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4 O JONGO: UMA DANÇA POPULAR REGIONAL AFRO-BRASILEIRA

4.2 OS INSTRUMENTOS MUSICAIS: IMAGENS DO SAGRADO NA RODA

entendimento dos “pontos” que, assim como a própria prática do Jongo, preserva muitos mistérios que residem na memória e no conhecimento dos jongueiros mais velhos.

Anteriormente, assinalei que a maioria das danças populares regionais no contexto brasileiro possui uma ligação com crenças fundamentadas na fé católica. Entretanto, o sentido sagrado identificado na prática do Jongo, não se refere à uma determinada religião, ao contrário disso, esse sentido sagrado é movido pela crença em forças, energias e divindades que residem além dos formatos e limites estabelecidos pela religião católica e pelas religiões de matriz africana. Por isso, ao apontar os instrumentos como uma presença do sagrado na roda de Jongo, não me refiro à uma determinada crença atual, mas sim, a um comportamento humano que é regido por “ideologias religiosas” que vêm de um passado ancestral ainda mais longínquo do que o período da escravização do negro africano e afro-brasileiro no Brasil.

4.2 OS INSTRUMENTOS MUSICAIS: IMAGENS DO SAGRADO NA RODA

Figura 05 – Da direita para a esquerda: dois “Candongueiros” e um “Tambu”.

Para melhor desenvolver uma reflexão sobre o sagrado no Jongo, recorro à Mithen (2002, p. 279) que, em meio as investigações acerca da mente humana nos primórdios da humanidade, aponta para uma dimensão do sagrado que antecede a ideia de religião que circula na atualidade. Assim, ele expõe a crença em forças, em energias e em “seres não físicos” que, em tudo podem influenciar a vida nos limites da existência humana:

Muitos dos novos comportamentos que tenho descrito, como as imagens antropomórficas nas pinturas rupestres e o sepultamento de indivíduos com objetos depositados nos túmulos, sugerem que essas pessoas do Paleolítico Superior foram as primeiras a acreditar em seres sobrenaturais e possivelmente em uma vida a após a morte. O que observamos aqui é realmente a primeira manifestação de ideologias religiosas. […] Boyer30 explica que a crença em seres não físicos é a característica mais comum das religiões; pode realmente ser universal.

Quando menciona uma suposta crença na “vida após a morte” e em “seres não físicos”, como “a primeira manifestação de ideologias religiosas”, o autor toca na dimensão de sagrado que, atualmente, é identificada na relação estabelecida entre os jongueiros e os instrumentos musicais utilizados na roda de Jongo. Em outras palavras, assinalo que, os “seres não físicos” no contexto do Jongo, são os antepassados, os ancestrais negros, as almas daqueles que antecederam a existência dos que vivem o Jongo na atualidade.

Esses “seres não físicos” as vezes são mencionados nos “pontos”, entretanto, a potente relação entre o humano atual e a força percebida em seus ancestrais é desenvolvida através da presença dos tambores que corporifica a energia de ligação entre as duas diferentes dimensões. Neste sentido, assinalo que os tambores do Jongo representam as almas, os mais velhos já falecidos, mas, ainda vivos na memória e na força mística, mágico-religiosa que permeia a ocorrência do Jongo.

Esses tambores são denominados pelos jongueiros “angoma” ou “ingoma”, mas são especificamente reconhecidos como “candongueiro”, tambor de som agudo, e “tambu”, tambor de som mais grave (também chamado de “caxambu”). Esses tambores acompanham os “pontos” que são entoados pelas múltiplas vozes que são unificadas na construção de um ambiente coletivo forjado entre a “fé e festa”.

30

Pascal Boyer é um antropólogo francês, aqui citado por Steven Mithen (2002) que se refere às reflexões e descrições que Boyer fez no livro A Naturalidade das Ideias Religiosas, (1994).

Para os jongueiros, esses tambores têm mais sentidos do que o acompanhamento dos “pontos”, e por isso, são costumeiramente reverenciados no início das rodas de Jongo e, da mesma forma, sempre que um jongueiro entra na roda pela primeira vez. Assim, antes de desenvolver suas movimentações no centro da roda de Jongo, os jongueiros vão até a frente dos tambores e fazem um sinal com as mãos, às vezes mostram as palmas das mãos com os dedos voltados para cima, outras vezes, o fazem com os dedos voltados para baixo e o corpo levemente curvado na direção dos tambores.

Outros sinais e movimentos realizados por diferentes jongueiros podem ser observados em diversas comunidades, pois, esses sinais variam de indivíduo para indivíduo e também, de acordo com as localidades de onde desenvolvem suas danças. Contudo, esse comportamento referente aos tambores terá sempre o mesmo sentido de reverência, respeito e devoção ao sagrado. Essa relação entre o humano e o tambor parece ser um dos legados dos comportamentos africanos inseridos na cultura nacional, sobretudo, nas práticas de matriz africana. Um exemplo dessa constatação pode ser apreciado na descrição de Santos (2006, p. 68) que, ao observar a relação entre o humano e os tambores no contexto do candomblé, uma religião de matriz africana no Brasil, diz que “O lugar da orquestra de atabaques é muito importante para os membros do terreiro, que devem saudá-los colocando a mão direita no chão e na testa. Os iniciados, dançando na roda, não devem virar as costas quando passam em frente aos atabaques”.

Com essas descrições, a autora expõe um comportamento de reverência semelhante àquele realizado pelos jongueiros em relação aos tambores do Jongo e, igualmente, possibilita o aprofundamento dessa semelhança quando também assinala que “Os atabaques têm também um grande poder ritualístico; embora não se fale de um orixá específico, como no caso do Batá, poderíamos dizer também que eles próprios são as entidades” (Idem, p. 69). Apresentando a mesma perspectiva de ligação entre o humano e o tambor, Sabino e Lody (2011, p. 91) dizem que “Sem dúvida, há o sentimento integrador entre o corpo e o instrumento que buscam formar única voz.” No tocante ao Jongo, essa “única voz” seria o amalgamento das vozes dos jongueiros da atualidade com as vozes dos ancestrais, “pretos velhos” que os antecederam na vida comunitária e na prática dessa dança popular regional afro-brasileira.

Em meio as suas descrições e reflexões acerca das danças de matriz africana, Sabino e Lody (Idem, p. 95) também falam do atabaque, um dos tambores atualmente utilizado no Jongo:

O atabaque não será apenas um instrumento musical; ele ocupará o papel de uma divindade e, por isso, será sacralizado, alimentado, vestido; possuirá nome próprio e apenas sacerdotes e pessoas de importância para a comunidade poderão tocá-lo e usá-lo nos rituais. O instrumento fora do seu âmbito sagrado passará a valer pelos resultados sonoros, marcando, na maioria dos casos, a base rítmica de conjuntos, acrescidos de pandeiro, agogô, berimbau, entre outros. Assim, o atabaque é indispensável no samba e na capoeira, bem como em cortejos de rua, como o afoxé, ou em outras danças, como o jongo, no estado de São Paulo, e o carimbó, no estado do Pará.

Quando apontam que, dentre outras danças, “o atabaque é indispensável” no Jongo, esses autores estão mencionando este instrumento numa concepção que abarca o “tambu” e o “candongueiro” que são os tambores especificamente utilizados nas práticas do Jongo. Estes, são tambores confeccionados artesanalmente como pode ser observado nas imagens a seguir:

Figura 06 – A partir da esquerda: Atabaque, “Tambu” do Quilombo São José da Serra e “Candongueiro” do Grupo de Jongo de Barra do Piraí, Rio de Janeiro.

Os três tambores têm em comum as mesmas matérias-primas, ou seja: a madeira que forma seus corpos e o couro que cobre a parte superior dos mesmos. O atabaque é o maior dos três tambores, seguido do “tambu” – que mede entre um e um metro e meio de altura e tem, aproximadamente, cinquenta centímetros de diâmetro – e do “candongueiro” que mede entre sessenta e oitenta centímetros de altura e tem aproximadamente quarenta centímetros de diâmetro. Por se tratar de instrumentos artesanais feitos para o próprio consumo, as medidas dos mesmos variam de acordo com o desejo dos seus confeccionadores.

Sobre a confecção artesanal do “tambu” e do “candongueiro”, Ribeiro (1984, p. 19) apresenta o seguinte relato:

O couro de boi dá pra dois tambus. Dizem que o melhor é o de cachorro, que tem sonoridade própria, dispensando afinação; porém, nem se chega a começar o jongo se o tambu for com ele encourado. Dá briga antes da dança. O couro do cabrito, segundo uns, é muito bom; segundo outros, cede conforme a temperatura desce e requer esquentura por demais. Quanto à madeira preferida para o seu fabrico: suína (erytrina coralodendron), canjerana (cabalea cangerana), bico-de-pato (machaerium angustifotium), orelha-de-negro (?), sapava (?), e certa espécie de cedro. Acontece, porém, que às vezes uma árvore ‘panha vento, maribondo rancha nela, e vai trabaiano, vai trabaiano, vai trabaiano e deixa ela oqueada, então se proveita, se tira o mé e se faz o tambu, pode sê um angico, uma peroba, um jacarandá’.

Pela natureza de algumas palavras, que sugerem tratar-se de uma pessoa do meio rural, pode-se inferir que esta descrição é parte de um relato que a autora colheu em alguma comunidade e ao qual, no momento da escrita, acrescentou algumas palavras suas que criam um contraste com as palavras da entrevista – já que estas foram conservadas pela autora como foram ditas. Dito isso, assinalo que, paralelo aos “tambus” e “candongueiros”, tambores específicos do Jongo, observei que, em diferentes comunidades tem acrescido o uso de atabaques, simultaneamente ou no lugar desses outros tambores. Como exemplos dessa questão cito o Jongo realizado em Porciúncula e em Quissamã, dois municípios localizados no Estado do Rio de Janeiro.

Além desses três tambores, também é utilizado nas práticas do Jongo um instrumento denominado “angoma-puíta”, este possui tamanho e medidas variadas e, ao contrário dos demais tambores – que percutem a partir das palmadas que o tocador aplica na parte superior forrada com o couro de animal – repercute através da fricção que o tocador faz no pequeno pedaço de bambu, madeira ou corda que é preso ao couro que reveste a parte superior, por dentro do seu

corpo. A seguir, apresento imagens do “angoma-puíta” que atualmente é conhecido como “cuíca”:

Figura 07 – “Angoma-puíta” a partir de duas perspectivas.

Fonte: arquivo do autor.

Enquanto o “tambu” produz o som grave e o “candongueiro” o som mais agudo, o “angoma-puíta” produz um ronco grave ou agudo de acordo com a intensidade das fricções que o tocador realizar e também de acordo com a procedência do material preso no seu meio. Atualmente é mais recorrente o uso de atabaques, “tambus” e “candongueiros” nas rodas de Jongo, no entanto, ainda é possível observar a utilização do “angoma-puíta” em algumas práticas dessa dança. Diante da presença de um “tambu” com cem anos de existência ou de um atabaque com poucos anos de utilização na comunidade, o comportamento de reverência dos jongueiros será o mesmo. Ou seja, reverenciam os tambores sempre que entram na roda pela primeira vez e, às vezes, continuam saudando os tambores entre uma dança e outra.

Segundo relatam alguns jongueiros, o “tambu” e o “candongueiro” continuam sendo utilizados e cultuados nas práticas do Jongo, e por isso, no entendimento da utilização do atabaque, simultaneamente ou no lugar dos mesmos, três fatores precisam ser considerados:

primeiro, por serem instrumentos com muitos anos de existência são, geralmente, poupados de sucessivas exposições; segundo, devido a sua natureza artesanal somada ao vasto tempo de utilização, os tambores não possuem mais a mais potência sonora que os atabaques que, em sua maioria, são novos e de origem industrial; e o terceiro é, por serem habitualmente utilizados ao ar livre, em regiões de temperaturas baixas, o “tambu” e o “candongueiro” desafinam mais rápido do que os atabaques. Em algumas comunidades é possível contemplar a relação de cuidado e manutenção que os jongueiros têm com os tambores. Ainda que raro, é possível ver um jongueiro ou outro passando cachaça sobre o couro dos tambores e colocando os mesmos diante da fogueira para aquecê-los e afiná-los.

4.3 OS MOVIMENTOS DOS JONGUEIROS: REFLEXOS DA VIDA NUMA DANÇA DE