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As consultas ao governo e a atuação do Conselho de Estado

3. OS PRECEDENTES JUDICIAIS NO DIREITO DO IMPÉRIO

3.7 As consultas ao governo e a atuação do Conselho de Estado

Com o tempo estabeleceu-se uma prática quase regular de os juízes e tribunais consultarem o governo, isto é, o Ministério da Justiça, em caso de dúvidas na aplicação das leis. Estas consultas eram instruídas com pareceres da Seção de Justiça do Conselho de Estado342 e eram publicadas anualmente na Collecção das Decisões do Governo do Imperio

do Brasil.

A importância destas consultas decorre do surgimento de uma espécie de jurisprudência proveniente das resoluções oferecidas pelo governo343, mesmo não se tratando de manifestações decorrentes de decisões judiciais. Além disso, embora as decisões fossem do próprio Imperador, que resolvia as consultas, as razões de decidir eram dadas pelo Conselho de Estado, quer o Imperador se conformasse com a opinião da maioria, quer com os votos minoritários constantes dos pareceres do Conselho.

A prática pode ser atribuída tanto ao fracasso dos tribunais na formação de jurisprudência quanto à concepção, assumida por alguns juízes à época, de que o Judiciário não era propriamente um Poder independente, mas um departamento do governo; assim, alguns juízes se consideravam servidores que deveriam se submeter às orientações do governo, nutrindo também aspirações de cursar uma carreira pública para além da

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No Brasil Império houve três distintos Conselhos de Estado: um existente entre 1822 a 1823, intitulado Conselho dos Procuradores Gerais das Províncias do Brasil, criado antes da Independência; outro existente entre 1823 a 1834, criado por D. Pedro I após a dissolução da Assembleia Constituinte de 1823 (tendo um papel central na elaboração da Constituição Imperial de 1824), e extinto pelo Ato Adicional de 1834; por fim, o Conselho de Estado existente entre 1842 e 1889, criado pela Lei nº. 234, de 23 de novembro de 1841, e dissolvido com a Proclamação da República. É a este terceiro órgão que se está a referir.

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Trata-se de competência do governo (Poder Executivo), cujo chefe era o Imperador, e não do Poder Moderador, do qual o Imperador também é titular (o Imperador exercia o Poder Moderador no exercício das atribuições que lhe foram conferidas pelos nove incisos do art. 101 da Constituição Imperial).

magistratura, razão pela qual talvez quisessem fazer-se notar aos Ministros344. A esta submissão o governo e o Conselho de Estado se opuseram fortemente, ressaltando o princípio da separação dos poderes e as atribuições do Poder Judiciário, em especial o de interpreter a lei em face dos casos concretos.

De forma a se opor aos “abusos” praticados por juízes que procuravam se eximir ao seu dever de interpretar as leis por meio de sucessivas consultas ao governo, o Ministro da Justiça Nabuco de Araújo expediu a Circular de 7 de fevereiro de 1856 aos Presidentes das Províncias, por meio da qual o governo tornava público o exercício provisório do direito de interpretação das leis, enquanto a Assembleia Geral não encarregasse o Supremo Tribunal de Justiça de fazê-lo, impondo, no entanto, limites à sua atuação no exercício desta função.

A Circular determinou que os juízes nunca deixassem de decidir os casos para sujeitá- los como dúvidas à decisão do governo (prejudicando notadamente a administração da Justiça) quando as suas questões fossem referentes à interpretação e aplicação de uma lei em face de um caso concreto (§ 2º), não devendo os Presidentes das Províncias encaminhar ao Ministro da Justiça as consultas provenientes de juízes que procurassem se escusar de suas atribuições constitucionais.

Assim, o governo somente poderia interpreter as leis em substituição à Assembleia Geral “por forma geral e regulamentar”, ou seja, interpretando abstratamente a lei, “por

quanto, se as suas decisões versassem sobre os casos individuaes e occorrentes, dariam azo a conflictos e collisões com o Poder Judiciario, ao qual essencialmente compete por sua natureza a applicação das sobreditas Leis e a apreciação dos casos occorrentes” (§ 3º).

As decisões do governo na interpretação das leis não seriam tomadas por meio de simples avisos, mas em consulta ao Conselho de Estado e mediante a Imperial Resolução com força de decreto a que se refere o art. 102, XII da Costituição Imperial345, “precedendo

parecer dos presidentes da Relação, do Tribunal de Commercio, do procurador da Coroa e de outras pessoas doutas e respeito dos arestos e praxe seguida”346. Ressaltava-se o dever do

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LOPES, José Reinaldo de Lima. O Oráculo de Delfos: o Conselho de Estado no Brasil-Império, cit., p. 132. 345

O fundamento legal para a interpretação exercida pelo governo é a sua faculdade de expedir normas regulamentares para garantir a boa execução das leis, sendo a interpretação abstrata das normas um requisito para proporcioná-la. Cf. o art. 102, XII da Constituição Imperial: “Art. 102. O Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado. São suas principaes attribuições: (...) XII. Expedir os Decretos, Instrucções, e Regulamentos adequados á boa execução das Leis”.

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A Circular foi reproduzida integralmente na obra clássica de Joaquim Nabuco que fez o panegírico de seu pai: NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Imperio: Nabuco de Araújo, sua Vida, suas Opiniões, sua Época, T. 1. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1899, p. 282-284.

governo de não decidir, mas sujeitar ao Poder Legislativo os casos cuja decisão estabelecesse direito novo.

A atividade de resolução de dúvidas surgidas na aplicação da lei não encontrava previsão no regulamento do Conselho de Estado347. O procedimento de consulta ocorria, quase sempre, por intermédio dos Presidentes das Províncias, que tomavam conhecimento das dúvidas de órgãos do Poder Executivo, juízes, promotores ou qualquer outro oficial da Justiça e as decidiam provisoriamente, encaminhando-a para resolução ao Ministro da Justiça, que solicitava parecer do Conselho de Estado348.

O Conselho de Estado não se negava a opinar na interpretação de regulamentos ou interpretar abstratamente a lei, mas em geral se recusava a interpretá-la em casos específicos. Além disso, a Seção opinava pela remessa da consulta ao Poder Legislativo quando a dúvida era gerada pela insuficiência mesma da redação legal, ou pela deficiência no sistema jurídico como um todo (v.g., em casos de reconhecida lacuna ou antinomia) 349.

Em seu parecer, o Conselho de Estado podia opinar pelo envio da consulta ao Poder Legislativo (para legislar ou emitir leis interpretativas ou declaratórias); ao Executivo (se fosse hipótese de elaborar regulamento ou interpretar regulamento ou decreto, formalizando o entendimento do Conselho em parecer não-vinculante); ou devolver a dúvida ao Poder Judiciário, determinando que o juiz responsável interpretasse e aplicasse a lei ao caso concreto350.

Como se mencionou acima, a manifestação do Conselho de Estado era apenas consultiva; para dar execução às suas opiniões o Imperador as confirmava por meio de Resolução. Em seguida, era necessário um ato do Ministro (um Aviso, para casos singulares, ou um Decreto ou um Regulamento, para instruções de caráter geral), da Assembleia Geral ou do Poder Judiciário351.

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A mencionada Circular enviada aos Presidentes das Províncias repete os termos do Aviso de 7 de fevereiro de 1856, destinado ao Presidente da Província do Rio de Janeiro. O mencionado Aviso extendeu a todas as autoridades o procedimento de consulta ao governo facultado pelos arts. 495-497 do Regulamento nº. 120, de 31 de janeiro de 1842 aos Chefes de Polícia, Juízes de Direito, Juízes Municipais, Delegados e Subdelegados em matéria criminal, passando a abranger também a consulta referente às leis e ao processo civil e comercial. 348

LOPES, José Reinaldo de Lima. O Oráculo de Delfos: o Conselho de Estado no Brasil-Império, cit., p. 165. 349

LOPES, José Reinaldo de Lima. O Oráculo de Delfos: o Conselho de Estado no Brasil-Império, cit., p. 165- 166.

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LOPES, José Reinaldo de Lima. O Oráculo de Delfos: o Conselho de Estado no Brasil-Império, cit., p. 143. 351

No exercício de funções consultivas o Conselho ajudava a decidir, e, assim, criava uma interpretação “doutrinal”, não autêntica, e, portanto, não obrigatória para os casos futuros. Os Avisos dos Ministros, nos casos semelhantes, obrigavam, porém, os funcionários: tanto àqueles a quem eram diretamente enviados, quanto a outros352.