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2. OS PRECEDENTES JUDICIAIS NO DIREITO DA COLÔNIA

2.6 Os estilos das cortes

O stylus curiae é outro instituto que demonstra a relevância dos precedentes judiciais na prática jurídica do Direito português do Antigo Regime.

Correspondendo a necessidades de organização interna dos tribunais e de definição de regras processuais omissas na legislação, o ius commune admitiu a figura dos estilos da corte, os quais exprimem uma continuidade decisória num tribunal superior a que a doutrina e a própria praxe atribuem força vinculativa225.

O estilo da corte era certo entendimento jurídico decorrente da prática reiterada dos tribunais, algo que equivale, em linguagem contemporânea, à “jurisprudência constante” dos

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Os trechos destacados a seguir são ilustrativos de sua intenção: “(...) E assim se deve observar o Acordão no caso presente; & em outros semelhantes, fazendo se distinção no caso em que se deve receber a appellação em hum, & outro effeyto, ou só em hum” (Capítulo V, p. 8); “(...) E com estes fundamentos se deve entender quando nestes casos, & outros semelhantes, ser a citação na pessoa do procurador valioza” (Capítulo XVII, p. 26); “(...) E com estes fundamentos subsiste a praxe do dito Acordão, que se deve observar” (Capítulo XXIX, p. 53); “(...) E assim se deve o dito Acordão observar, & praticar neste, & semelhantes casos, para que a Justiça das partes se sayba com toda a clareza, & ser dito Acordão proferido por Ministros tão doutos, & de tão recta conciencia, & de tão grandes letras, conhecidos nesta Corte por tão grande fugeytos, como he necessário (Capítulo L, p. 121).

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HOMEM, Antonio Pedro Barbas. Judex Perfectus: Função Jurisdicional e Estatuto Judicial em Portugal 1640-1820, cit., p. 296.

tribunais superiores226. Estilo poderia ser entendido como o “uso ácerca do modo de praticar

o que as Leis mandão”, na definição de Correia Telles227.

A doutrina aplica à figura do estilo os contornos dogmáticos do costume, exigindo o decurso de um prazo e a reiteração de condutas para a sua configuração228. Exigia-se, normalmente, que não houvesse violação à lei, que fosse “prescrito” (isto é, observado durante dez anos229) e que tivesse introduzido, pelo menos, por dois ou três atos judiciários de tribunal superior, embora a doutrina divergisse quanto a este número230.

Embora muitas divergências marcassem o debate, em geral a doutrina distinguia os dois institutos pelo fato de o estilo ser um uso introduzido por um tribunal, especificamente no que se refere a um domínio processual, enquanto o costume teria como fundamento a conduta de toda ou de parte da comunidade, que se comporta de uma determinada forma sob a crença de que se trata de uma prática conforme o Direito: opinio juris vel necessitatis.

A doutrina também propôs a distinção entre estilo e precedente (aresto, sentença), ou seja, entre o próprio estilo e a decisão judicial proferida com o conteúdo do estilo231, da mesma forma como é possível hodiernamente defender a diferença entre precedente e jurisprudência.

A partir das Ordenações Afonsinas (Liv. II, Tit. IX) indicavam-se, entre as fontes do Direito português, além das ditas Ordenações e leis extravagantes, “o estillo da nossa Corte

ou custume dos nossos Regnos antigamente usado”; por sua vez, as Ordenações

Manuelinas232 (Liv. II, Tit. V) e as Filipinas233 (Liv. III, Tit. LXIV) se referiram ao “estillo de

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JUSTO, Antonio Santos. “O Direito Brasileiro: Raízes Históricas”. Revista de Direito Comparado Luso- Brasileiro. Rio de Janeiro, Vol. 20, p. 4, 2001.

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TELLES, José Homem Correia, Commentario Crítico á Lei da Boa Razão, em data de 18 de agosto de. 1769. Lisboa: Typografia de N. P. de Lacerda, 1824, p. 15.

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TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente Judicial como Fonte do Direito, cit, p. 136-137. 229

JUNIOR, João Mendes de Almeida. “As Formas da Praxe Forense”, cit., p. 41. 230

Para uma breve introdução da discussão jurídica que sucedeu no Direito português a respeito do conceito de estilo, v. SILVA, Nuno Espinosa Gomes da. História do Direito Português, Fontes do Direito, cit., p. 378-384. 231

SYLVA, Emmanuelle Gonçalves da. Commentaria ad Ordinationes Regni Portugalliae. Ulyssipone, Antonii Pedrozo Galram, 1732, p. 284-285.

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As Ordenações Manuelinas inovaram em relação às Afonsinas, regulamentando a matéria das fontes do Direito em um Título dedicado a explicar “Como se julguaram os casos que nom forem determinados por Nossas Ordenaçoens”.

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É interessante observar que o Título que disciplinava as fontes do Direito português nas Ordenações Afonsinas e Manuelinas estava posicionado no Livro II das mencionadas compilações (sobre os privilégios das classes eclesiásticas e das relações da Igreja com o Estado). A localização topográfica destas disposições talvez possa ser explicada pelo fato de o assunto das fontes do Direito se relacionar com a aplicação do Direito canônico enquanto Direito subsidiário. Nas Ordenações Filipinas passaram a constar no Livro III, consagrado ao

nossa Corte ou custume em os ditos Regnos, ou em cada hua parte deles longamente usado, e tal que por Direito se deva guardar”.

Também o Regimento da Casa de Suplicação, de 7 de junho de 1605, confere um elevado prestígio aos estilos das cortes, que se devem “guardar e conservar”, considerando-os parte do Direito nacional234. Além disso, o regedor da Casa de Suplicação tinha o dever de ofício de zelar pelo acatamento as praxes decisórias nesta alta instância judicial235.

Uma grande divergência foi alvo de disputa entre juristas a respeito da afirmação de Bártolo de Sassoferrato, segundo a qual os estilos apenas poderiam referir-se à ordem do processo, nunca sobre o Direito substancial desta própria decisão236-237; ao menos no contexto da realidade portuguesa, esta afirmação parece ser verdadeira (certamente obteve o apoio de um séquito de juristas por Bártolo influenciados), tendo em vista as consultas realizadas às fontes de estilos das cortes compiladas, que parecem apenas tratar de Direito afeto à ordem do processo238: temas como competência, alçada, citação, custas, sentenças, agravos, apelações, modos de contagem de votações.

processo. Esta mudança talvez tenha sido motivada pelo fato de as fontes do Direito terem sido consideradas uma questão afeta à matéria da ordem do processo (já que dizia respeito a qual fundamento poderiam recorrer os juízes para proferir as decisões e sentenças, de que tratava o Livro III das Ordenações). Este raciocínio talvez tenha sido o mesmo empregado pelos juristas que organizaram o Corpus Juris Civilis, e que posicionaram a constituição imperial de Justiniano segundo a qual “legibus non exemplis judicandum est” no Título XLV do Livro VII do Codex, que trata das “decisões finais e interlocutórias dos juízes”. A história, de certa forma, se repete.

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“(...) VIII. E por que convém e importa muito, que os estylos antigos da dita Caza da Supplicação se guardem, sem se permittir introduzirem-se outros de novo, nem práticas particulares, assim no despacho dos feitos, como no fazer das audiencias, encommendo e encarrego muito ao Regedor, e Chanceller della, que procurem saber, e averiguár bem, quaes são os ditos estylos antigos, informando-se para isso dos Officiaes de mais prática e experiencia; e que os fação inviolavelmente guardar e conservar; e que movendo-se sobre elles alguma duvida, ou alteração, ouvidos os que se virem foram della, que delles tenhão conhecimento, se tome na Meza Grande, perante o Regedor, a resolução que parecer que mais convém à boa administração da Justiça; e se faça disto assento no Livro da Relação, para d'ahi por diante se guardar assim, e se não tornar a dar na mesma duvida”.

235

Ord. Fil., Liv. I, Tit. I, § 37: “Ao Regedor pertence prover e conservar os stilos e bons costumes acerca da ordem dos feitos, que sempre se costumaram e guardaram na dita Casa”.

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V. PROSDOCINI, Luigi. Tra Civilisti e Canonisti dei sec. XIII e XIV. A Proposito della Genesi Del Concetto de Stylus in Bartolo da Sassoferrato. Studi e Documenti, T. II. Milão: 1962, p. 415 e ss. apud SILVA, Nuno Espinosa Gomes da. História do Direito Português, Fontes do Direito, cit., p. 378-384.

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Para alguns autores era justamente aí que residia a diferença entre costumes e estilos; os estilos seriam a espécie de costume que trataria do Direito processual. Cada instância ou tribunal mantinha o seu estilo, “(...) que compreendia o conjunto das regras que era de uso seguir para recorrer à jurisdição, e aí intentar a acção e obter uma decisão judicial”; os estilos são portanto os usos bem conhecidos daqueles que vêm habitualmente à jurisdição: juízes, queixosos, partes etc.” (GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito, cit. p. 254). 238

Para consultar os “Estilos da Relação do Porto, que nella deixou o Governador Henrique de Sousa” e os “Estilos mais praticados na Casa de Suplicação”, cf. ANDRADE E SILVA, José Justino de. Colleção Chronologica da Legislação Portugueza Compilada e Annotada. 1603-1612. Lisboa: Imprensa de J. J. A. Silva, 1854, p. 326-359.

Inicialmente os estilos das cortes somente eram aplicáveis nos tribunais em que eram constatados, mas uma Carta Real de 16 de junho de 1609 mandava seguirem-se "os Estilos da

Casa do Porto à da Suplicação em quanto forem applicaveis", e determinava que cada Casa

guardasse os seus estilos, sendo bons.

Quanto à possibilidade de coexistência de estilos nos vários tribunais superiores, e não apenas nas Casas da Suplicação e do Cível (depois Relação do Porto), é importante observar que a fórmula constante das Ordenações Manuelinas e Filipinas explicitamente abre esta possibilidade no que se refere ao instituto do costume, sendo, contudo, omissa no que se refere aos estilos da corte.

Fato é que os tribunais do Ultramar julgaram-se autorizados a reconhecer seus estilos. Esta tese é confirmada pelo relato de Antonio Vanguerve Cabral, em sua Pratica Judicial239,

também lançada como “muito útil, e necessária” para os que “principiavam os ofícios de

julgar e advogar”, e ainda “para todos os que solicitavam causas nos auditórios”, tanto do

foro cível como do criminal. A Prática Judicial de Vanguerve Cabral foi, de acordo com sua apresentação na folha de rosto, “tirada de vários autores práticos” e dos “estilos mais

praticados nos auditórios” sendo, portanto, uma obra dedicada à prática forense240.

Cabral advertiu que os juízes deverão julgar segundo as leis do Reino, “não obstante a

praxe em contrário, porque os estilos contra a dita lei não se devem observar” (Cap. I, 1-16);

em sua Prática Judicial, no Cap. VI (“Das Citações”), anunciou estilos existentes nos tribunais do Brasil e na Relação do Porto referentes a diversos atos processuais, a exemplo da citação; não raro estes modos de proceder eram divergentes241, o que pode ser atribuído à peculiaridade da situação colonial.

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VANGUERVE CABRAL, Antonio. Pratica Judicial, Muyto Util, e Necessaria para os que Principiaõ os Officios de Julgar, e Advogar e para Todos os que Solicitaõ Causas nos Auditorios de Hum, e Outro Foro, Tirada de Vários Authores Praticos, & dos Estylos Mais Praticados nos Auditórios. Coimbra: Antonio Simoens Ferreyra, 1730.

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As obras dedicadas à prática notarial e forense tratavam, segundo a ordem normal do decurso processual, das questões que usualmente aí se levantavam, baseando-se numa tradição sistemática que teria raízes em Aristóteles, Cícero e Quintiliano (HESPANHA, Antonio Manuel. História das Instituições, Épocas Medieval e Moderna, cit., p. 521). Os autores praxistas também foram os responsáveis pela publicação de coleções de estilos da Casa de Suplicação e da Relação do Porto, como a de João Martins da Costa, datada de 1622.

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“No Brazil o vi praticar. Esta pratica poderá ter lugar pela Ord. Lib. 3, tit. 1, § 1, que falla nos arrabaldes: que se as Citações se hão de fazer no mesmo lugar, ou huma legoa ao redor delle, não he necessário despacho do Ministro, mais do que a Parte requerer ao Official que cite a N. para tal acção, na qual lhe quer pedir tal quátia, ou couza, & fazendo a Citação, lhe passa Certidão, para a acussar na Audiência, para a accusar na Audiencia, para que o Reo foy citado, Ord. liv. 3, tit. 20, § 1. No Porto basta pedir ao Escrivão que passe Mandado para citar a Parte, & o Juiz o assina” (VANGUERVE CABRAL, Antonio. Pratica Judicial, cit., p. 1- 2).

O autor parece ter avaliado que os estilos dos tribunais acima mencionados não ofenderam as Ordenações, pois não argumentou contrariamente à sua existência. Sorte diferente teve outro estilo que o autor identificou na prática da justiça portuguesa no Brasil, como o próprio autor narra, ainda no Cap. VI de sua obra242.

Por fim, o assento de 13 de fevereiro de 1755, tomado na Casa de Suplicação, pareceu deixar claro, ainda que em obiter dictum, que o reconhecimento dos estilos das Relações era possível, mesmo que ficasse adstrito a elas243.

Os estilos da Relação da Bahia e do Rio de Janeiro constituíam, portanto, jurisprudência aplicável geograficamente apenas no território submetido às suas jurisdições, sugerindo portanto que o Direito praticado no Brasil durante o período colonial era marcado, em algum grau, por um componente jurisprudencial que, se não prevalecia sobre o Direito derivado das Ordenações, certamente dotava-o de “cor local”, e o autonomizava, ainda que em limitada medida, do Direito oriundo da metrópole, tal qual um Direito “particular”.