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5 O CAVALO MARINHO: UM “BRINQUEDO” POPULAR REGIONAL

5.3 A SONORIDADE DO CAVALO MARINHO: UMA UNIÃO DE PALAVRAS, SONS E

Para acessar a sonoridade presente no cavalo Marinho, primeiramente, foi preciso adentrar no universo em que ele surge e é desenvolvido. Uma vez, dentro desse universo permeado por trabalho, festa, crenças mágico-religiosas e modos distintos de leitura de mundo, foi igualmente necessário dilatar os sentidos. Assim, só depois de mudar o olhar e apurar a percepção foi possível entender um pouco das sonoridades que embala as movimentações e, ao mesmo tempo, também emerge dessas próprias movimentações.

Para dilatar os sentidos e apurar a percepção a fim de entender a sonoridade presente no Cavalo Marinho, dentre outras fundamentações, fui norteado por Schafer (1991, p. 124) que, ao relatar suas experiências no delineamento do que chama de “ambiente sônico”, diz:

Qualquer coisa que se mova, em nosso mundo, vibra o ar. Caso ela se mova de modo a oscilar mais que dezesseis vezes por segundo, esse movimento é ouvido como som. O mundo, então, está cheio de sons. Ouça. Abertamente atento a tudo que estiver vibrando, ouça.

Deste modo, na tentativa de ouvir o que estava vibrando no universo do Cavalo Marinho, observei que as movimentações, pelo menos algumas delas, também produz sons que são agregados as “toadas” e aos sons que são produzidos pelos instrumentos que constitui o “banco”. Neste “brinquedo” popular regional as palavras são orquestradas de modos diferentes, ora elas são entoadas nas “toadas”, ora são organizadas nos versos das “loas”, ora são proferidas em diálogos que parecem unificar os diferentes sentidos que as mesmas têm. Durante a ocorrência de uma sambada os brincantes não apresentam uma projeção vocal que facilita o acesso às palavras que eles dizem. Paralelo a isso, o uso de máscaras de couro por algumas figuras também impossibilita uma articulação que ajude no uso das palavras.

Para quem olha a sonoridade do Cavalo Marinho de um lugar externo, o entendimento das palavras também se torna limitado devido aos termos específicos que são criados e utilizados pelos brincantes. Ou seja, sem nutrir uma aparente preocupação com a norma culta, esses brincantes transformam as estruturas das palavras como às conhecemos e, assim, estabelecem comunicações que refletem um entendimento regional – que é ancorado numa cultura rural que

no passado, sobretudo na época do nascimento e formação inicial dos mestres e outros brincantes mais velhos, não foi incluída em nenhum processo de alfabetização. Os instrumentos tocados pelos realizadores desse “brinquedo” popular regional também são aprendidos no convívio diário com outros tocadores, que também aprenderam a partir da interação com os brincantes mais velhos.

Os instrumentos que formam o “banco” são: rabeca, pandeiro, bage, também chamada reco-reco e ganzá que é igualmente conhecido como mineiro. Mesmo que alguns tocadores utilizem instrumentos feitos de forma não artesanal, a rabeca é um instrumento especificamente artesanal e, geralmente, é feita por um brincante que é reconhecido como “mestre rabequeiro”. Visando tornar familiar esse conjunto de instrumentos, apresento a seguir as ilustrações dos mesmos:

Figura 28 – Instrumentos Musicais (a partir da esquerda: rabeca, pandeiro, bage e ganzá).

Dentre essas movimentações que agregam sonoridade ao Cavalo Marinho, o exemplo mais forte pode ser observado nas figuras do Mateus e Bastião que, além de outras movimentações que realizam, dançam batendo a bexiga de boi na lateral da perna direita, produzindo um som estalado “tac, tac” semelhante a pontuação rítmica que é estabelecida pelo pandeiro, “tac, tac, tum – tac, tac, tum”. Outros exemplos podem ser também identificados nas pisadas soltas que são realizadas pelos brincantes em diversos momentos da sambada ou mesmo por algumas figuras que realizam pisadas específicas. Assim, embasado nessa observação, entendo que a sonoridade do Cavalo Marinho ganha forma a partir da união tecida entre palavras, sons e pisadas.

Na “toada” apresentada a seguir, pode-se observar que o termo “fulô” utilizado no lugar da palavra 'flor', elucida bem a transformação que os brincantes fazem na estrutura de algumas palavras, transformam a estrutura, a composição silábica das palavras, mas, não lhes muda os sentidos, assim, “fulô” continua com o mesmo sentido da palavra 'flor'. Do mesmo modo, na “toada” apresentada a seguir, aparecem outros trechos que também servem como exemplos para o entendimento da forma como os brincantes organizam as palavras:

Eu tava dormindo papai me acordou Eu tava dormindo papai me acordou Acorda as menina pra apanhar fulô Acorda as menina pra apanhar fulô É fulô, é fulô, é fulô, ai meu bem, é fulô É fulô, é fulô, é fulô, ai meu bem, é fulô O senhor meu Mestre também é fulô O senhor meu Mestre também é fulô É fulô, é fulô, ai meu bem, é fulô É fulô, ai meu bem, é fulô

É fulô, é fulô, é fulô, ai meu bem, é fulô É fulô, é fulô, é fulô, ai meu Mestre, é fulô A dona da casa também é fulô

A dona da casa também é fulô Acorda as menina pra apanhar fulô Acorda as menina pra apanhar fulô É fulô, é fulô, é fulô, ai meu bem, é fulô É fulô, é fulô, é fulô, ai meu bem, é fulô34

Além das “toadas”, a relação que os brincantes do Cavalo Marinho estabelecem com as palavras que são ditas, também aparecem nas “loas” e nos diálogos que algumas figuras

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estabelecem entre si, com o Mestre, com os brincantes tocadores que formam o “banco” e com o público. A distinção entre “loas” e diálogos é aqui apresentada devido à necessidade de delinear um entendimento da sonoridade presente no Cavalo Marinho, pois, nas ocorrências desse “brinquedo” popular regional, a fronteira entre essas duas formas de expressão vocal é bastante tênue.

Ao apontar a complexa sonoridade presente no Cavalo Marinho, Oliveira (2006, p. 539) igualmente assinala uma diluição das fronteiras que são estabelecidas entre as diferentes formas de expressão vocal que são desenvolvidas pelos brincantes desse “brinquedo” popular regional:

O universo sonoro que se apresenta na brincadeira do Cavalo Marinho possui um complexo sistema de interação entre voz, canto e música, no qual, por muitas vezes, torna-se impossível distinguir o que é canto, o que é declamação, ou o que venha a ser diálogo ou improviso, além da variedade de ritmos e melodias que integram o espetáculo.

Entretanto, ao avançar com suas descrições e reflexões acerca da sonoridade do Cavalo Marinho, o autor também reconhece a diferença entre essas formas de expressão vocal, ao dizer o seguinte:

Podemos perceber a diferença entre loa e “fala” de forma mais clara se observarmos também a composição corporal do figureiro no momento da récita. Sua postura para realizar as duas categorias vocais é completamente diferente, pois, quando os brincadores estão dialogando ou improvisando, seus corpos estão preenchidos pela estrutura física das figuras apresentadas, com suas gesticulações, formas de andar e imobilidades específicas. Quando a figura vai dizer uma loa, seu corpo ganha uma outra característica, ficando mais neutro, com uma postura que poderíamos definir como mais nobre, mais sóbria, mais altiva.

Diante dessa exposição faz-se necessário apresentar, mesmo que de forma resumida, um conceito de “loa”. E para isso, recorro à Cascudo (2012, p. 401) que, dentre outras atribuições, apresenta a “loa” como um “Verso de louvor, louvação em versos improvisados ou não”. Como não presenciei, até então, nenhuma figura dizendo uma “loa” com essa “postura mais nobre”, presumo que, a “loa” diferencia-se das outras formas de expressão vocal por não apresentar o caráter responsorial das “toadas” e nem o perfil interativo dos diálogos estabelecidos entre as figuras e seus pares e com os demais brincantes.

Mais uma vez recorro às transcrições feitas por Oliveira (2006, p. 289-290) para apresentar um dos momentos da sambada em que aparecem essas três formas de expressão vocal:

Loa do Soldado da Gurita:

Sou um Soldado da Gurita. Cubro a cabeça com um véu. Desce um planeta do céu. Estrela d'Alva é bonita.

Quando vem rompendo a aurora, As aves do campo chora, Passarinho canta e grita.

Hoje aqui só se fala em Soldado da Gurita.

Toada de Evolução do Soldado da Gurita:

Puxador: Ô papai, diga a mamãe que amarre o cachorro dela Banco: Ô papai, diga a mamãe que amarre o cachorro dela Puxador: O Soldado da Gurita tá fazendo sentinela. Banco: O Soldado da Gurita tá fazendo sentinela.

Diálogo entre o Capitão e o Soldado da Gurita (cont.):

S. da Gurita: Capitão, cadê os nêgo? Tá por aí, Capitão? Capitão: Tá aí.

S. da Gurita: Como é o nome desse? Capitão: Esse é Mateus.

S. da Gurita: Na roda dele eu tiro o meu. E esse outro? Capitão: Esse é Bastião

S. da Gurita: Esse já tá no chão. Bate o baião!

As descrições aqui apresentadas elucidam bem a constatação das diferenças entre as três formas de expressão vocal que são desenvolvidas pelos brincantes do Cavalo Marinho. Não obstante, essas descrições também denotam a característica teatral que pode ser apreciada na ocorrência desse “brinquedo” popular regional. Ao mencionar a característica teatral presente no Cavalo Marinho, assinalo a existência de um caráter cênico teatral que, para além das movimentações coreografadas, abarca o conjunto de sons que permeia todas as ações realizadas no desenvolvimento de uma sambada. Ao fazer essa observação, exponho um traço da complexidade e, consequentemente, a natureza aglutinadora de linguagens artísticas que o Cavalo Marinho possui.

“Toadas” são definidas por Cascudo (2012, p. 688) como “Cantiga, canção, cantilena; solfa, a melodia nos versos para cantar-se.” Por isso, entendo que o termo “toada” não é uma exclusividade do Cavalo Marinho, mas sim, de diversas manifestações populares regionais que, no âmbito cultural brasileiro, utilizam a música como parte integradora de suas ações. Mas aqui, continuo a descrever as “toadas” no Cavalo Marinho e por isso, cito Nóbrega (2000, p. 92) que, sobre essas “toadas” diz:

Os textos das músicas do cavalo marinho são ligados a um gênero lúdico, em torno de assuntos relativos a atividades econômicas, religiosidade, sentimentos de amor, referência a diferentes localidades, apresentado elementos sincréticos e temas contrastantes: sagrados / profano; pessoas / animais; vida / morte; cidade / campo; realidade / fantasia; nobreza / pobreza; O Boi / Jesus Cristo […] A forma poética utilizada nos cantos (improvisados em cima de versos tradicionais), contém na sua maioria estrofes de seis (sextilhas) ou quatro (quadras) versos, em forma estrofe/refrão ou pergunta resposta. A métrica não é rigorosa, sendo mais importante a rima.

Para a construção de um entendimento das “toadas” do Cavalo Marinho, cito também Oliveira (2006, p. 560) que, a partir das observações feitas em campo e da referência nas investigações realizadas pelos artistas-pesquisadores Alício do Amaral Mello Júnior e Juliana Teles Pardo, apresenta a seguinte classificação das “toadas” do Cavalo Marinho:

1 – Toadas de Boa Noite: […] São as toadas que iniciam a brincadeira, saudando e

desejando uma boa noite aos presentes. 2 – Toadas Soltas: São aquelas toadas […] que não estão diretamente relacionadas a figuras ou momentos dramáticos do espetáculo. […] 3 – Toadas de Mergulhão: São as toadas específicas para que se execute a dança do mergulho, ou “magüio”, de forte apelo interacional e combativo, na qual os brincadores se confrontam numa mistura entre deslocamento dançado e jogo de capoeira.

Antes de seguir com a classificação das “toadas” do Cavalo Marinho, apresento duas “Toadas de Mergulhão” que foram recolhidas numa oficina ministrada pelos artistas- pesquisadores Alício do Amaral Mello Júnior e Juliana Teles Pardo no ano de 2007 no Instituto

Brincante, Estado de São Paulo:

Puxador: Ô sabiá da mata, ô sabiá meu bem Banco: Ô sabiá da mata, ô sabiá meu bem Puxador: Ô sabiá da mata é passo que canta bem Banco: Ô sabiá da mata é passo que canta bem Puxador: Na mata tem

Banco: Esperança Puxador: Na mata tem Banco: Esperança

Nessa “toada” pode ser observado o “apelo interacional” que foi mencionado por Oliveira (2006), pois, em resposta ao puxador, que geralmente é o Capitão, o Mestre do “brinquedo”, não só o banco responde, mas sim, todos os presentes. Já o caráter “combativo”, que também foi apontado por este autor, pode ser observado na seguinte “toada”:

Aqui não tem mergulhador Aqui não tem mergulhador Aqui não tem mergulhador...

Como pode ser observado, essa “toada” diferencia-se do primeiro exemplo por ser composta por uma única frase que é repetida inúmeras vezes. Sempre que essa “toada” foi realizada na oficina, o ritmo era acelerado e, consequentemente, as batidas do pandeiro tornavam- se mais fortes e mais rápidas. Numa outra ocasião, quando participei de uma roda de Mergulhão promovida pelos atores do Grupo Quem Tem Boca É Pra Gritar, João Pessoa - Paraíba, novamente ouvi essa “toada” com o mesmo ritmo acelerado que, dentre outras coisas, denota o caráter “combativo” que a dança do Mergulhão já carrega em sua natureza.

Assim, sigo apresentado as classificações das “toadas” a partir das categorias estabelecidas e descritas por Oliveira (2006, p. 561-562):

4 – Toadas de Figuras: São as toadas que estão diretamente relacionadas às figuras que

entram na roda. […] 4.1 – Toadas de chamada: É comum à maioria das figuras e as apresenta convidando-as a entrar na roda, ora esclarecendo suas atividades profissionais, ora ironizando algum defeito. 4.2 – Toadas de evolução: São as toadas nas quais as figuras desenvolvem algum tipo de dança para exibirem suas potencialidades. […] 4.3 –

Toadas de ação: São as toadas nas quais se desenvolve algum tipo de conflito ou ação

dramática, promovendo, ao mesmo tempo, uma dança em forma de drama ou contracena. […] 4.4 – Toadas de saída: São as toadas que indicam a hora de saída da figura, finalizando sua participação no terreiro.

Dentre as subcategorias das “Toadas de Figuras” cito um dos momentos em que se pode observar a realização de uma “toada de ação” que, como foi assinalado nas descrições anteriores, “desenvolve algum tipo de conflito ou ação dramática”. Trata-se da luta entre as figuras de Mateus o e do Soldado da Gurita, que tenta prendê-lo. Nesse momento de grande agitação os dois brincantes, ditos “figureiros” improvisam movimentos de brigas ao som de uma “toada de ação” como essa que diz:

Puxador: “Prende o Mateus, Seu Soldado. Banco: Oi prende o Mateus, Seu Soldado. Puxador: “Prende o Mateus, Seu Soldado. Banco: Oi prende o Mateus, Seu Soldado.35

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“Toada” recolhida na oficina que foi ministrada pelos artistas-pesquisadores Alício do Amaral Mello Júnior e Juliana Teles Pardo no Instituto Brincante, São Paulo, 2007.

Chego ao fim da classificação das “toadas” do Cavalo Marinho, apresentando ainda as duas últimas categorias que são descritas por Oliveira (Ibid, p. 562) da seguinte forma:

5 – Toadas dos Galantes: São as toadas das quais participam o grupo dos Galantes,

numa serie de situações e danças. […] 5.1 – Toadas de louvação: São as toadas que se referem solenemente a santos católicos, louvando e enaltecendo seus valores, assim como ao dono da casa pela liberação do baile. 5.2 – Toadas dos arcos: São as toadas características para que os Galantes executem coreografias com os arcos que trazem consigo. […] 6 – Toadas de Despedida: São as toadas que finalizam o espetáculo festejando seu acontecimento e se despedindo dos espectadores, através de danças, cânticos, saudações e agradecimentos.

Diante das descrições até aqui apresentadas, faz-se oportuno findar este capítulo com o trecho da seguinte “toada de despedida”:

[…] Meus senhores e senhoras Todos queiram me escutar Adeus, até outro dia Nós vamos tornar a voltar. Despedida, despedida Quem se despede sou eu Como é por despedida Povo bom adeus, adeus [...]36

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