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Os precedentes nas obras dos juristas do Império

3. OS PRECEDENTES JUDICIAIS NO DIREITO DO IMPÉRIO

3.5 Os precedentes nas obras dos juristas do Império

Nas obras de comentários aos códigos a menção aos precedentes era constante. O objetivo deste gênero literário era informar, através de notas marginais ao texto literal das leis, o entendimento da doutrina e dos tribunais a respeito da interpretação dos vários dispositivos legais, bem como eventualmente propor soluções para omissões ou contradições constantes do texto da lei. Na formulação destes comentários a citação de precedentes era comum.

Tome-se a obra de Vicente Alves de Paula Pessoa sobre o Código Criminal como exemplo. Em Codigo Criminal do Imperio do Brazil, Commentado e Annotado (...)318, ao transcrever o texto do art. 2º, § 2º do Código Criminal do Império319, o autor apôs nada menos que quinze notas de rodapé ao mencionado dispositivo legal. Transcreve-se abaixo a nota de número 11:

Português e o Direito Brasileiro”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Vol. 168, Nº. 396, p. 943-952, 1997.

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São exemplos de obras deste gênero: CAROATÁ, José Prospero Jehovah da Silva. Vademecum Forense, Contendo uma Abreviada Exposição da Theoria do Processo Civil; os Formulários de Todas as Acções Cíveis, Ordinárias, Summárias, Executivas e Comminatórias; os Formulários de Todos seus Incidentes, os dos Aggravos e das Appelações, e os das Execucções e de seus Incidentes; Finalmente, Muitos Arestos e Decisões de Juízes e Tribunaes do Paiz, Tudo em Conformidade da Legislação Vigente, 3a ed. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1881; SALES, José Roberto da Cunha. Foro Penal, Theoria e Pratica do Processo Criminal Brazileiro, Do Poder Judicial, Contendo Toda a Organisação Judiciaria Criminal, Jurisdicção e Auctoridade, Attribuições, Direitos, Deveres, Prerogativas e Incompatibilidades de Seus Membros, a Saber: Supremo Tribunal de Justiça, Senado, Relações, Juízes Municipaes e Seus Supplentes, Jurados e Chefes de Policia. Toda a Legislação Concernente até Hoje, Arestos dos Tribunaes, Decisões do Governo, Opiniões de Distinctos Jurisconsultos, bem como Doutrina, Commentarios e Refutações do Autor. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1882; SALES, José Roberto da Cunha. Tratado de Jurisprudencia e Pratica do Processo Civil Brasileiro, Fôro Civil, Contendo a Doutrina do Foro, Divisões e Especies Deste, Theoria das Acções e do Juízo; Entidades Essenciais e Accidentaes do Fôro, suas Attribuições, Deveres, Direitos, Prohibições e Prerogativas, Todas as Questões de Direito Civil e Orphanologico, que se Prendem a Cada uma das Attribuições dessas Entidades; Toda a Legislação Concernente em Vigor até Hoje; Arestos dos Tribunaes, Decisões do Governo, Opiniões dos Mais Abalisados Jurisconsultos Nacionaes e Estrangeiros, e Largos e Bem Desenvolvidos Commentarios, Doutrina e Refutações do Autor. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1882; SALES, José Roberto da Cunha. Tratado da Praxe Conciliatoria ou Theoria e Pratica das Conciliações e da Pequena Demanda. Rio de Janeiro: Nicolao d'Oliveira & C, 1879.

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PESSOA, Vicente Alves de Paula. Codigo Criminal do Imperio do Brazil, Commentado e Annotado (...), cit., p. 16.

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Eis o texto dos referidos dispositivos legais: “Art. 2.º: Julgar-se-há crime ou delicto: (...) §2.° A tentativa do crime quando fôr manifestada por actôs exteriores e principio de execução, que não teve effeito por circunstâncias independentes da vontade do delinquente”.

(11) A revista do supremo tribunal n, 2,145, de 5 de novembro de 1873, ainda dispõe relativamente aos quesitos de tentativa. (Vide na Gazeta Jurídica de 1873, n. 46).

A relação de S. Paulo, em acordão n. 1, de 17 de março de 1874, preceitua: que é nullo o julgamento, quando o quesito de tentativa deixar de ser feito nos restrictos termos do art. 2°, § 2°, do código criminal.

A mesma relacão, em acordão n. 5, de 21 de abril de 1814, decide: que o quesito de tentativa deve sêr formulado com todas as circumstancias que a caracterisar, conforme a definição da lei, e não em termos vagos que importem uma questão de direito alheia á competência do jury. (Vide nota 620)

Ao longo de todo o texto são citados acórdãos das Relações e, principalmente, do Supremo Tribunal de Justiça, bem como lições de doutrinadores nacionais e estrangeiros, avisos do Governo e, obviamente, outros atos do Poder Legislativo.

O mesmo procedimento segue Antonio Tinoco nos seus comentários ao Código Criminal, nos quais fez uso de “numerosos arestos para intelligencia e melhor apreciação

das disposições commentadas”, nas palavras do prefaciador de sua obra, O. H. d’Aquino e Castro. Tinoco segue a linha mencionada acima; a título de exemplo, mencione-se o seu

comentário ao art. 14, §6º do Código Criminal320, que prevê a ausência de punibilidade do senhor que inflige castigos moderados em seus escravos. Tinoco menciona a existência de precedente que interfere sensivelmente na interpretação do que poderiam constituir “castigos moderados”, pois:

Ferimentos leves feitos pelo senhor em seu escravo, em acto de castigo, constituem o crime do art. 201 do Cod. Crim. e dá lugar á denúncia do Promotor Publico. Rel. do Maranhão. Ac. de 5 de Janeiro de 1875. Recorrente — Raymundo José Lamagner Vianna, e Recorrida — a Justiça. Gazeta Jurídica, vol. 7321.

O estilo de citação de precedentes é o mesmo: mencionam-se apenas os dados suficientes para identificar o precedente e o local em que o mesmo foi publicado, sem entrar em detalhes sobre os fatos e os fundamentos do órgão julgador. Ocasionalmente, contudo,

320

“Art. 14. Será o crime justificavel, e não terá lugar a panição delle: (...) § 6.° — Quando o mal consistir no castigo moderado, que os pais derem a seus filhos, os senhores a seus escravos e os mestres a seus discípulos; ou desse castigo resultar, uma vez que a qualidade delle não seja contraria ás leis em vigor”.

321

Tinoco aparenta322 transcrever trechos de acórdãos, sem a narração dos fatos que coloram o caso concreto mas expondo as considerações jurídicas que fundamentam a decisão judicial:

… Concedem a revista; porquanto, mostrando-se dos autos que a condemnação que a recorrente teve foi o mesmo que se fosse de galés perpétuas, por isso que a pena de prisão perpetua, que lhe foi imposta, o foi era virtude do art. 45 § 1º do Cod. Crim., que não permitte que se imponha às mulheres a pena de galés, e sim a de prisão pelo mesmo tempo, e com trabalho análogo ao sexo, é evidente que pelo art. 449 do Regulamento n. 120, de 31 de Janeiro de 1842 era competente a appellaçãò ex officio que o juiz de direito, presidente do jury, interpoz, e devia a Rel. tomar conhecimento dela, e de outra sorte as mulheres seriam perante a lei de peior condição, que os homens, porque neste caso haveria appellação ex officio para os homens, e não para as mulheres, que nunca podem ter a pena de galés; o que é injusto e absurdo. Sup. Trib. de Just. Rev. Crim. n. 1386. Ac. de 1 de Novembro de 1851. Recorrente — Izabel Jacyntha da Silva, e Recoirrida - a Justiça. Practica das Correições. Desembargador Aquino e Castro323.

Na verdade, o autor confessa na “Advertencia” constante do início da obra que o verdadeiro objetivo do escrito era colecionar a jurisprudência firmada pelos tribunais, e que as anotações aos artigos do Código Criminal foram apenas o método mais adequado de organização e catalogação dos precedentes que reuniu em sua pesquisa por matéria324.

Por sua vez, os manuais práticos para uso de profissionais e os livros de prática processual empregavam fórmula parecida, embora as referências marginais a precedentes não se conectassem a fragmentos de leis, e sim ao seu próprio conteúdo, que expunha de forma organizada a ordem do processo e outras questões de natureza prática. A menção a precedentes muitas vezes expunha a fundamentação do julgado e a conclusão a chegou o seu órgão julgador, mas às vezes não se indicava qual havia sido a resolução do caso concreto, procedendo-se tão-somente à citação do precedente; nestes casos, tudo leva a crer que o precedente era citado com o intuito de confirmar e reafirmar a tese que o autor expunha em sua lição, sem entrar em detalhes.

322

A ausência de aspas ou elemento textual equivalente impossibilita concluir se se trata de transcrição ou discurso indireto, embora o estilo sugira a primeira opção.

323

TINOCO, Antonio Luiz Ferreira. Codigo Criminal do Imperio do Brazil Annotado, cit., p. 73. 324

“Colleccionei decisões proferidas pelos Tribunaes Superiores, e algumas sentenças de Juizes de primeira instância, sobre o nosso Código Penal, sem intenção de publicar esse trabalho. Outro foi o meu fim: — ter á mão um consultor, que, com economia de tempo, mostrasse a jurisprudência firmada pelos Tribunaes. Julguei necessário proceder com methodo e me pareceu preferivel — o de annotações aos artigos do Código—, afim de prestar a desejada utilidade. A jurisprudência addicionei algumas questões practicas, freqüentes no fôro. Aventurando-o agora á publicidade, por conselho de amigos, conto com a indulgência dos doutos” (TINOCO, Antonio Luiz Ferreira. Codigo Criminal do Imperio do Brazil Annotado, cit., p. 7).

A título de exemplo, Perdigão Malheiro faz referência, na lição do § 676 de seu

Manual do Procurador dos Feitos da Fazenda Nacional nos Juízos de Primeira Instância325, ao “Acc. da Rel. da Côrte de 26 de Julho de 1851, em causa vinda por appellação de Santo

Antanio de Sá, Appellante o Juizo, Appelado Antonio Francisco de Andrade, Escrivão Campos”; e ao “Acc. da ReI. da Côrte do 1° de Fevereiro de 1858 em execução de Sentença, Exequente João de Moraes Cardoso, Executado José Joaquim de Barros, Juizo Municipal da 3a Vara, Escrivão Coelho”, sem entrar em detalhes sobre o que se decidiu nestes casos.

Como se afirmou anteriormente, a citação de precedentes tinha como objetivo esclarecer ou justificar determinada opção interpretativa – afinal os juristas apenas podiam citar precedentes em um contexto em que se mencionassem, também, leis. Ao fazer referência a precedentes, não se procedia a uma descrição completa do quadro jurídico do caso que gerara a decisão considerada paradigma, mas de um modo geral apenas era mencionada a

ratio decidendi do caso através de um enunciado breve, ou, mais raramente, uma transcrição

parcial do acórdão.