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2. OS PRECEDENTES JUDICIAIS NO DIREITO DA COLÔNIA

2.8 O impacto da Lei da Boa Razão

Eis o estado do Direito em Portugal e Ultramar durante todo o século XVII e na primeira metade do século XVIII: a doutrina e a prática dos tribunais “vergadas sob o peso da praxe”, que se aceita como “um mal menor” e como única garantia de certo grau de certeza,

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Os desembargadores aos quais se refere o assento só podem ter sido Manuel da Fonseca Brandão e Agostinho Telles dos Santos Capello, que até a criação da Relação do Rio de Janeiro atuavam no tribunal da Bahia. Em 25 de março de 1752 os dois desembargadores partiram de Salvador, encarregados de “regular a Relação do Rio de Janeiro”, a cujo Governador foi remetida uma copia do Livro dourado da Relação da Bahia, “para que alli se seguissem os mesmos arestos”, conforme determinara o Secretario de Estado em carta de 17 de dezembro de 1751 (LIMA, José Ignácio de Abreu e. Synopsis ou Deducção Chronologica dos Factos mais Notaveis da Historia do Brasil. Recife: Typographia de M. F. de Faria, 1845, p. 218).

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O mencionado fragmento dava competência ao juiz dos feitos da Coroa e da Fazenda para conhecer dos agravos contra os procedimentos dos juízes e prelados eclesiásticos “nos casos em que pela Ordenação, e concordata do Reyno, se pode usar deste remedio”; na forma do regimento, no caso de descumprimento de duas cartas rogatórias pelos juízes, seria passada certidão aos recorrentes, por meio da qual se invocava a tomada de assento para o caso, na presença do Chanceler da Relação e de dois desembargadores dos agravos mais antigos.

no quadro de uma legislação extremamente insuficiente e de “um Direito subsidiário (Direito romano) batido (sic) pelas mil interpretações divergentes dos comentadores262”. Assim sucedeu até o momento de grandes mudanças que marca a legislação pombalina e, particularmente, a Lei da Boa Razão, que reorganizou o sistema de fontes do Direito português.

A Lei da Boa Razão (Lei de 17 de agosto de 1769) confirmou a autoridade da Casa de Suplicação para proferir assentos nos três casos já previstos em lei, tratando sucessivamente: a) em seu § 1°, dos assentos por efeito de glosas do Chanceler (Ord. Fil., Liv. I, Tit. IV) – para os quais estabelece regime diferenciado consoante a glosa caísse sobre decisão proferida contra as Ordenações ou leis do Reino (§ 2º) ou sobre Direito Romano expresso (§ 3º); b) no § 4º, dos assentos por dúvida dos Desembargadores (Ord Fil., Liv. V, Tit. LVIII); e c) no § 5º da Lei, dos assentos para definição dos estilos da Casa da Suplicação (§ 8º da Carta Régia de 7 de junho de 1605, Regimento da Casa de Suplicação, acima citado).

Estabeleceu a Lei nova modalidade de assento (§ 6º), a ser tomado por efeito de dissidência interpretativa entre os advogados dos litigantes quanto ao entendimento da lei aplicável ao caso. Reconhecendo, porém, que este dispositivo poderia prestar-se a abusos por parte dos advogados com a realização de “chicanas”, a lei impôs severas penas263

aos infratores que perpetravam tais condutas, discriminadas em seu § 7º.

A mencionada Lei também pôs fim à dúvida referente à força de lei dos assentos, que anteriormente era sujeita a controvérsias.

Outra consequência do advento da mencionada Lei foi a determinação segundo a qual os estilos da corte apenas deteriam valor normativo se “estabelecidos e aprovados” nos assentos da Casa de Suplicação. Os estilos perderam, portanto, o status de fonte do direito autônomo, da qual eram dotados até então:

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CRUZ, Guilherme Braga da. “O Direito Subsidiário na História do Direito Português”, cit., p. 383. 263

“(...) 7. Item. Por quanto a experiencia tem mostrado, que as sobreditas interpretações de Advogados consistem ordinariamente em raciocínios frivolos, e ordenados ais a implicar com sofismas as verdadeiras disposições das Leis, do que a demonstrar por ellas a justiça das partes: mando que todos os Advogados, que commetterem os referidos attentados, e forem nelles convencidos de dolo, sejão nos autos, a que se juntarem os Assentos, multados; pela primeira vez em cincoenta mil réis para as despezas da Relação, e em seis mezes de suspensão; pela segunda vez em privação dos graos, que tiverem da Universidade; e pela terceira em cinco annos de degredo para Angola, se fizerem assignar clandestinamente as suas Allegações por diferentes pessoas, incorrendo na mesma pena os assignantes, que seus nomes emprestarem para a violação das minhas Leis, e perturbação do socego publico dos meus Vassallos”.

14. Item. Porque a mesma Ordenação e o mesmo preambulo della, na parte em que mandou observar os estylos da Côrte, e os costumes destes Reinos, se tem tomado por outro nocivo pretexto para se fraudarem as minhas Leis; cobrindo-se as trangressões dellas, ou com as doutrinas especulativas e praticas dos differentes Doutores, que escreverão sobre os costumes, e estylos; ou com certidões vagas extrahidas de alguns Auditorios:

Declaro, que os estylos da Côrte devem ser somente os que se acharem estabelecidos, e approvados pelos sobreditos Assentos na Casa da Supplicação (...).

Decerto a medida teve como objetivo evitar que as Ordenações fossem transgredidas, contornadas ou a elas negadas aplicação por força do regulamento específico de estilos locais no Ultramar. O que antes era tolerado passara agora a ser expressamente proibido.

O § 8º da Lei da Boa Razão esclareceu que a disposição no Liv. I, Tit. V, § 5 das Ordenações Filipinas. “não foi estabelecida para as Relações do Porto, Baía, Rio de Janeiro,

e Índia, mas sim, e tão somente para o Supremo Senado da Casa da Suplicação”. Os assentos

propostos pelas Relações precisariam ser confirmados em recurso à Casa de Suplicação, sob o fundamento de ser

manifesta a differença, que ha entre as sobreditas Relações Subalternas, e a Suprema Relação da Minha Corte, a qual antes pela Pessoal Presidencia dos Senhores Reis Meus Predecessores; e depois pela proximidade do Throno, e facilidade de recorrer a elle; pela authoridade do seu Regedor; e pela maior graduação, e experiencia dos seus doutos, e provectos Ministros, não só mereceo a justa confiança, que della fizeram sempre os ditos Senhores Reis Meus Predecessores (bem caracterizada nos sobreditos Paragrafos da Ordenação do Reino, e Reformação della) para a interpretação das Leis, mas tambem constitue ao mesmo tempo nos Assentos, que nella se tomam sobre esta importante materia toda quanta certeza póde caber na providencia humana para tranquillizar a Minha Real consciencia, e a justiça dos Litigantes sobre os seus legitimos Direitos.

Assim, como é possível observar, a Lei da Boa Razão procurou restringir a proliferação de práticas locais de direito jurisprudencial e costumeiro, passou a reconhecer como única jurisprudência apta a orientar normativamente a da Casa de Suplicação e desautorizou os estilos da corte não contemplados em seus assentos, além de ter impactado diretamente na diminuição da citação de praxistas e casuístas, com a valorização do Direito real contido nas leis e diminuição da importância da doutrina.

Dúvidas podem ser levantadas quanto ao sucesso da Lei da Boa Razão neste aspecto específico, o desaparecimento da proliferação de estilos próprios dos tribunais coloniais. Isso só poderia ser comprovado com uma análise documental, mas provavelmente não deve ter se

verificado de imediato – principalmente em face das dificuldades práticas em se conhecer bem o teor das decisões da Casa da Suplicação264.

Estes dados históricos foram confirmados na analise de Arno Wehling a respeito da fundamentação legal e doutrinária de uma amostragem de processos que tramitaram na Relação do Rio de Janeiro, a partir de sua criação, em 1751. Segundo o autor, o advento da Lei da Boa Razão impôs restrições ao recurso à doutrina, ao direito comum e aos costumes locais265, o que se manifestou na diminuição de sua menção nos processos consultados. Por outro lado, foi possível relatar citações de praxistas, bem como de assentos da Casa de Suplicação que firmavam jurisprudência do tribunal sobre temas controversos. Em alguns processos, invocava-se a Lei da Boa Razão como princípio unificador e excludente de interpretações266.

O estudo de Álvaro de Araújo Antunes sobre a atuação do advogado setecentista José Pereira Ribeiro e seus colegas juristas na cidade de Mariana também confirma os dados acima mencionados. O autor examinou muitas ações judiciais que tramitaram em Mariana e observou267 uma consistente prática de citações e remissões “reconhecidas pelos demais advogados, uma vez que faziam parte de uma cultura livresca própria do métier”.

O autor percebeu, por outro lado, a diminuição na utilização da literatura dos praxistas e decisionistas nas manifestações dos advogados que foram educados em Coimbra após a Lei da Boa Razão e as reformas pombalinas, e um esforço por parte dos advogados educados segundo a tradição do ius commune e da praxística na tentativa de adaptação ao novo momento, em que se dava maior primazia às Ordenações do Reino. A partir de então os estilos das cortes só poderiam ser aplicados quando reconhecidos nos assentos da Casa da

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A publicação da coleção oficial dos assentos (a que se referiu acima) data de 1791, portanto vinte e dois anos após o surgimento da Lei da Boa Razão, não se sabendo ao certo quando os livros foram distribuídos no Brasil. Além disto, se os desembargadores não conheciam os assentos, que eram mais facilmente relatados, não é de se espantar a dificuldade de se conhecer as demais decisões não publicadas, já que não havia repertórios de jurisprudência; é por isso que as obras dos decisionistas e praxistas eram tão relevantes.

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Em um estudo publicado em autoria com Maria José Wehling, o autor afirma que “(...) elas [as referências ao Direito romano e aos doutrinadores] não desapareceram de todo, entretanto, mas em geral quando ocorriam eram mencionadas num contexto em que se citavam, também, leis”, o que, segundo os estudiosos, parece significar que o predomínio do Direito real sobre o Direito comum foi se impondo na prática dos tribunais (WEHLING, Arno. WEHLING, Maria José. “Despotismo Ilustrado e Uniformização Legislativa. O Direito Comum nos Períodos Pombalino e Pós-Pombalino”. Revista da Faculdade de Letras, II Série. Porto, Vol. XIV, p. 413-428, 1997).

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WEHLING, Arno. “A Atividade Judicial do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, 1752-1808”. Revista Chilena de Historia del Derecho. Santiago, Nº. 17, p. 105, 1992.

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ANTUNES, Álvaro de Araújo. Espelho de Cem Faces: O Universo Relacional de um Advogado Setecentista. São Paulo: Annablume/PPGD-UFMG, 2004, p. 206-209.

Suplicação, e os casuístas e praxistas serão citados em situações em que também se citam leis268.

Seria um erro, no entanto, afirmar que tudo mudou com a edição da Lei da Boa Razão. É muito provável que a prática não tenha sido facilmente modificada269, especialmente em um momento de vagarosa penetração do Estado; mas certamente se tratou do momento inicial de uma série de importantes alterações que atingiriam o Direito brasileiro no século seguinte.

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ANTUNES, Álvaro de Araújo. Espelho de Cem Faces: O Universo Relacional de um Advogado Setecentista, cit., p. 209-221.

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O trabalho de Maria Lúcia Resende Chaves Teixeira sobre o impacto da legislação penal no território da Capitania das Minas reúne elementos que permitem concluir pela continuidade da citação de praxistas pelos advogados e na prática jurídica do Brasil-Colônia no período que se seguiu à publicação da Lei da Boa Razão (TEIXEIRA, Maria Lúcia Resende Chaves Teixeira. Justiça Lusitana na Capitania das Minas Gerais, Brasil Colônia. In: XXX Encontro da APHES, Programa Detalhado do XXX Encontro da Associação Portuguesa de História Econômica e Social. Lisboa, 2010).