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Capítulo 3. Dependências referenciais

3.2. Tipos de relações anafóricas

3.2.2. Relações anafóricas com pronomes

3.2.2.4. Pronomes relativos

Os pronomes relativos são, geralmente, definidos como palavras que iniciam orações relativas. Podem também ser chamados morfemas relativos33 (Brito 1991b) ou

constituintes relativos (Peres & Móia 1995, Brito & Duarte 2003), uma designação que

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abrange os relativos tradicionalmente considerados «pronomes», «adjetivos» ou «advérbios» e que inclui o elemento relativo sozinho ou acompanhado por outras expressões, como preposições. Já em Veloso (2013), distingue-se constituinte relativo simples, quando este inclui apenas um pronome relativo, de constituinte relativo complexo, quando contém o relativo e outro material.

Para efeitos da caracterização que a seguir se apresenta, usa-se o termo «pronome relativo» para designar, genericamente, qualquer dos elementos relativos que iniciam as orações relativas, visto que qualquer um deles «ou retoma um antecedente de natureza nominal (à exceção de o que, o qual também pode retomar uma frase) ou funciona como sintagma nominal dentro da oração relativa» (Veloso 2013:2078). Antes, contudo, descrevem-se algumas propriedades gerais das orações que os pronomes relativos introduzem.

As orações relativas34 pertencem, juntamente com as orações substantivas ou

completivas e com as orações adverbiais, ao grande grupo das orações subordinadas. Segundo Brito & Duarte (2003), na sua modalidade mais típica, as relativas são formas de modificação de uma expressão nominal antecedente (cf. (47)), podendo também modificar um antecedente oracional (cf. (48)).

(47) Entreguei à Maria os livros [que ela me emprestou]. (48) A Maria emprestou-me os livros, [o que eu lhe agradeci].

Há ainda as relativas que não têm um antecedente expresso. Chamadas orações substantivas relativas, orações relativas livres ou relativas sem antecedente expresso, estas relativas não têm um antecedente lexicalmente expresso, apresentando uma distribuição distinta da das relativas com antecedente e ocupando, relativamente à frase principal, uma posição típica das expressões nominais35.

34 Referimo-nos às relativas canónicas, mas estão também descritas para o português europeu

estratégias de relativização não canónicas, tais como a estratégia cortadora e a estratégia resuntiva (cf. Peres & Móia 1995, Alexandre 2000, por exemplo).

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Por ocuparem uma posição típica dos adjetivos, as orações relativas com antecedente são, tradicionalmente, chamadas orações subordinadas adjetivas relativas. Se, por um lado, estas orações se aproximam dos adjetivos, em termos sintáticos e semânticos (ocorrem em posição pós-nominal, apresentam um valor atributivo e desempenham a função de modificador nominal), por outro lado, como mostram Brito & Duarte (2003), sendo oracionais, apresentam propriedades típicas de uma proposição – tais como predicação própria, tempo e modo – que os adjetivos não têm.

As orações relativas como as apresentadas nos exemplos (47) e (48) podem ser de dois tipos, dependendo da relação que é estabelecida com o antecedente: orações relativas restritivas e orações relativas explicativas36. A definição que se transcreve em

seguida, de Cunha & Cintra (1984: 600), dá conta das diferenças que, tradicionalmente, são apontadas entre os dois tipos de relativas:

«As restritivas, como o nome indica, restringem, limitam, precisam a significação do substantivo antecedente. São, por conseguinte, indispensáveis ao sentido da frase; e, como se ligam ao antecedente sem pausa, dele não se separam, na escrita, por vírgula. (…) As explicativas acrescentam ao antecedente uma qualidade acessória, isto é, esclarecem melhor a sua significação, à semelhança de um aposto. Mas, por isso mesmo, não são indispensáveis ao sentido essencial da frase. Na fala, separam-se do antecedente por uma pausa, indicada na escrita por vírgula.»

Assim, enquanto as relativas restritivas desempenham a função de modificador restritivo, restringindo a referência do antecedente que modificam e, desta forma, contribuindo para a identificação da entidade que ele denota, as relativas explicativas, que desempenham a função de modificador apositivo, apenas fornecem informação adicional sobre a entidade denotada pelo antecedente, sendo a identificação dessa mesma entidade estabelecida pelo sintagma nominal ou frase que o constitui e não pela oração relativa. Os exemplos (49) e (50) ilustram, respetivamente, as relativas restritivas e as relativas explicativas, com um antecedente nominal37. Como se observa

36 As relativas restritivas podem também ter a designação de determinativas ou não apositivas e as

explicativas de apositivas ou não restritivas (I. Duarte, 2000).

37 Na verdade, apenas as relativas explicativas podem ter um antecedente frásico, conforme exemplo

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em (49), a relativa permite a identificação de uma entidade num grupo de entidades, ou seja, «é ator» não é predicado acerca de «o meu irmão», mas acerca de «o meu irmão que vive em Nova Iorque». Já em (50), a relativa contém informação adicional sobre o antecedente, mas não contribui para restringir a sua referência.

(49) O meu irmão [que vive em Nova Iorque] é ator. (50) O meu irmão, [que vive em Nova Iorque], é ator.

Retomando a caracterização dos pronomes relativos, considera-se, em termos gerais, que o português europeu disponibiliza os seguintes pronomes relativos38: que,

o qual, quem, quanto, onde e cujo. Morfologicamente, os pronomes relativos podem

ser formas variáveis ou invariáveis e, em termos sintáticos, desempenham sempre uma função sintática na oração a que pertencem39. Vejam-se algumas propriedades de

cada um destes pronomes (a partir, sobretudo, de Brito & Duarte 2003 e Alexandre 2000):

(i) que ocorre nas relativas restritivas e explicativas, mas não pode ocorrer nas relativas livres, sendo o único pronome relativo a ocorrer nas estratégias de relativização não canónicas. É um pronome invariável quanto ao género e ao número. Em termos semânticos, pode referir-se tanto a entidades [±animadas] como [±humanas]. Comparativamente aos outros pronomes relativos, é o que admite maior diversidade de contextos no que concerne à sua função dentro da oração relativa. Contrastando com os pronomes relativos o qual e quem, que pode ocorrer como sujeito (cf. (51)) e como complemento direto em relativas restritivas (cf. (52)); nestes

38 Estas são as formas elencadas, por exemplo, nas gramáticas de Cunha & Cintra (1984) e Mateus et al.

(2003). A lista de pronomes apresentada em Raposo et al. (2013) inclui outras formas relativas, tais como a locução pronominal o que e quando e como, consideradas pró-formas de natureza adverbial. Contudo, não é consensual que estas formas sejam pronomes relativos (ver, sobre a discussão em torno de quando e como, Mateus et al. 1989, Alexandre 2000 e Móia 2001).

39 De acordo com Alexandre (2000), ao contrário de outras línguas, como o basco, o português europeu

disponibiliza todas as posições sintáticas (argumentais e não argumentais) para a formação de relativas restritivas. Assim, pode falar-se de relativas de sujeito (SU), de complemento ou objeto direto (OD), de complemento ou objeto indireto (OI), de oblíquo (OBL) e de genitivo (GEN), de acordo com a função sintática desempenhada pelo pronome relativo.

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casos, não pode, porém, ser precedido de preposição40. Quando ocorre precedido de

preposição, marca diferentes funções sintáticas, sendo sensível à natureza [±humana] do antecedente, embora ocorra, geralmente, com um antecedente [-humano]41.

Assim, precedido da preposição a, marca o complemento indireto (cf. (53)); com outras preposições tem a função de oblíquo, por exemplo, com em tem um valor locativo (espacial ou temporal) (cf. (54a) e (54b)); com de pode marcar o genitivo (cf. (55))42. Independentemente de ocorrer sozinho ou precedido de preposição, que

remete sempre para um antecedente nominal, isto é, um sintagma nominal pleno. Há, no entanto, o caso em que o elemento que admite ser precedido de o, ocorrendo mais tipicamente em orações relativas explicativas, com um antecedente que não é nominal, mas de natureza frásica. Contudo, a posição defendida por alguns autores é a de que esta locução pronominal forma um constituinte único, com sentido equivalente a o qual, sendo o não um demonstrativo, como tem sido tradicionalmente entendido, mas um artigo definido43.

(51) Vi o homem que roubou a tua carteira. (52) O livro que li nas férias ganhou um prémio. (53) O cão a que fizeste festas fugiu.

(54) a. Vê-se o mar da casa em que vivemos. b. Passo assim os dias em que estou em casa.

(55) A árvore de que cortei alguns ramos está de novo a crescer.

40 O facto de, nas relativas de sujeito e de objeto, que não poder ocorrer precedido de preposição,

independentemente da natureza humana ou não humana do antecedente, levou alguns autores (Brito 1991b, para o português europeu) a proporem que, nestes casos, que não é um relativo, mas uma conjunção ou, na literatura especializada, um complementador, semelhante ao que ocorre nas subordinadas completivas. Assim, o português apresentaria dois tipos de relativas: iniciadas pelo complementador que para as posições menos encaixadas (sujeito e objeto) e iniciadas por pronomes relativos para as posições mais encaixadas. No âmbito deste trabalho, não se estabelece, contudo, esta distinção.

41 Com antecedentes humanos, sobretudo nas relativas explicativas, é preferencial o uso de quem. 42 Apresentam-se exemplos de Brito & Duarte (2003) para as relativas com que, as que mais interessam

ao presente trabalho. Para exemplos com os restantes pronomes relativos, ver Alexandre (2000:51-52) e Brito & Duarte (2003:663-664).

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(ii) tal como que, o qual ocorre apenas em relativas com antecedente expresso (restritivas ou explicativas), não podendo ocorrer em relativas livres. É um pronome variável em género e em número, concordando com o seu antecedente. Como não apresenta traços sintático-semânticos inerentes, pode combinar-se com antecedentes de valores semânticos diversos. Precedido de preposições, exprime diversas funções: complemento indireto precedido de a, oblíquo quando selecionado por diversas preposições44. Não precedido de preposição, nas relativas explicativas (mas não nas

restritivas) pode ser sujeito e complemento direto;

(iii) quem é, tal como que, um pronome invariável45. Pode ocorrer nos três tipos

de relativas canónicas e usa-se precedido de preposição (exceto em relativas de sujeito e objeto sem antecedente expresso, nas quais ocorre sem preposição), como complemento indireto e como complemento oblíquo, com um antecedente exclusivamente humano, dado que possui inerentemente o traço [+humano]. Quando é precedido da preposição de marca também o genitivo;

(iv) quanto pode usar-se em relativas canónicas com ou sem antecedente expresso, sendo invariável quando ocorre sem antecedente expresso e variável em género e em número nas relativas com antecedente. Na oração a que pertence,

quanto pode ocupar a posição de sujeito e de complemento direto. Apresenta um

valor semântico intrínseco de quantidade e, assim sendo, usa-se exclusivamente com um antecedente quantificacional, expresso por quantificadores como tudo, tanto e

todo (e respetivas variantes morfológicas), ou seja, o seu antecedente é a

quantificação de um sintagma nominal a que a oração relativa está ligada;

(v) onde pode ocorrer em relativas canónicas com ou sem antecedente expresso. Tal como que e quem, é um pronome invariável quanto ao género e ao número. Considerado por alguns gramáticos um advérbio relativo (cf. Cunha & Cintra 1984), usa-se unicamente como oblíquo e apresenta um valor semântico de lugar.

44 Sobre as preposições que precedem os pronomes relativos, considera-se em Cunha & Cintra (1984)

que, com antecedentes não humanos, que ocorre preferencialmente com preposições monossilábicas, ao passo que o uso de o qual é preferencial ou até mesmo obrigatório com preposições de duas ou mais sílabas e locuções prepositivas.

45 Brito (1991b:158) defende a hipótese, por paralelismo entre quem e quien, quienes (do castelhano),

de que quem seja um morfema nominal com traços de concordância próprios dos pronomes com essa natureza, ainda que sem realização morfofonológica.

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Pode, como outros relativos, ser precedido de preposições, nomeadamente de a e de. Quando isso acontece, aglutina-se com as preposições, produzindo as formas aonde e

donde, ainda que o emprego destas relativamente à forma onde pareça ser

indiscriminado (Cunha & Cintra 1984:351);

(vi) cujo ocorre apenas em relativas canónicas com antecedente expresso. É um pronome relativo variável em género e em número, marcando o genitivo. Semanticamente, tal como um pronome possessivo46, cujo estabelece uma relação de

posse, podendo considerar-se que é equivalente a um sintagma preposicional iniciado por de, com função de complemento ou modificador do nome (os óculos do rapaz / o

rapaz cujos óculos). Cujo tem necessariamente um antecedente nominal (que

corresponde à entidade possuidora) e, contrariamente aos demais pronomes relativos, precede sempre o nome que denota a entidade possuída e com o qual concorda, funcionando como um determinante.

Como se começou por dizer ao caracterizar os pronomes relativos, estes são geralmente definidos como pronomes que iniciam uma oração relativa. Porém, como se acabou de observar, o pronome relativo desempenha uma função sintática no interior da oração a que pertence, ou seja, está associado a uma posição dentro da relativa. Assume-se, portanto, que os pronomes relativos são atraídos de uma posição no interior da oração subordinada para uma posição na periferia esquerda da frase, junto do respetivo antecedente47. Desta forma, o pronome relativo não só estabelece

uma relação anafórica com o seu antecedente, como está associado a uma categoria vazia, designada vestígio, que lhe corresponde dentro da oração relativa, tal como se esquematiza em (56), a partir de Brito & Duarte (2003).

46 Tendo em conta as semelhanças sintáticas e semânticas com o possessivo, cujo é designado pronome

relativo possessivo (cf. Cunha & Cintra 1984).

47 As línguas naturais apresentam construções em que, fonologicamente, certos elementos ocorrem em

posições diferentes daquelas em que são interpretados. No quadro da gramática generativa, este efeito é captado em termos de movimento. Assim, de forma muito abreviada, assume-se que determinados constituintes sofrem movimento a partir de uma posição de base para uma posição final. Quando o constituinte se movimenta para uma posição final que é argumental (i.e. uma posição de argumento do verbo), fala-se de movimento A; quando a posição final corresponde a uma posição não argumental, trata-se de movimento A-barra, sendo o movimento-wh, aquele que desloca morfemas-wh como os pronomes relativos, considerado um tipo de movimento A-barra.

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(56) … SN1 [pronome relativo1… [-]1…]

(57) O jogador1 [que1 [-]1 fez uma falta] levou cartão amarelo.

(58) O jogador1 [que1 o árbitro chamou [-]1] levou cartão amarelo.

Por sua vez, em (57) e (58), ilustra-se esta relação com relativas de sujeito e de objeto, respetivamente. Como se observa em (57), o pronome relativo, que tem como antecedente o jogador, é interpretado como sujeito da oração relativa; ou seja, ao invés de ocorrer uma construção do tipo O jogador [o jogador fez uma falta] levou

cartão amarelo, com a repetição, não permitida na língua, de o jogador na oração

subordinada, ocorre uma construção em que esse sintagma é interpretado por meio de um pronome relativo, que é deslocado para o início da oração relativa, junto ao seu antecedente. O mesmo fenómeno está presente em (58), mas a posição base de o

jogador na subordinada é a de complemento direto, o que corresponderá a uma

representação deste tipo: O jogador [o árbitro chamou o jogador] levou cartão

amarelo48. Neste caso, e como se verá mais adiante, o movimento do pronome relativo é mais longo e parece ser mais complexo, uma vez que o constituinte deslocado passa por um outro constituinte, na posição de sujeito (aqui preenchida por

o árbitro), até atingir a sua posição final.

Ao concretizarem-se numa dupla relação, que envolve não dois, mas três termos (um antecedente, um elemento relativo e uma categoria vazia), as relações anafóricas em que os pronomes relativos participam são necessariamente diferentes das que se descreveram para os pronomes pessoais e para os pronomes demonstrativos. Neste caso, não só está em jogo uma relação de dependência referencial entre um antecedente e um pronome relativo, mas uma dependência sintática, instanciada por movimento do pronome relativo, que deixa na sua posição de base um vestígio49.

48 Para uma descrição aprofundada do processo de relativização, ver Brito (1991b).

49 Ver Brito (1991b) para uma discussão de diferentes hipóteses teóricas sobre a aplicação da Teoria da

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