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Capítulo 3. Dependências referenciais

3.2. Tipos de relações anafóricas

3.2.2. Relações anafóricas com pronomes

3.2.2.2. Pronomes pessoais

Em Cunha & Cintra (1984), os pronomes pessoais são caracterizados por denotarem as três pessoas gramaticais (1.ª, 2.ª e 3.ª pessoas, do singular e do plural) e por variarem de forma quanto à função e quanto à acentuação. Quanto à função, distinguem-se as formas retas – eu, tu, ele, ela; nós, vós, eles, elas – das formas oblíquas (não reflexivas e reflexivas) – me, te, o, a, lhe; nos, vos, os, as, lhes; mim,

comigo, ti, contigo, ele, ela; nós, connosco, vós, convosco, eles, elas; se, si, consigo;

quanto à acentuação, diferenciam-se, nas formas oblíquas, aquelas que são tónicas –

mim, comigo, ti, contigo, ele, ela, nós, connosco, vós, convosco, eles, elas – das que são

átonas – me, te, o, a, lhe; nos, vos, os, as, lhes.

20 Como já se mencionou, por terem um sentido descritivo limitado a categorias semânticas muito

gerais, muitos dos pronomes funcionam como pró-formas, ou seja, podem substituir um outro constituinte, recuperando anaforicamente o seu significado específico. É o caso dos pronomes pessoais de 3.ª pessoa, dos pronomes demonstrativos invariáveis isso e isto, do pronome invariável o, entre outros.

21 Assume-se em Raposo et al. (2013) que os possessivos não constituem propriamente uma classe,

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Em Brito, Duarte & Matos (2003), os pronomes pessoais são especificados quanto ao caráter clítico / não clítico e ao caso (nominativo, acusativo, dativo, oblíquo)22. Conforme se apresenta nos Quadros 5 e 6, as autoras distinguem as formas

tónicas, designadas formas fortes, das formas átonas ou clíticas. As primeiras, que denotam a pessoa gramatical das entidades participantes no discurso, apresentam caso nominativo e caso oblíquo, sendo que, no nominativo, os pronomes de 3.ª pessoa se diferenciam das restantes formas pelo facto de poderem apresentar tanto um valor deítico como anafórico. Quanto aos clíticos, prototipicamente, correspondem às formas átonas do pronome pessoal que ocorrem em posição de complemento dos verbos, apesar de, na verdade, alguns clíticos não denotarem apenas a pessoa gramatical, podendo exibir uma função predicativa ou até assumir propriedades morfossintáticas de alguns sufixos derivacionais. É o caso, por exemplo, do clítico invariável o, correlato do demonstrativo isso, ou do clítico reflexo se, que, em frases como Ela disse-o ou As garrafas entornaram-se, respetivamente, não denotam entidades.

Casos

Nominativo Oblíquo

Pessoas gramaticais Apenas valor deítico Valor deítico / correferencial

1.ª singular eu (prep.) mim, (co)migo

2.ª singular tu (prep.) ti, (con)tigo

você (prep.) si

3.ª singular ele, ela (prep.) ele, ela, si

1.ª plural nós (prep.) nós,

(con)nosco

2.ª plural vós (prep.) vós,

(con)vosco

3.ª plural eles, elas eles, elas (prep.) eles, elas, si Quadro 5: Formas fortes dos pronomes pessoais (Brito, Duarte & Matos 2003: 819).

22 Cunha & Cintra (1984:279-280) referem-se à distinção entre formas tónicas e formas átonas, mas

apenas para distinguir as formas pronominais oblíquas. A organização dos pronomes pessoais assenta nas dimensões pessoa (1.ª, 2.ª, 3.ª), número (singular e plural) e função (formas retas ou oblíquas), sem se usar a terminologia casual.

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Pessoas Gramaticais

Clíticos não reflexos Reflexos Acusativo Dativo Acusativo / Dativo

1.ª singular me me me

2.ª singular te te te

3.ª singular o, a lhe se

1.ª plural nos nos nos

2.ª plural vos vos vos

3.ª plural os, as lhes se

Quadro 6: Formas clíticas dos pronomes pessoais (Brito, Duarte & Matos 2003: 827).

Para além dos pronomes fortes e dos clíticos, Brito, Duarte & Matos (2003) identificam um terceiro tipo de formas dos pronomes pessoais, os pronomes nulos, que são pronomes foneticamente não realizados. Os pronomes nulos têm um estatuto fonético e fonológico distinto do dos pronomes expressos, mas o seu estatuto sintático é semelhante. Contudo, apesar das propriedades sintáticas em comum entre pronomes expressos e nulos, a ocorrência de uma ou outra forma não é livre23.

Já em Raposo (2013), como se pode observar no Quadro 7, para além de se especificarem as formas dos pronomes pessoais quanto ao caráter clítico / não clítico e ao caso, estabelece-se uma distinção entre pessoa gramatical e pessoa semântica24.

Assim, distinguem-se as formas de 1.ª, 2.ª e 3.ª pessoas semânticas, incluindo as formas pronominais a gente e você(s), com formas diferentes de acordo com o número (e também com o género, no caso das formas da 3.ª pessoa e das formas possessivas). Relativamente ao caso, para além do nominativo, do acusativo, do dativo e do oblíquo, inclui-se também na classe dos pronomes pessoais as formas de possessivo, com caso genitivo.

23 Sobre a distribuição e interpretação de pronomes nulos, ver Lobo (2013b) para sujeitos nulos e Costa

& Duarte (2013) para objetos nulos.

24 Esta distinção é particularmente relevante no tratamento de pronomes como a gente e vocês(s), aqui

incluídos nos pronomes pessoais, em que não há coincidência entre a pessoa semântica (1.ª do plural em a gente e 2.º do singular/plural em você(s)) e a pessoa gramatical (3.ª do singular em a gente e 3.ª do singular/plural em vocês(s)).

96 Formas tónicas Formas átonas (clíticas) Sujeito (nominativo) CP (oblíquo) Possessivo (genitivo) CD (acusativo) CI (dativo) 1sg eu mim, comigo meu, minha, meus,

minhas

me me

1pl nós nós, connosco nosso, nossa, nossos, nossas

nos nos, se gente nós, connosco nosso, nossa, nossos,

nossas

nos, se nos, se 2sg tu ti, contigo teu, tua, teus, tuas te te

você você, si, consigo seu, sua, seus, suas o, a, se lhe 2pl vós vós, convosco vosso, vossa, vossos,

vossas

vos vos

vocês vocês, convosco vosso, vossa, vossos, vossas

os, as, vos, se lhes, vos 3sg ele, ela ele, ela, si,

consigo

seu, sua, seus, suas o, a, se lhe 3pl eles, elas eles, elas seu, sua, seus, suas os, as, se lhes

Quadro 7: Formas dos pronomes pessoais (Raposo 2013: 902).

A partir dos quadros apresentados (cf. Quadros 5-7), sistematizam-se algumas propriedades morfológicas e sintáticas exibidas pelos pronomes pessoais:

(i) formas tónicas e formas átonas: os pronomes pessoais podem dividir-se em pronomes tónicos ou fortes (são-no as formas nominativas e oblíquas) e pronomes átonos ou clíticos (formas acusativas e dativas não reflexas, reflexas e recíprocas)25.

Estes dois tipos de pronomes apresentam comportamentos distintos em determinados contextos: dentro de um sintagma nominal, os pronomes fortes, mas não os clíticos, podem combinar-se com outros elementos, neste caso, com advérbios que os modificam (acenei-lhe só a ele vs. *acenei-lhe só) e admitem ser coordenados (visitei-os a eles e a elas vs. *visitei-os e as); ao contrário dos clíticos, os pronomes

25Esta classificação segue a distinção proposta por Cardinaletti & Starke (1994/1999), que dividem os

pronomes pessoais em fortes, fracos e clíticos. Em português europeu, os pronomes pessoais (pelo menos, os foneticamente realizados) são formas fortes ou clíticos, não ocorrendo formas fracas.

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fortes podem ainda ser acentuados contrastivamente (ele telefonou-me A MIM, não A TI vs. *telefonou-ME) e podem ocorrer isolados como resposta a uma pergunta (quem

chegou? ele vs. quem chegou? *o). Os pronomes átonos ou clíticos são pronomes

fonologicamente dependentes, na medida em que, devido à ausência de acento, dependem necessariamente de uma palavra adjacente acentuada, geralmente, um verbo. Dependendo de determinados fatores gramaticais, o clítico ocorre em diferentes posições relativamente ao verbo: à direita, em posição de ênclise (disse-lhe); à esquerda do verbo, em posição de próclise (não lhe disse); e, ainda, em posição de mesóclise, interna ao verbo, quando a forma verbal se encontra no futuro ou no condicional (dir-lhe-ei). Em posição de ênclise, os clíticos acusativos de 3.ª pessoa podem ter três variantes: para além das formas o(s) e a(s), que ocorrem com um verbo terminado em vogal ou ditongo, ocorrem as formas lo(s) e la(s) com formas verbais terminadas em consoante grafada <r>, <s> ou <z>, com o desaparecimento destas consoantes (podes ver/podes vê-lo; vimos/vimo-lo; traz/trá-lo), e as formas

no(s) e na(s) com verbos terminados em nasal (viram/viram-no). Independentemente

da posição em que ocorrem, alguns clíticos podem contrair-se, sendo formas contraídas de dois pronomes as seguintes: mo(s) e ma(s) – contração de me com o(s) e

a(s); to(s) e ta(s) – contração de te com o(s) e a(s); lho(s) e lha(s) – contração de lhe

com o(s) e a(s).

(ii) variação em pessoa, género e número: os pronomes pessoais apresentam formas para as três pessoas gramaticais (1.ª, 2.ª e 3.ª), sendo que todos os pronomes têm variantes em número (se e si têm as mesma formas no singular e no plural), mas apenas a 3.ª pessoa apresenta, para além da variação em número, variação em género. Assim, na 1.ª e na 2.ª pessoa, há uma forma para o singular e uma forma para o plural e, na 3.ª pessoa, nas formas nominativa/oblíqua e acusativa, duas formas para o singular (ele, ela; o, a) e duas para o plural (eles, elas; os, as), uma para cada género. Morfologicamente, as formas de singular e plural da 1.ª e da 2.ª pessoa não são relacionadas (eu, nós; tu, vós); pelo contrário, são regulares (com terminação em -s) na 2.ª pessoa semântica (vocês(s)) e na 3.ª pessoa gramatical (ele(s), ela(s); o(s), a(s),

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(iii) variação em caso: os pronomes pessoais são as únicas formas que, em português, conservam marcas morfológicas de caso. Assim, como já se observou (cf. Quadros 5-7), podem distinguir-se quatro tipos de formas consoante a função que os pronomes desempenham na frase: as formas nominativas, usadas para a função de sujeito; as formas acusativas, que correspondem à função de complemento direto; as formas dativas, usadas para o complemento indireto; e as formas oblíquas, que ocorrem com a função de complemento oblíquo.

(iv) contração com preposições: as formas oblíquas dos pronomes de 3.ª pessoa contraem-se com as preposições de e em: dele(s), dela(s); nele(s), nela(s). Recorde-se que, para além destas, são contrações com a preposição com as formas oblíquas

comigo, contigo, connosco, convosco e consigo.

Enquanto expressões referenciais por excelência, os pronomes pessoais remetem, tipicamente, para os participantes do discurso: as formas de 1.ª pessoa representam quem fala, as formas de 2.ª pessoa representam quem ouve e as formas de 3.ª pessoa representam de quem se fala. Porém, como já se mencionou, enquanto as formas de 1.ª e 2.ª pessoas têm, por definição, um uso deítico, as formas de 3.ª pessoa podem ser usadas deítica (cf. (21)) ou anaforicamente (cf. (22)).26 Assim,

enquanto no exemplo (21), ele só poderá ser identificado referencialmente tendo em conta as coordenadas da situação de enunciação, em (22), o valor referencial do pronome é adquirido indiretamente através de uma entidade introduzida no contexto discursivo, neste caso, um sintagma nominal definido.

(21) Não acredites no que ele te diz!

(22) O meu irmão chegou de viagem. Ele estava cansado, mas contente.

No seu uso anafórico, tanto a nível frásico como discursivo, os pronomes pessoais remetem, geralmente, para um antecedente nominal, podendo designar diferentes tipos de entidades. Apresentam-se, em seguida, para as diferentes formas

26 Quer isto dizer que apenas os pronomes de 3.ª pessoa, mas não os de 1.ª e 2.ª pessoas, são

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casuais dos pronomes pessoais (nominativa, acusativa, dativa e oblíqua, respetivamente), alguns exemplos que evidenciam como estes pronomes podem representar sintagmas nominais semanticamente muito diversos.

(23) a. A Internet é uma das maiores invenções do mundo atual. Ela revolucionou a forma como comunicamos.

b. O meu cão adoeceu. Tenho de o levar ao veterinário.

c. Para que o cabelo fique mais brilhante, tens de lhe aplicar um creme.

d. O direito à liberdade de expressão é fundamental. Não podemos deixar de lutar por ele.

De acordo com Raposo (2013), os pronomes nominativos, dativos e oblíquos são usados, sobretudo, para designar seres humanos, embora possam, com menos frequência, referir coisas, animais, situações e conceitos abstratos (cf. (23)). Já os pronomes acusativos parecem poder mais frequentemente designar todo o tipo de entidades, quer apresentem o traço [+humano] ou [-humano], quer o traço [+concreto] ou [-concreto].

Relativamente às possibilidades de interpretação anafórica de um pronome pessoal no interior de uma frase, estas são menos limitadas do que as dos sintagmas nominais plenos, ainda que obedeçam a determinadas restrições sintáticas quanto aos elementos que podem funcionar como antecedente. Para além disso, estas restrições não condicionam de igual modo todas as formas dos pronomes pessoais: enquanto os pronomes não reflexos e não recíprocos (que se passa a designar simplesmente de pronomes pessoais) podem ou não ter uma leitura anafórica no interior de uma frase, os pronomes reflexos e recíprocos têm obrigatoriamente de ter uma leitura anafórica, sendo que a expressão nominal que lhes serve de antecedente tem de estar contida na oração ou no sintagma nominal a que pertencem27.

27 Na Teoria da Ligação da gramática generativa (Chomsky 1981), pronomes pessoais e pronomes

reflexos e recíprocos (designados anáforas) estão em distribuição complementar: as anáforas são ligadas no seu domínio local (princípio A); os pronomes são livres no seu domínio local (princípio B).

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Embora não se pretenda apresentar uma descrição exaustiva dos contextos em que a leitura anafórica de um pronome pessoal é possibilitada, retoma-se as principais conclusões de Lobo (2013a)28, assim como alguns dos seus exemplos (Lobo 2013a:

2196-2197).

(24) a. O Rui deu-lhe um presente. (lhe ≠ o Rui)

b. [O pai do Rui] deu-lhe um presente. (lhe = o Rui)

(25) a. O Rui disse [que o Paulo lhe tinha telefonado]. (lhe = o Rui) b. O Rui sentiu-se mal [quando o Paulo lhe telefonou]. (lhe = o Rui) (26) a. Ele nunca disse que o Rui estava atrasado. (ele ≠ o Rui)

b. Ele sorriu quando o Rui entrou. (ele ≠ o Rui)

Para o contexto de frase simples, um pronome pessoal pode ter como antecedente um sintagma nominal pleno desde que nem o pronome nem o sintagma nominal pleno sejam cada um estruturalmente mais proeminente do que o outro (cf. contraste do exemplo (24)). Por sua vez, em frases complexas, completivas ou adverbiais, o pronome pessoal pode ser correferente com um sintagma nominal pleno independentemente de este ocupar uma posição mais ou menos proeminente que aquele, mas apenas quando o pronome está na oração subordinada e o antecedente na principal (cf. (25)), não sendo possível a leitura correferencial quando o pronome está na oração principal e o antecedente na subordinada, devido às propriedades do sintagma nominal pleno (cf. (26)).

Já os pronomes reflexos e os pronomes recíprocos, como se mencionou anteriormente, têm de ter o seu antecedente na mesma oração simples ou no mesmo sintagma nominal, ocupando o antecedente uma posição estruturalmente mais proeminente do que o pronome. Como se ilustra nos exemplos (27)-(30), tipicamente, tanto os pronomes reflexos, à exceção da forma si, como os pronomes recíprocos são

28 Não nos ocuparemos das diferenças de interpretação entre pronomes foneticamente realizados e

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referencialmente dependentes do sujeito da sua oração. O contraste em (28) deve-se ao facto de a Maria se encontrar numa posição mais encaixada dentro do sintagma nominal sujeito, pelo que o antecedente só pode ser A irmã da Maria e não a Maria. No caso dos pronomes recíprocos, o antecedente do pronome pode ter outra função para além da de sujeito, por exemplo, a de complemento direto (cf. (30)).

(27) A Maria penteou-se sozinha.

(28) a. A irmã da Maria penteou-se sozinha. b. *A irmã da Maria penteou-se sozinha. (29) As crianças dançaram umas com as outras.

(30) A professora apresentou as crianças umas às outras.

Para além das diferenças de comportamento entre formas não reflexas e não recíprocas e formas reflexas e recíprocas que se acabou de referir, há também diferenças entre os pronomes foneticamente realizados e os pronomes nulos. A título de exemplo, com um contexto de subordinação em que o antecedente é estruturalmente mais proeminente do que o pronome, a leitura anafórica é mais facilmente permitida com o pronome nulo do que com o pronome foneticamente realizado, como se observa em (31). Assim, diz-se que, em (31a), é preferencial a leitura em que há correferência entre o antecedente a Ana e o pronome nulo e, em (31b), é preferencial a leitura em que o pronome foneticamente realizado não é correferente29 com o sujeito da frase principal30.

(31) a. A Ana disse que [-] ia faltar à aula. b. A Ana disse que ela ia faltar à aula.

29 Diz-se, neste caso, que há referência disjunta ou obviativa.

30 Este contraste entre pronome nulo e pronome foneticamente realizado foi descrito para o português

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