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As dependências referenciais no ensino da língua materna

Capítulo 3. Dependências referenciais

3.3. Da linguística ao ensino da língua materna

3.3.3. As dependências referenciais no ensino da língua materna

Para além dos estudos psicolinguísticos, que têm permitido identificar dependências referenciais de aquisição tardia ou potencialmente complexas em termos de processamento, também no âmbito do ensino da língua materna têm sido desenvolvidos alguns trabalhos que fornecem contributos importantes sobre a interpretação de dependências referenciais. Começa-se por mencionar o trabalho de Santos (2002) sobre pronomes pessoais, seguindo-se o trabalho de Pereira (2008) sobre os demonstrativos e, por último, alguns trabalhos sobre orações relativas: Fontes (2008), Valente (2008) e Antunes & Brito (2008).

Santos (2002) desenvolveu um estudo sobre a compreensão e a produção de pronomes clíticos em português europeu, envolvendo 40 alunos do 3.º ciclo do ensino básico, divididos em dois grupos, um de 7.º e outro de 9.º ano, e dez adultos. Detetando vários problemas tanto na compreensão – na identificação de pronomes clíticos não argumentais e na identificação de antecedentes de alguns clíticos argumentais – como na produção de formas átonas – na produção de mesóclise e de próclise em determinados contextos –, a autora não só procurou obter dados que possibilitassem uma melhor descrição destes problemas, através da aplicação de três questionários (de compreensão, de produção e de avaliação), como propôs um conjunto de atividades didáticas adequadas à sua resolução, numa perspetiva de ensino da gramática enquanto desenvolvimento do conhecimento explícito.

No que se refere à compreensão, e com o objetivo de testar a identificação de antecedentes de diferentes tipos de clíticos, foi usado um questionário constituído por um texto e dez itens de escolha múltipla, dois para cada tipo de clítico: dativo,

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acusativo, não argumental, reflexo e recíproco. As respostas corretas envolviam a identificação de antecedentes nominais, por vezes elos não iniciais de cadeias referenciais mais complexas71.

De um modo global, os resultados obtidos para cada grupo, ainda que se tenha encontrado uma progressão entre o grupo de 7.º ano e o de 9.º, revelaram dificuldades na compreensão dos pronomes clíticos. A compreensão de clíticos não argumentais (se) e de alguns clíticos argumentais, nomeadamente os clíticos acusativo (nos) e dativo (lhe), revelou-se mais problemática, incluindo no grupo de adultos; pelo contrário, os clíticos reflexos e recíprocos não levantaram dificuldades, dado que uma elevada percentagem de alunos (superior a 90%) conseguiu identificar o antecedente ou, pelo menos, um elo da cadeia referencial em que ocorriam estes pronomes.

Sobre estes resultados, I. Duarte (2002:73) conclui que ambos os grupos de alunos testados apresentam «problemas no estabelecimento de relações de correferência (isto é, de relações de identidade referencial permitidas, mas não exigidas, pela gramática da língua), enquanto a atribuição de antecedentes a pronomes obrigatoriamente anafóricos como os reflexos e os recíprocos, exigida pela gramática, já se faz sem grandes problemas». Estas conclusões são particularmente importantes, uma vez que a tendência encontrada vai ao encontro de resultados obtidos no âmbito da aquisição, ou seja, é o domínio do princípio B que parece não estar ainda estabilizado em idades mais avançadas, nomeadamente no final do 3.º ciclo.

Relativamente aos demonstrativos, o estudo de Pereira (2008), realizado no âmbito da aprendizagem da literacia no 1.º ciclo do ensino básico, constitui um contributo importante, tanto do ponto vista linguístico como didático, para a caracterização dos demonstrativos anafóricos enquanto estruturas usadas no estabelecimento de redes de coesão referencial no interior de um texto. Sendo o objetivo da autora caracterizar a competência dos alunos na construção de significados veiculados por estruturas tipicamente escolares, em particular por expressões demonstrativas, construiu-se uma prova de avaliação que foi aplicada a um total de 91

71 Por exemplo, no item 9, pedia-se a identificação do antecedente de «se» numa cadeia com vários

elementos, incluindo categorias nulas: «(…) as pessoas que têm gatos são mais felizes pois, quando (-) se encontram na rua, (…)» (linha 12).

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alunos (duas turmas de 3.º ano e duas turmas de 4.º). A prova, constituída por quatro textos, representativos de géneros diferentes (narrativa, notícia e texto informativo de tipo enciclopédico) e acompanhados por um questionário de itens de resposta fechada (escolha múltipla e verdadeiro/falso), visou a compreensão de demonstrativos anafóricos, nomeadamente a avaliação da capacidade de identificar o referente de expressões demonstrativas anafóricas de diferentes tipos72.

Ainda que a autora não tenha formulado, propriamente, uma hipótese sobre a hierarquia de dificuldade esperada consoante o tipo de demonstrativo, previu diferenças de dificuldade decorrentes da estrutura demonstrativa testada. Assim, esperava-se que: itens com nominalizações fossem mais difíceis que todos os restantes; itens com pronomes demonstrativos neutros fossem relativamente mais fáceis, dado tratar-se do tipo de estruturas demonstrativas que, apesar de implicarem uma nominalização, não classificam o seu antecedente; itens com descrições demonstrativas e pronomes demonstrativos flexionados fossem mais fáceis, porque acedem anaforicamente a um referente contextualmente delimitado; e, ainda, itens com descrições que realizam contextualizações fossem os mais fáceis de todos, porque o antecedente está já presente no contexto e é parcialmente repetido pelo demonstrativo.

De um modo global, os resultados da prova, traduzidos pelo índice de dificuldade (ID) dos itens, evidenciaram que esta foi difícil para os alunos, ainda que com diferenças entre os dois anos (3.º e 4.º anos), com resultados melhores para as turmas de 4.º ano. De entre os possíveis fatores que podem pesar nos resultados obtidos (por exemplo, o género textual ou o conhecimento prévio dos alunos sobre os textos), a autora conclui que é o tipo de linguagem específico, neste caso, as próprias expressões demonstrativas, o fator que emerge como determinante, defendendo que foi difícil para as crianças reutilizar os demonstrativos, usados tipicamente com valor deítico, numa função anafórica.

72 A autora testou estruturas em que o demonstrativo, precedendo o nome, ocorre como determinante,

(as descrições demonstrativas) e estruturas em que o demonstrativo tem um uso pronominal. Relativamente às descrições demonstrativas, testaram-se descrições demonstrativas que introduzem nominalização, contextualização e classificação e, ainda, descrições em que o demonstrativo tem um uso endofórico-deítico. Quanto aos pronomes, a prova incluiu tanto pronomes flexionados (contando com um exemplo de pronominalização copresente) como pronomes neutros.

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Sobre a dificuldade dos diferentes tipos de expressões demonstrativas, e observando-se concretamente os resultados obtidos para os pronomes, avaliados em dez dos 42 itens da prova73, conclui-se que a compreensão destas estruturas não só foi

difícil, como foi mais difícil do que o esperado. Com efeito, quase todos os itens envolvendo pronomes flexionados colocaram alguma dificuldade aos alunos, tendo sido o item relativo à estrutura de pronominalização copresente com o demonstrativo

aquele (mais do que com o demonstrativo este) o mais difícil, com um ID de 0.21. Por

seu turno, contrariando as previsões da autora, também os pronomes neutros se revelaram difíceis: na totalidade dos alunos, os ID associados aos demonstrativos neutros foram entre médios e difíceis (.47, .47, .44), sendo mais difíceis para o grupo do 3.º ano do que para o de 4.º ano (.21/.71; .40/.54; .33/.54). Apesar de o item mais fácil em toda a prova ter sido, na verdade, um item que implicava um pronome neutro74, para Pereira (2008), o contraste entre o ID deste item, cujo significado é

pré-construído, e os dos restantes pronomes neutros constitui um indicador de que a dificuldade colocada pelos demonstrativos invariáveis se deve ao tipo de trabalho exclusivamente textual de construção de significado exigido por estas formas.

A autora considera, aliás, que os fracos resultados obtidos na compreensão de pronomes neutros traduzem a dificuldade sentida pelos alunos em toda a prova em compreender a função de coesão textual das estruturas demonstrativas. Seguindo a tese sustentada por Karmiloff-Smith (Karmiloff-Smith 1986, 1987, citado por Pereira 2008) de que o funcionamento sintático de expressões anafóricas é adquirido primeiro relativamente ao seu funcionamento discursivo, Pereira (2008) interpreta os resultados que obteve como evidência de que os alunos testados funcionam já endoforicamente com as unidades demonstrativas, mas não dominam ainda com rigor o funcionamento discursivo destas formas anafóricas.

No que concerne, por fim, aos pronomes relativos, destacam-se os trabalhos de Fontes (2008) e de Valente (2008), cujo objetivo foi o de identificar, na produção, as

73 Note-se que os itens, ainda que todos no formato de resposta fechada, seguem, por opção da autora,

diferentes formulações. Por exemplo, no que concerne aos itens que implicam a compreensão de pronomes, há itens formulados como interrogativas e outros como frases declarativas, a completar através das opções de respostas; também a identificação do referente é solicitada, por vezes, diretamente («a expressão X refere-se a…») e, outras vezes, de forma indireta.

74 O ID deste item é de .92. Trata-se de um item em que o pronome ocorre numa estrutura vernacular

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estratégias de relativização mais disponíveis em alunos do ensino básico e do ensino secundário75. Ancorada nos pressupostos da gramática generativa, a investigação

desenvolvida pelos dois autores procurou confirmar a hipótese de que a produção de relativas é sensível ao desenvolvimento linguístico e à exposição ao contexto de instrução explícita, prevendo, portanto, taxas de sucesso de desempenho linguístico mais baixas no 4.º e no 6.º ano e mais elevadas no 9.º e no 12.º ano (cf. hipótese 1); por outro lado, formularam-se também hipóteses sobre a acessibilidade de diferentes tipos de relativas, a partir de algumas variáveis (cf. hipóteses 2 a 8): o tipo de estratégia de relativização (canónica ou não canónica), o tipo de encaixe, a função sintática do antecedente e do pronome, a natureza [± humana] do constituinte relativizado e ainda a sua categoria sintática (sintagma nominal ou preposicional).

Os resultados obtidos em ambos os trabalhos, decorrentes da aplicação de dois testes76, permitiram confirmar, relativamente à primeira hipótese, que a performance

linguística dos alunos nas tarefas foi tanto melhor quanto o seu nível de desenvolvimento linguístico. Assim, considerando diferenças quanto à formulação de juízos de gramaticalidade sobre frases canónicas77, observou-se que os sujeitos de 6.º

ano não só aceitaram uma percentagem ligeiramente maior de relativas do que os de 4.º (81,1% vs. 78,2%), como conseguiram mais vezes corrigir adequadamente uma relativa canónica não aceitável. O desempenho dos sujeitos de 6.º ano está, assim, mais próximo do dos sujeitos de 9.º e 12.º, que apresentaram percentagens de aceitabilidade de relativas canónicas semelhantes (respetivamente, 91,2% e 91,9%). O efeito de desenvolvimento linguístico parece ser ainda mais evidente no caso dos

75 Enquanto Fontes (2008) testou alunos em final do 1.º e do 2.º ciclo do ensino básico, Valente (2008)

testou alunos em final do 3.º ciclo do ensino básico e do ensino secundário. No entanto, porque parte destes trabalhos foi desenvolvida em equipa pelos dois autores, o enquadramento teórico e a metodologia seguida é comum aos dois trabalhos.

76 O primeiro teste corresponde a um teste de enunciação de juízos de gramaticalidade, em que se

pediu aos alunos para avaliar um conjunto de frases (148 itens, incluindo itens de relativas canónicas e não canónicas) como erradas, corretas ou duvidosas. Foi também solicitada, numa sessão posterior, a correção das frases assinaladas como erradas. O segundo teste é um teste de produção elicitada de frases, com duas frases simples que deviam ser transformadas numa frase única, mediante instruções dadas. Foi ainda aplicado um terceiro teste, de completamento de frases apoiado na visualização de imagens, cujos dados acabaram por ser excluídos da investigação.

77 Os dados sobre as estratégias de relativização não canónicas confirmam também efeitos de

desenvolvimento linguístico, ou seja, tanto a aceitabilidade como a produção de relativas não canónicas diminui à medida que a idade dos sujeitos é maior, ainda que os resultados obtidos para a estratégia cortadora, considerada a mais acessível e natural em todos os grupos, sugiram uma mudança em curso.

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dados obtidos no teste de produção de frases, que permitem concluir que a produção de relativas canónicas é cada vez mais frequente e parece estar estabilizada nos últimos anos testados. Com efeito, e embora seja a estratégia de relativização mais produtiva em todos os grupos, a produção de frases canónicas até ao 6.º ano ultrapassa pouco os 50% (39,7% no 4.º ano e 52,4% no 6.º), mas atinge percentagens de 77,8% no 9.º ano e de 84,9% no 12.º.

No que diz respeito ao nível de acessibilidade esperado para diferentes frases relativas de acordo com a variável função sintática do pronome, e tendo em particular atenção a assimetria entre relativas de sujeito e de objeto direto observada noutros trabalhos já mencionados, constatou-se que as relativas de sujeito foram, como previsto, as mais acessíveis em todos os grupos testados. Já para as relativas de objeto, os resultados evidenciam uma clara distinção entre os grupos de 4.º e 6.º anos, por um lado, e os de 9.º e 12.º anos, por outro. Se, no 1.º e no 2.º ciclo, tanto na tarefa de juízos de gramaticalidade como na de produção de frases, as relativas de objeto apresentam de forma significativa mais erros do que as relativas de sujeito78, a partir

do 9.º ano, as relativas de objeto parecem deixar de constituir uma dificuldade. Por exemplo, nos resultados do teste de produção de frases aplicado por Valente (2008), observam-se percentagens de produção de relativas de objeto superiores a 80%79.

Para além disso, quer nas relativas de sujeito quer nas relativas de objeto, contrariamente às relativas em que o pronome tem outras funções sintáticas (objeto indireto, oblíquo, genitivo), não se verificou praticamente a produção de construções não canónicas.

Ainda relativamente à assimetria entre relativas de sujeito e relativas de objeto, os resultados apresentados em Antunes & Brito (2008) confirmam, em grande medida, a ideia de que as relativas de objeto parecem deixar de constituir uma dificuldade no

78 No teste de juízos de gramaticalidade, considerando as percentagens de erro, as relativas de objeto

evidenciaram ser as mais difíceis, inclusivamente quando comparadas com as relativas em que o pronome é indireto, oblíquo ou genitivo, que se esperavam menos acessíveis. A percentagem de erro foi maior no 4.º ano (33,3%) do que no 6.º (26%). No teste de produção elicitada, as percentagens de erro foram de 16% e 29% para relativas de sujeito e de objeto no 4.º ano e de 8,5% e 22,5% para relativas de sujeito e de objeto no 6.º ano.

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final do 3.º ciclo. A partir, também, de uma tarefa de produção elicitada de frases80, os

autores verificaram uma percentagem de emprego correto do pronome que com função de sujeito superior a 95%, não tendo sido detetados padrões de erro associados; nas frases em que o pronome que desempenha a função de objeto direto, apesar de inferior, a percentagem de emprego pelos alunos foi de 90% e também não se identificaram padrões de erros, ainda que os alunos tenham usado, nalguns casos, estruturas alternativas, quase sempre de coordenação. Assim, e confirmando-se que, em final do 3.º ciclo, o recurso a construções relativas já não é marginal81, conclui-se

que algumas construções relativas já se encontram bem consolidadas, nomeadamente as relativas com que com função de sujeito e de complemento direto.

80 A tarefa proposta consistia em unir duas frases simples, formando uma frase complexa. Não foi dada

uma instrução direta para o tipo de construção a usar, mas, a fim de se elicitar a produção de construções relativas, a segunda frase dada continha propositadamente um sintagma nominal comum à primeira (antecedido de demonstrativo e marcado a itálico), conforme exemplo (Antunes & Brito 2008: 253):

O médico operou a Ana.

Esse médico formou-se em Coimbra.

O médico _______________________________.

81 Esta é uma das conclusões a que chega também Choupina (2004), num trabalho sobre as orações

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Sumário

Este capítulo foi dedicado à caracterização das relações anafóricas que envolvem dependência referencial, estabelecendo-se uma distinção entre este tipo de relações (em que uma determinada expressão anafórica está referencialmente dependente de uma expressão antecedente para poder ser interpretada) e aquelas que envolvem correferência ou identidade referencial entre expressões que são referencialmente independentes. Dentro das relações que envolvem dependência referencial, caracterizaram-se de forma mais aprofundada as relações anafóricas nas quais participam pronomes e, em particular, pronomes pessoais, demonstrativos e relativos. Descreveram-se e analisaram-se propriedades morfológicas, sintáticas e semânticas de cada uma destas subclasses pronominais, dando-se particular atenção ao seu funcionamento anafórico (por exemplo, quanto às possibilidades de interpretação dentro e para além do domínio frásico ou às propriedades sintáticas e semânticas dos antecedentes que retomam).

O capítulo incluiu ainda a revisão de alguns trabalhos sobre relações anafóricas, desenvolvidos quer no âmbito da psicolinguística (para o português europeu) quer no âmbito do ensino do português como língua materna. Em termos gerais, estes trabalhos têm permitido (i) identificar estruturas linguísticas de aquisição tardia, cuja estabilização não ocorre antes da entrada para a escola, nomeadamente assimetrias entre determinadas formas (formas fortes vs. clíticos) ou funções sintáticas (relativas de sujeito vs. relativas de objeto); (ii) identificar fatores linguísticos que levantam particulares dificuldades de processamento, como sejam a natureza da expressão anafórica, o tipo de antecedente retomado e a distância entre expressão anafórica e antecedente; (iii) distinguir, de entre as estruturas envolvidas nas relações de dependência referencial, as que se encontram já consolidadas no ensino básico das que colocam ainda dificuldades aos alunos.

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