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3 TEATRO DE RUA: UMA PRÁTICA ENTRE O CÉU E O CHÃO

3.1 UMA MODALIDADE TEATRAL ANTERIOR AO TEATRO

Ao apontar uma modalidade de teatro fora do teatro, estou empregando as duas acepções que a palavra teatro possui na literatura nacional. Neste sentido, a repetição da palavra teatro sugere um jogo paradoxal em que, à primeira vista, pode-se entender que estou propondo uma atividade teatral fora dela mesma. Mas, isso não seria possível, porque, se assim fosse, não estaríamos tratando do teatro, mas certamente, de qualquer outra atividade norteada pela nossa capacidade humana.

O pensamento que emerge a partir da articulação de palavras iguais com sentidos diferentes, é aqui organizado da seguinte forma: o primeiro termo teatro se refere ao fazer teatral, à encenação e ao conjunto de atividades que são desempenhadas pelos atores e diretores teatrais na construção de cenas e de espetáculos; já a repetição da palavra teatro corresponde ao prédio teatral, estrutura arquitetônica construída e projetada para a realização e apreciação da encenação. Esta segunda acepção da palavra teatro liga-se, intrinsecamente, ao seu sentido etimológico “lugar arrumado em função do olhar” ou “lugar de onde se vê”.

É justamente neste ponto, que teço algumas considerações que seguem apontando para o entendimento do teatro de rua como uma “modalidade teatral” anterior ao teatro. Para acessar

este entendimento, primeiro, é necessário reconhecer que se trata de uma atividade teatral que é concretizada na rua, fora de quaisquer construtos arquitetônicos, dentre os quais, prédios teatrais e salas multifuncionais que, habitualmente, abrigam o desenvolvimento de danças, teatros e outras artes. Assim, a apropriação da rua como um espaço fértil à realização de vivências e encenações é identificada aqui como uma característica determinante para a atividade teatral ser considerada como teatro de rua.

O teatro de rua tem como característica primordial a apropriação da rua como um adequado espaço para a concretização da encenação. Ainda assim, saliento que somente o desenvolvimento de atividades teatrais fora do prédio teatral não determina que as mesmas sejam consideradas atividades de teatro de rua. Essas atividades precisam ser impulsionadas pela intenção de dialogar diretamente como o público e interagir de forma criativa com as dimensões apresentadas por este espaço aberto, dinâmico e caracterizado pelo livre acesso da população.

Além de apontar para essa intenção de estabelecer um diálogo direto com o público, Souza (1993, p. 02) dentre outras informações que assinala, também menciona o teatro de rua como uma “modalidade de teatro”, na seguinte descrição:

O teatro de rua possui ampla tradição como uma manifestação popular, desde a Antiguidade Clássica até os dias atuais, passando pelas lutas de libertação dos povos da América Latina, nas últimas décadas. Tal tradição se justifica por possuir esta modalidade de teatro, inúmeros elementos facilitadores. Devido às características de sua estética, onde são aprofundados conteúdos e relações sócio-políticas em detrimento de caracteres psicológicos de personagens, e sendo uma forma extremamente dinâmica, permite abordar com agilidade temas emergentes e manter contato vivo e direto com o público, desenvolvendo diversas possibilidades, através de seus processos artísticos, métodos e técnicas, possíveis de serem adotados pelo “teatro convencional”, ou seja o teatro de recintos fechados.

Para driblar alguns equívocos na compreensão do teatro de rua, Carreira (2007, p. 43) adverte: “o teatro de rua não tem uma delimitação conceitual que facilite o trabalho dos pesquisadores que o tomam como objeto de estudo”. Em seguida, apresenta uma perspectiva em que também assume um entendimento do teatro de rua como uma “modalidade teatral” quando diz o seguinte:

Prefiro definir o teatro de rua como modalidade teatral e não como gênero, porque as características que o definem se relacionam mais com o fazer teatral e a utilização do espaço cênico, como acontecimento concreto de teatralização do que como as regras canônicas da elaboração do texto dramático. (Idem, p. 43-44).

Também concordando com a compreensão do teatro de rua como uma “modalidade de teatro” e, ainda fazendo referência a ideia apresentada por Carreira (2007), Telles (2008, p. 12) diz: “[...] Defendemos que a compreensão do teatro de rua, como modalidade (modo de fazer), também contribui para nossa análise dos modos de formar atores, desenvolvidos pelos coletivos selecionados e pela sua complexidade”. Compactuando com essa perspectiva, também trato o teatro de rua como uma “modalidade teatral”.

Ao entender o teatro de rua como uma “modalidade teatral”, não tenho a intenção de construir comparações antagônicas entre o teatro de rua, o teatro na rua e o teatro feito sob a tutela do prédio teatral. Cada “modo de fazer” tem a sua validade e serve aos objetivos daqueles que o desenvolvem. O que busco aqui é dissolver possíveis equívocos na compreensão e delimitação conceitual do teatro de rua, como também assinala Carreira (2007, p. 44):

É comum que se considere o teatro de rua como aquele teatro apresentado fora das tradicionais salas teatrais, mas isso simplifica a complexidade do problema. Ainda que as características do espaço cênico sejam, neste caso, determinantes para delimitar a modalidade teatral da rua, ao tomar em consideração o espaço da representação como único parâmetro, se corre o risco de colocar na mesma categoria manifestações tão distintas como uma encenação de um pequeno grupo em uma esquina de uma cidade, um desfile de carnaval ou qualquer representação em um anfiteatro ao ar livre.

Esta ideia é frequentemente fomentada por alguns artistas e pesquisadores que tendem a definir o teatro de rua sem considerar as suas especificidades. Portanto, para não incorrer no mesmo erro, identifico como teatro de rua as práticas teatrais que, além da apropriação dos espaços da rua, também mantém uma proximidade entre atores e público, possibilitando a sua inserção na encenação sempre que possível e, da mesma forma, considero como teatro de rua as práticas teatrais que permitem o encontro do público com a arte, sem a intermediação de ingressos pagos, que estão mais justificados pela necessidade de custear o conforto e a suntuosidade oferecida pelo prédio teatral do que, pelo desejo de gratificar o artista.

O teatro de rua aqui investigado tem as seguintes características fundamentais: a apropriação do espaço da rua e, esta deve ser uma livre escolha e não uma imposição movida pela falta de recursos financeiros para custear a locação de outros espaços; a abertura para estabelecer uma proximidade entre atores e público e a garantia do livre acesso do público as práticas

teatrais. É na rua que a poética deste teatro é forjada e, simultaneamente, ganha consistência, sentidos e potência.

O teatro de rua existe porque dialoga e interage com a dinâmica da rua e, também, porque tornam horizontais, as hierarquias sociais, presentes na sociedade, tratando de forma igual os diferentes públicos. Nesse espaço aberto não existem lugres de destaques, todos são iguais e essa premissa vale tanto para as pessoas excluídas que perambulam pela rua, tanto para aqueles que demonstram algum poder aquisitivo. Isso porque este teatro também tem como característica o ajuntamento de um grande e variado público no mesmo espaço.

Não pretendo estabelecer um debate contrapondo duas “modalidades teatrais” e conferindo valores para uma forma de realização teatral e descreditando a outra. Não defenderei aqui: este é bom e aquele não serve! Pois, compreendo que toda forma de arte tem uma devida importância para o contexto onde se desenvolve. Por isso, ao entender o teatro de rua como uma “modalidade teatral” anterior ao teatro, evito concepções que tendem a generalizar o seu entendimento de modo que, não consideram as suas especificidades. Como exemplo de uma concepção generalizada do teatro de rua, cito o trecho inicial da definição feita por Pavis (2007, p. 385) que, ao descrever o teatro de rua, diz o seguinte:

Teatro que se produz em locais exteriores às construções tradicionais: rua, praça, mercado, metrô, universidade etc. A vontade de deixar o cinturão teatral corresponde a um desejo de ir ao encontro de um público que geralmente não vai ao espetáculo, de ter uma ação sociopolítica direta, de aliar animação cultural e manifestação social, de se inserir na cidade entre provocação e convívio.

Nesta descrição encontram-se alguns pontos que merecem a atenção nesse momento: primeiro, o entendimento do teatro de rua como todo o “teatro feito em locais exteriores às construções tradicionais” sem considerar as especificidades da apropriação do espaço da rua para o desenvolvimento da encenação; segundo, “o desejo de ir ao encontro do público” não é regido pelo fato desse público não ir ao teatro, porque, esse desejo antecede a existência do prédio teatral. Ainda assim, sem a menor contradição, surge nesta descrição o segundo ponto que deve ser considerado no entendimento do que é teatro de rua, a “vontade de ter uma ação sociopolítica direta”.

O teatro de rua existe pela necessidade do convívio, pela vontade de estabelecer contatos diretos com o público diversificado que é próprio da rua, esse local de encontros, desencontros, riscos, tensão e transição. O desejo de ir ao encontro de um público diversificado e estabelecer com ele um momento de comunhão é o que impulsiona os artistas a optarem pela apropriação da rua como um espaço fértil ao desenvolvimento das artes de um modo geral. Em termos práticos, pode-se também observar que este desejo, de estar na rua e de estabelecer uma “ação sociopolítica direta”, encontra-se impregnado nas ações, nos comportamentos dos atores e, da mesma forma, reverbera no modo de organização do discurso cênico e do desenvolvimento da encenação.

O desejo de estabelecer uma “ação sociopolítica direta” encontra-se no cerne da atividade do teatro de rua como uma oposição ao confinamento das artes em locais que ditam normas que limitam o acesso à arte somente a aqueles que possuem poder aquisitivo. Quando aponto o teatro de rua como uma “modalidade de teatro” fora do teatro, estou chamando a atenção para esta questão. E por isso, não concordo com os artistas e pesquisadores quando os mesmos pontuam o nascimento do teatro de rua a partir da existência do prédio teatral.

Esses artistas e pesquisadores não consideram os impulsos que resultaram na produção das artes cênicas de um tempo ancestral e, por isso, fomentam a ideia de que o nascimento do teatro de rua acontece quando os artistas ligados ao fazer teatral saem dos limites do prédio teatral e ocupam as ruas. Seria certo afirmar que esses artistas e pesquisadores estão olhando para o acontecimento teatral através das lentes da atualidade e por isso referem-se ao fazer teatral de épocas mais atuais ou de um passado mais recente, não tão longínquo como os primórdios da humanidade. Esse entendimento do teatro de rua nascido a partir do distanciamento do prédio teatral pode ser observado em reflexões e descrições como as de Cruciani e Falletti (1999, p. 16):

E se os teatros, com a dureza da pedra e seus poleiros distantes, nos obrigam a ler em voz alta algum Oscar clássico para a plateia dos bombons, uma das soluções é, certamente, sair deles. Assim nasceu o teatro de rua, e das especiais características topográficas de seu nascimento extraiu alguns de seus traços e de seus desdobramentos.

Outro exemplo da mesma natureza pode ser observado quando Telles (2008, p. 12) escreve que “O teatro de rua nasce da vontade de os artistas de teatro ir ao encontro do público que não possui possibilidade de acesso às salas, ou está vinculado ao movimento político”. Essa “vontade

de ir ao encontro do público” existe, porém, ela não pode ser justificada pela impossibilidade de o grande público adentrar ao prédio teatral, porque se assim fosse, poderíamos pensar que, se todos tivessem livre acesso à estrutura do prédio teatral, não existiria teatro de rua.

Há outras leituras que fomentam o entendimento do teatro de rua a partir de rompimento com o prédio teatral, no entanto, a exposição feita até aqui possui força suficiente para impulsionar a continuidade da reflexão iniciada no começo deste capítulo, ou seja, a constatação da ocorrência de uma atividade teatral antes da existência do prédio teatral. Saliento que, ao buscar os embriões do teatro de rua nos primórdios da existência humana, não pretendo me inserir na inesgotável divergência estabelecida entre a teoria evolucionista, que defende que o homem descendeu do primata e a teoria criacionista que afirma que a humanidade foi criada por um deus supremo através de um casal de humanos por ele projetado.

O objetivo de tecer uma gênese de um teatro de rua – no qual eu acredito, me inspiro e desenvolvo – corresponde ao desejo de identificar os impulsos e características que revelam a ocorrência de um teatro ancestral – que era realizado em campo aberto, muito antes da existência do arcabouço arquitetônico para onde foi direcionada e, posteriormente confinada, a atividade teatral. Carreira (2007, p. 40) também observa esta questão:

Ao confinar o espetáculo teatral nas salas, a cultura capitalista determinou que o espetáculo aceitaria perder seu caráter de festa e ganharia o valor de mercadoria. Tal mercadoria tem mais valor nos espaços fechados onde o pagamento de entrada não somente gera lucro, mas também outorga hierarquia.

Sobre o confinamento sofrido pela arte teatral, também cito um trecho da descrição feita por Turle e Trindade (2010, p. 17-18):

Os atores passam, assim, de artistas livres a empregados de empresários e produtores. Os espetáculos realizados nas feiras, nos adros das igrejas, nos pátios das estalagens e nas festas de carnaval passam a ser desprovidos de qualquer valor artístico pela lógica burguesa, uma vez que não produziam lucro e este pensamento vai, gradativamente, se tornando hegemônico, banindo estas modalidades dos centros urbanos e as rotulando de baixa cultura.

Estas descrições demonstram uma oposição à ideia de que o teatro de rua surgiu a partir do rompimento com o prédio teatral e, ao mesmo tempo, apontam para o entendimento do teatro de rua como uma prática teatral constituída por história e questões sociais que dialogam com o

passado e o presente. Avançando neste sentido, destaco que, tanto na identificação de um teatro de rua ancestral quanto no entendimento do teatro de rua da atualidade, três pontos precisam ser observados: a apropriação do espaço aberto, a vontade de estabelecer uma ação sociopolítica direta e o modo de organização do discurso cênico.

Estes pontos são organizados de forma equilibrada e, por isso, ao acessá-los não se identifica uma ordem que aponte a superioridade de um ponto em relação ao outro. Neste sentido, pode-se constatar que o mesmo impulso que leva os artistas à apropriação do espaço da rua, também norteia a vontade de estabelecer uma ação sociopolítica direta e, igualmente, alimenta o modo de organização do discurso cênico.

A apropriação do espaço da rua, não é a mera exposição dos atores neste espaço aberto, mas sim, a atitude dialógica, atenta e cortês que os atores desenvolvem para serem inseridos na dinâmica deste local de trânsito que é, simultaneamente, atravessado por diferentes informações sonoras e visuais. Neste sentido, saliento que a percepção de apropriação do espaço da rua não passa pela delimitação do espaço da realização da encenação, mas, diz respeito à presença de espírito dos artistas que realizam essa delimitação.

A vontade de estabelecer uma ação sociopolítica direta, como já foi anteriormente apontada, é um impulso que leva os atores a se reconhecer como agentes e testemunhas de uma “modalidade teatral” que provoca diversão e promove reflexões – que são concretizadas no contato aproximado com o público. Juntos, atores e público forjam, dão consistência, sentidos e potência à prática do teatro de rua.

Relacionado com a dilatação dos limites impostos ao acesso a arte, encontra-se o modo de organização do discurso cênico, este, refere-se à disposição e à forma de utilização dos recursos e elementos teatrais. No contexto do teatro de rua, pode-se entender que as personagens, o desenvolvimento do texto, o comportamento dos atores, as configurações dos espaços das cenas, os adereços, os figurinos, as maquiagens e tudo que compõe a encenação são idealizados e concretizados a partir do entendimento da dinâmica da rua.

Depois de reconhecer o teatro de rua como uma forma de expressão e comunicação humana nascida de rituais coletivos em um passado ancestral e, depois de estabelecer o entendimento desta prática teatral como uma “modalidade de teatro”. Apresento uma perspectiva do teatro de rua no âmbito brasileiro, pois, é neste contexto que se encontram inseridos os atores a quem

direciono as reflexões e proposições metodológicas elaboradas a partir da articulação do Jongo e do Mergulhão do Cavalo Marinho com os jogos e improvisações teatrais.