populares regionais e percebem que os dançadores ritualizam em seus corpos, o que identifico como uma celebração à vida. Assim, os atores entendem que as danças populares regionais, que são desenvolvidas em seus contextos naturais, são celebrações que fluem para

atender uma necessidade do espirito humano – que é conjugado e atuante no corpo dos dançadores. Entender esta ligação pode ser um caminho para refletir a questão vocal tanto na prática dessas danças, tanto nas práticas do teatro de rua.

Outro fato a ser considerado no comportamento sonoro-vocal dos dançadores é a intrínseca ligação entre o labor e a expressividade observada na realização das danças populares regionais. O trabalho, nos contextos de onde muitas danças populares regionais emergem, molda, impulsiona, consome e também condiciona os corpos. Não condiciona, entretanto, no sentido de estabelecer limites, mas sim, de conceder-lhes condições para contrapor o peso do trabalho em gozo, júbilo e festa.

Essa conexão entre as práticas das danças populares regionais e os trabalhos que são realizados nos contextos onde as mesmas são desenvolvidas nem sempre é percebido na apreciação e nas vivências dessas danças. Na maioria das vezes, acessam-se as práticas dessas danças através da apreciação de expressões e elementos visíveis que, sem nenhum pudor, são apresentados aos olhos e aos sentidos de todos os presentes. Por isso, para perceber essa conexão e outros sentidos dessas danças populares regionais, é preciso acessar os modos com que os dançadores “organizam sua vida prática e cotidiana”.

Depois de um tempo de contato com algumas danças populares regionais, fui levado a reelaborar meus modos de apreensão de informação e minha forma de construção de conhecimento. Assim, ampliei a percepção para poder perceber as questões que se encontram implícitas nos ritmos, nas formas de cantar, nas construções das músicas, nos figurinos, nas alegorias, nos jeitos de dançar e nas distintas formas de exploração e organização do espaço físico dessas danças.

Desta forma, aguçar os sentidos foi uma condição necessária para poder entender mais da poesia presente nos contextos de ocorrências do Jongo e do Mergulhão do Cavalo Marinho e, posteriormente, utilizá-la no desenvolvimento de uma proposta de treinamento corporal para os atores que atuam no teatro de rua. Relaciono as práticas dessas duas danças populares regionais e do teatro de rua a partir de elementos que são comuns a essas três práticas. Dentre esses elementos, menciono o estado psicofísico que em diversos contextos teatrais é reconhecido como estado de presença – e aqui nomeado corpo em festa – e, igualmente, a configuração espacial

circular sob a qual essas danças populares regionais e grande parte das encenações do teatro de rua no Brasil se organizam.