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Relações anafóricas com sintagmas nominais plenos

Capítulo 3. Dependências referenciais

3.2. Tipos de relações anafóricas

3.2.1. Relações anafóricas com sintagmas nominais plenos

Os processos anafóricos em que participam sintagmas nominais plenos enquanto expressões anafóricas são, geralmente, designados por anáfora nominal. Nesta, a relação anafórica é avaliada, sobretudo, em relação à existência ou não de correferência, visto que os sintagmas nominais plenos são expressões referencialmente autónomas.

De acordo com Figueiredo (2000:217), a anáfora nominal «ou resulta de um prolongamento natural do antecedente por meio de repetição ou de substituição, o que se traduz em uma anáfora correferencial, ou resulta de processos inferenciais, de saberes enciclopédicos, o que se traduz em uma anáfora não referencial (associativa)». Nesta perspetiva, podem distinguir-se, geralmente, dois tipos de anáfora nominal: a anáfora por retoma – em que se inclui a anáfora fiel, a anáfora infiel e a anáfora resumativa ou conceptual – e a anáfora por associação – que corresponde à anáfora associativa.

Na anáfora fiel, há identidade referencial plena entre o antecedente e a expressão anafórica, ocorrendo repetição lexical do nome do antecedente, com variação do determinante, que, tipicamente, é indefinido no sintagma nominal antecedente e definido ou demonstrativo8 na expressão anafórica, como se observa no

exemplo (11). Por sua vez, na anáfora infiel, em lugar de se utilizar a repetição lexical do nome, a retoma ocorre por substituição, através de uma expressão com o mesmo referente, mas com uma denotação diferente9 (cf. (12)) ou, ainda, através de uma

expressão que apresenta relações léxico-semânticas10 com a expressão retomada, tais

como a sinonímia e a hiperonímia, como se observa em (13) e (14), respetivamente.

8 Para uma distinção de valores específicos associados à ocorrência do definido ou do demonstrativo nos

diferentes tipos de anáfora nominal, ver Figueiredo (2000).

9 Neste caso, existe uma cadeia referencial (mas não uma cadeia anafórica) entre os dois elementos,

visto que têm o mesmo referente. A interpretação das duas expressões como correferentes está dependente do conhecimento do mundo.

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(11) Estreou um filme muito interessante. O / Este filme tem recebido boas críticas. (12) Mia Couto tem um novo livro. O escritor moçambicano tem uma vasta obra. (13) Corri para apanhar o metro. Não consegui entrar, porque o comboio já estava

cheio.

(14) O metro está sempre cheio. Mesmo assim, é o transporte em que prefiro andar.

Ainda no âmbito da anáfora por retoma, na anáfora resumativa, o sintagma nominal anafórico não só retoma um antecedente que, geralmente, é proposicional, como o resume e interpreta, como ocorre no exemplo (15), de Figueiredo (2000: 31), com o uso da expressão este argumento. Outras expressões demonstrativas tipicamente usadas nesta construção são, por exemplo, esta ideia, esta afirmação,

esta situação, este problema.

(15) O Pedro veio visitar-me esta semana e disse-me que ia deixar de fumar, porque o tabaco estava cada vez mais caro. Este argumento não basta para eu acreditar que ele vá deixar de fumar.

Relativamente à anáfora associativa, trata-se de um tipo de anáfora nominal que se distingue dos restantes tipos mencionados, visto não existir identidade referencial entre a expressão anafórica e o antecedente. Este processo anafórico corresponde, basicamente, à relação léxico-semântica meronímica de parte-todo, que só pode ser interpretada a partir de saberes partilhados. Assim, em (16), ainda que não exista correferencialidade, a relação anafórica que se estabelece entre a porta e a casa é possibilitada pelo nosso conhecimento do mundo de que as casas têm portas.

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De forma resumida, pode afirmar-se que a anáfora nominal se estabelece a partir de processos de repetição, substituição e associação, fortemente apoiados em relações semântico-lexicais e no nosso conhecimento do mundo. Estes processos estabelecem-se, sobretudo, em unidades linguísticas superiores à frase11.

De facto, no interior de uma frase, não há identidade referencial entre dois sintagmas nominais plenos, a não ser que se verifiquem condições sintáticas particulares, relacionadas com a função desempenhada pelos constituintes. Partindo da noção de proeminência estrutural12, Lobo (2013a) examina, precisamente, as

condições sintáticas que possibilitam ou impossibilitam a correferência entre dois sintagmas nominais numa frase, concluindo que, ao nível da frase simples ou complexa, «independentemente de se tratar de estruturas de subordinação completiva ou adverbial, é possível a correferência entre sintagmas nominais quando um antecedente é um constituinte propriamente incluído no sujeito ou no complemento direto da frase» (Lobo 2013a: 2191). Em termos de proeminência estrutural, isso corresponde a dizer que só é possível – ainda que nunca seja obrigatória – a identidade referencial entre dois sintagmas nominais plenos quando nenhum deles é mais proeminente do que o outro13. Para além disso, parece ser

também uma condição necessária que o sintagma nominal com maior autonomia referencial, isto é, aquele tem um nome próprio, preceda o sintagma nominal com menor autonomia referencial14. Os exemplos (17)-(19), selecionados de um conjunto

11 Para um tratamento dos processos anafóricos ao nível do texto, leia-se, por exemplo, Lopes &

Carapinha (2013), secção 2.2.2.

12 Segundo Raposo (2013), a relação de proeminência estrutural capta a diferença de nível hierárquico

entre dois constituintes, relacionando, em termos de representação em árvore, um nó x mais alto na estrutura com um nó y mais baixo, sem que y esteja incluído em x. Esta noção traduz a relação estrutural de c-comando, definida na teoria de princípios e parâmetros da gramática generativa, segundo a qual a c-comanda b sse (i) a é distinto de b, (ii) a não dominar b e (iii) o primeiro nó ramificante que domina a domina b (Raposo 1992). Assim, de acordo com posição ocupada e a função desempenhada, os constituintes podem ser mais proeminentes que outros, de acordo com a seguinte hierarquia (Lobo 2013a:2192): a) sujeito > complemento direto > SN ou oração dentro de complemento preposicionado, indireto ou oblíquo; b) sujeito > adjunto adverbial pós-verbal.

13 A relação de proeminência estrutural, ou de c-comando, é fundamental para a Teoria da Ligação, que

estabelece princípios que regulam a interpretação de expressões anafóricas ao nível da frase. Segundo esta teoria, os sintagmas nominais plenos, designados expressões-R, são livres em qualquer domínio (princípio C). Como se verá adiante, os pronomes estão sujeitos a outros princípios.

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de paradigmas15 apresentados por Lobo (2013a: 2190-2193), parecem poder confirmar

esta generalização.

(17) a. O João adora o miúdo. (o João ≠ o miúdo)

b. [O pai do João] adora o miúdo. (o João = o miúdo/outro) c. [O pai do miúdo] adora o João. (o João ≠ o miúdo)

(18) a. O João disse que o miúdo estava doente. (o João ≠ o miúdo)

b. [O pai do João] disse que o miúdo estava doente. (o João = o miúdo/outro) c. [O pai do miúdo] disse que o João estava doente. (o João ≠ o miúdo) (19) a. O João zangou-se quando o miúdo começou a fazer barulho.

(o João ≠ o miúdo)

b. [O pai do João] zangou-se quando o miúdo começou a fazer barulho. (o João = o miúdo/outro)

c. [O pai do miúdo] zangou-se quando o João começou a fazer barulho. (o João ≠ o miúdo)

No contexto apresentado em (17), uma frase simples, observa-se o contraste entre (17a) – em que o João não pode ser antecedente de o miúdo nem pode haver uma leitura correferencial entre os dois sintagmas nominais, uma vez que o João (sujeito) é mais proeminente do que o miúdo (complemento direto) – e (17b) – em que a leitura correferencial é possível pelo facto de nenhum dos sintagmas ser mais proeminente do que o outro (o João é um constituinte incluído num sintagma nominal mais alargado, o pai do João). Por sua vez, em (17c), ainda que o princípio sobre a relação de proeminência estrutural esteja assegurado, a correferência entre os dois sintagmas,

15 Lobo (2013a) não só apresenta paradigmas para frases simples e complexas (subordinada completiva

e subordinada adverbial), como considera a posição dos sintagmas nominais, dando conta de contextos em que, na frase complexa, o SN o João é sujeito ou complemento direto da oração principal e sujeito ou complemento direto da oração subordinada e o SN o miúdo é sujeito ou complemento direto da oração subordinada. Os exemplos selecionados apenas dão conta dos contextos para frases simples e para frases complexas em que os sintagmas nominais são sujeitos ou estão incluídos nele.

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como consequência da inversão da ordem dos sintagmas apresentada em (17a) e (17b), deixa de ser possível por não ser satisfeita a condição de que o sintagma nominal mais autónomo preceda o outro sintagma nominal.

Nos exemplos (18) e (19), observa-se o mesmo contraste entre (a) e (b), mas em estruturas de subordinação completiva (18) e adverbial (19), só sendo possível obter uma leitura correferencial nestes contextos quando o sintagma nominal antecedente está contido num sintagma nominal mais vasto (neste caso, o sujeito), não tendo, dessa forma, proeminência estrutural sobre qualquer outro sintagma nominal. À semelhança de (17c), os exemplos (18c) e (19c) evidenciam como continua a ser uma condição necessária, agora em contextos de subordinação, que o sintagma com nome próprio preceda o outro sintagma nominal.