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Os precedentes judiciais e sua função no ius commune

2. OS PRECEDENTES JUDICIAIS NO DIREITO DA COLÔNIA

2.2 Os precedentes judiciais e sua função no ius commune

Diferentemente do ius proprium de cada unidade política da Europa continental na Idade Média, cuja autoridade era oriunda de um poder político central, o ius commune148 foi um Direito construído doutrinariamente, isto é, foi o fruto do trabalho de juristas que tentaram organizar e unificar um corpo bastante complexo de fontes, entre as quais os Direitos romano, canônico e feudal, compondo uma ordem jurídica universalista.

O papel da doutrina no Direito comum era, através da integração, eliminar dúvidas existentes no tráfego jurídico quanto ao conteúdo e à interpretação dos textos jurídicos fundamentais (principalmente as decretais e o Decretum Gratiani no Direito canônico e o Digesto e as Institutas de Justiniano no Direito romano149). Por esse motivo, a doutrina teve um papel fundamental no tráfego jurídico, repercutido na publicação de obras com opiniões de jurisconsultos a respeito de pontos controvertidos do Direito.

O ius commune era quase exclusivamente de origem doutrinária, repleto de controvérsias e argumentos de sentido diferente, resultando em soluções divergentes. Nas palavras bem escolhidas de António Manuel Hespanha, é possível dizer que “o tecido do Direito não era feito de regras, mas antes de problemas; para a resolução dos quais os juristas dispunham de fontes contraditórias”, e que “a abordagem do caso concreto era, por isso, feita de uma forma tentativa, confrontando o caso com vários argumentos (ou figuras de direito) possíveis, cada um dos quais justificaria uma solução diversa”150.

148

Há vasta literatura sobre o ius commune, à qual é impossível fazer referência completa. Destacam-se as seguintes obras: CAENEGEN, Raoul C. van. An Historical Introduction to Private Law. Tradução para o inglês de D. E. L. Johnston. Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 45-99; CAENEGEN, Raoul C. van. European Law in the Past and the Future, Utility and Diversity over Two Milemnia. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 13-18 e 73-88; GROSSI, Paolo. A History of European Law. Tradução para o inglês de Lawrence Hooper. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010, p. 27-38; WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno, 4a ed. Tradução de António Manuel Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, p. 15-95; GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 6a ed. Tradução de Antonio Manuel Hespanha e L. M. Macasísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 337-382. Na literatura luso-brasileira, cf. SILVA, Nuno Espinosa Gomes da. História do Direito Português, Fontes do Direito, 5a ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 191-300; HESPANHA, Antonio Manuel. História das Instituições, Épocas Medieval e Moderna. Coimbra: Almedina, 1982, p. 439-502; LOPES, José Reinaldo. O Direito na História: Lições Introdutórias, 4a ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 97-124.

149

Sobre a introdução do Direito romano em Portugal, cf. COSTA, Mário Júlio Brito de Almeida. “Romanismo e Bartolismo no Direito Português”. Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra, Vol. 36, p. 16-43, 1960.

150

HESPANHA, Antonio Manuel. “Porque é que Existe e em que é que Consiste um Direito Colonial Brasileiro”, cit., p. 62.

Como consequência disto, a partir de algum momento tornou-se difícil determinar qual opinião deveria ser seguida quando diversos doutores divergiam quanto à resposta a uma questão controvertida. Neste contexto, os juristas medievais conceberam a ideia de communis

opinio doctorum – não simplesmente a opinião da maioria dos juristas, mas a opinião de uma

maioria qualitativa, composta pelos mais prestigiados doutores151. Ainda assim, identificar corretamente a opinião comum dos juristas era uma tarefa difícil, dada a abertura deste conceito.

Por isto, não causa espanto que na segunda metade do século XVI, quando o projeto colonizador do Brasil tomou força, a prática jurídica em Portugal tivesse sido descrita como marcada pela “falta de segurança” e pela “incerteza dos julgamentos”, pelo “arrastar das questões” e pela “indisciplina das orientações existentes”, e até mesmo pela “confusão dos padrões de decisão nos tribunais”, consequência da incapacidade da doutrina em fornecer à prática e ao foro uma diretriz segura. A ciência jurídica medieval dos comentadores – que desde o século XIV procurava atualizar e sistematizar o Direito romano – cobrava em contrapartida o alto custo da promoção de um casuísmo “que ultrapassava os limites” de sua funcionalidade152.

A decadência dos argumentos numérico e/ou de autoridade como critérios para determinar a communis opinnio sobre o Direito aplicável, critérios utilizados durante algum tempo no medievo jurídico português (e europeu), causou uma insegurança jurídica que, apesar de ter sido minorada com as disposições das Ordenações153 do Reino que tornaram o Direito comum subsidiário, somente foi superada com o advento do trabalho dos praxistas e decisionistas. Estes recorreram à “última tábua de salvação”: os precedentes dos tribunais, que passaram a disciplinar a doutrina em face do mare magnum de opiniões contraditórias sobre

151

SILVA, Nuno Espinosa Gomes da. História do Direito Português, Fontes do Direito, cit., p. 191-300. 152

HESPANHA, Antonio Manuel. História das Instituições, Épocas Medieval e Moderna, cit., p. 512-513. 153

Ord. Afons., Liv. II, Tit. VIIII [IX], pr.: “Estabelecemos, e poemos por Ley, que quando alguu caso for trazido em pratica, que seja determinado per algua Ley do Regno, ou estillo da nossa Corte, ou custume dos nossos Regnos antigamente usado, seja per elles usado, seja per elles julgado, e desembargado finalmente, nom embargante que as Leyx Imperiaaes acerca do dito caso ajam desposto em outra guisa, porque onde a Ley do Regno dispoem, cessam todas las outras Leys, e Direitos; e quando o caso, de que se trauta, nom for determinado per Ley do Regno, mandamos que seja julgado, e findo pelas Leyx Imperiaaes, e pelos Santos Canones”.

os institutos e as regras do Direito romano, apoiadas num número cada vez mais imponente de citações de autores individuais154.

Fato é que sucedeu em Portugal um recrudescimento da relevância dada aos precedentes judiciais dos tribunais superiores, os quais passaram a ter, a partir da segunda metade do século XVI, notória audiência na doutrina, que se dedicara à sua compilação e comentário, passando a ser por ela conduzida. Não causa espanto, portanto, que tenha sido intitulada pela doutrina de Idade das Decisões e Casos Julgados155 a era que sucedera à Idade da Glosa e da Opinião Comum.

De fato, há noticia da publicação das principais decisões dos tribunais da Europa continental156, em especial nas jurisdições da França e dos Países Baixos, e de sua submissão a exame aprofundado pelos chamados arrêtistes, juristas que se dedicavam ao comentário das decisões dos tribunais superiores157.

Na França os tribunais adquiriram tanto prestígio que em determinado momento foi concedida ao Parlamento de Paris até mesmo competência para emitir os chamados arrêts de

règlement, pronunciados nos processos em que se levantava uma nova questão de Direito, e

que anunciavam uma norma geral de Direito aplicável erga omnes158. Tal poder era, no entanto, vedado à maior parte dos tribunais europeus, como é o caso da Casa de Suplicação.