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As dimensões escondidas nas práticas de leitura e escrita no ensino superior

No documento laurasilveirabotelho (páginas 55-61)

2 TEORIAS DE LETRAMENTO(S)

2.5 Letramentos Acadêmicos e suas especificidades

2.5.3 As dimensões escondidas nas práticas de leitura e escrita no ensino superior

Um conceito de fundamental importância para este trabalho, desenvolvido pelo grupo dos Novos Estudos de Letramento, é o das dimensões escondidas nas práticas de leitura e escrita no ensino superior. Assim como outros, esse conceito também emerge de experiências de Brian Street em suas aulas na disciplina sobre Letramento e na disciplina Linguagem e Poder, ministradas na Universidade da Pensilvânia, para alunos de pós- graduação strictu sensu.

Seu objetivo era preparar os alunos para a produção de suas teses ou dissertações. Para a avaliação, o discente deveria escrever um artigo que evidenciasse que conseguiu aprender a sintetizar teoria e método, a utilizar referências apropriadas, relacionando-as com

a questão de pesquisa. Além disso, havia o intento de verificar se o aluno estava apto a produzir textos mais longos, como os da tese/dissertação.

Street (2010c), nessa experiência, trabalhou com alunos de pós-graduação, entretanto, consideramos interessante o relato dessa experiência, assim como os objetivos e a perspectiva teórica adotados (e também sua dinâmica), pois são muito parecidos com a disciplina TCC, ministrada por mim, alvo de nossa pesquisa, porém, no nível de graduação.

Em seu estudo, o autor concentrou suas investigações nos critérios ocultos utilizados pelos professores na avaliação de artigos submetidos a congressos e periódicos na busca de uma explicitação daquilo que era considerado relevante por esses membros mais experientes.

Levando em conta a escrita como uma prática social, a abordagem feita por Street (2010c) abarcou os aspectos discursivos, buscando mapear as dimensões escondidas de forma mais interativa e menos padronizada (como a usual lista de itens a serem identificados como introdução, referencial teórico, metodologia e resultados).

A proposta do autor considera que certos aspectos que são velados, mas exigidos pelos professores, nos processos de escrita acadêmica dos alunos, devam vir à tona, explicitados em uma discussão entre alunos e professores da disciplina, de acordo com o gênero trabalhado.

Como nos relembra Street (2010c, p. 544-545), o modelo dos Letramentos Acadêmicos “reconhece a escrita acadêmica como prática social, dentro de um contexto institucional e disciplinar determinado e (talvez mais do que a abordagem americana WID28) destaca a influência de fatores como poder e autoridade sobre a produção textual dos alunos”. Street (2010c) defende que a escrita no meio acadêmico é, ainda nos dias de hoje, ensinada sem uma instrução direcionada, por isso é aprendida de forma implícita. Essa é uma situação que também notamos nos dados coletados no contexto desta pesquisa com a produção do gênero monografia.

É fato que alguns professores direcionam suas orientações delimitando determinados elementos essenciais próprios do gênero monografia, como, por exemplo, a questão de pesquisa, os objetivos, a metodologia, os pressupostos teóricos. Entretanto, como podemos observar nas entrevistas com os alunos e nas observações feitas por eles, em sala, durante as aulas gravadas em áudio, as dimensões socioculturais são, muitas vezes, negligenciadas pelos orientadores, afetando, dessa forma, o processo de escrita do aluno. O

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foco tem incidido, como discutiremos no capítulo de análise de dados, mais em torno de aspectos estruturais do gênero, negligenciando as convenções que regem as práticas de letramento no meio acadêmico.

Sabemos que apenas delimitar os aspectos estruturais supramencionados, de acordo com Street (2010c), é uma atitude que se enquadra no modelo de socialização acadêmica, no qual o docente até pode inserir o aluno em eventos de letramentos socialmente situados, porém, concordamos com a posição do autor de que esse modelo não abarca a complexidade das dimensões socioculturais relativas aos processos de produção textual no meio acadêmico.

Lillis (1999), como um dos nomes relevantes da área, também contribui com a abordagem de Letramentos Acadêmicos ao definir como prática institucional de mistério as convenções da escrita acadêmica estabelecidas por membros mais experientes que se isentam de explicitá-las aos alunos, membros menos experientes no contexto acadêmico. Esse conceito coaduna com o que temos discutido sobre o fato de haver um senso comum sobre regras gerais de práticas de escrita no ensino superior que se adequam a qualquer contexto acadêmico. Tal fato, de certa forma, isenta os docentes ou membros mais experientes de evidenciar aos alunos determinadas dimensões escondidas no que se refere à escrita.

Essa perspectiva favorece o “discurso do déficit do letramento”, conforme discutido por Fischer (2007). Segundo a autora, os professores reclamam que os alunos não sabem produzir nem conseguem compreender gêneros acadêmicos. Entretanto, esses docentes pressupõem que as habilidades de leitura, escrita e oralidade já são dominadas pelos estudantes, sobretudo porque já passaram por um processo seletivo, e imputam à escola as falhas em suas formações.

Desse modo, não explicitam questões de produção e leitura de textos nos âmbitos das disciplinas. Isso se torna um problema cíclico: de um lado, os alunos que são membros menos experientes, que estão em uma nova esfera comunicativa e não compreendem determinadas convenções discursivas; de outro, os professores, as pessoas mais experientes e que já dominam tais convenções, que poderiam mediar esse processo, mas não o fazem, por acharem que os alunos já deveriam trazer esses conhecimentos.

Temos, então, o que Turner (1999) chama de “discurso da transparência”. Quando os usos da linguagem acadêmica funcionam bem, ela se torna invisível, isto é, se não há muitos “erros”, principalmente aqueles concernentes à superfície textual, a escrita pode passar incólume. Mas, em contrapartida, quando essa linguagem é marcada por alguma

“deficiência” pode ter “o efeito de marcar um aluno como deficiente na lógica e também na racionalidade” (TURNER, 1999, p. 15029

).

Assim, todos esses aspectos (dimensões escondidas, prática institucional do mistério, discurso do déficit do letramento, discurso da transparência) se relacionam e afetam as práticas de letramentos no ensino superior.

Complementando a reflexão, apresentamos o mapeamento que Street (2010c) faz, a partir de dados de sua pesquisa, de algumas dimensões escondidas no processo de escrita de artigos, quais sejam: introdução, contribuição, voz do autor, ponto de vista, marcas linguísticas, estrutura, conclusão. Abaixo, reproduzimos o quadro com as dimensões escondidas elencadas pelo autor em suas aulas.

Dimensões escondidas na produção de artigos acadêmicos Enquadramento  Gênero;

 Audiência;

 Finalidades/objetivos/argumentos Contribuição/ Para quê?  Para o conhecimento;

 Para a área de pesquisa;  Para pesquisas futuras. V

oz do autor

 Sujeito situado;

 Escritor que leva em conta seus interesses, valores, crenças que são construídas a partir de sua própria história.

Ponto de vista  Agência/pessoa;  Reflexividade. Marcas linguísticas  Clareza;

 Breves referências ao contexto;  Referencial teórico;

 Método (que serão desdobrados em outras partes do texto).

Estrutura  Introdução (exemplo, depoimentos pessoais, declarações universais, indicações);  Argumento;  Contexto;  Referencial teórico;  Métodos; 29

No original: […]can have the effect of marking out such a student with a deficiency in logic and rationality also.

 Dados;  Conclusões.

Quadro 2: As dimensões escondidas na produção de artigos acadêmicos (STREET, 2010c, p. 548).

Um maior detalhamento de cada uma dessas dimensões escondidas será desenvolvido no capítulo 5, na análise de dados. Aqui, para fins de breve esclarecimento, mencionaremos cada um deles, de forma bem sucinta.

O enquadramento, segundo Street (2010c), refere-se ao contexto de produção do texto acadêmico, ao gênero e à audiência, além da delimitação de seus objetivos. Já o item contribuição tem relação com a justificativa, desdobramento em futuras pesquisas e a relevância do trabalho. Consideramos esses aspectos fundamentais, tanto que fizemos um estudo piloto desta tese buscando identificar se os alunos do curso de Pedagogia conheciam os propósitos comunicativos da monografia e se a reconheciam como gênero. Os resultados serão detalhados à frente, entretanto, podemos adiantar que havia dificuldades em relação ao reconhecimento da contribuição da monografia.

Já a voz do autor e o ponto de vista são, para o mesmo autor, dimensões escondidas com características muito próximas, entretanto, a voz do autor concebe o aluno- escritor como um produtor de conhecimento; já o ponto de vista refere-se ao posicionamento desse aluno-escritor em relação àquilo que é pesquisado. Enquadramento, contribuição, voz do autor e ponto de vista são conceitos que serão retomados na análise.

As marcas linguísticas são os elementos da superfície textual relativas aos gêneros acadêmicos produzidos. Também foram alvo de debate para Street (2010c) e seus alunos, assim como nas aulas de TCC. Segundo o autor, os problemas relativos às marcas linguísticas apareciam quando era necessário o desenvolvimento de um bom argumento ou a revisão da coerência quando o escritor precisava evocar sua voz e o seu ponto de vista, ou ainda, quando o escritor tinha que tomar cuidado com a repetição dos termos. Nas aulas de TCC, essas dúvidas emergiram diversas vezes, além das dificuldades do uso dos conectores, da vírgula e do emprego de verbos adequados ao contexto acadêmico.

É interessante notar que Street (2010c) apresenta um depoimento de uma aluna no qual ela menciona que os professores enfatizam a incorporação e aplicação de um corpus na pesquisa, mas não dão um retorno sobre a escrita em si. Também notei isso durante as aulas e retomarei este aspecto na análise: o foco dos orientadores e dos alunos era no tema e

nos aspectos da superfície do texto e não em outros aspectos da pesquisa e da escrita do gênero em si.

A estrutura refere-se à infraestrutura do gênero, que, segundo Street (2010c), é definida por manuais de redação acadêmica. Realmente, essa pode parecer uma dificuldade menor, mas saber que há introdução, desenvolvimento e conclusão, ou elementos pré- textuais, textuais e pós-textuais não são informações suficientes para que os discentes consigam desenvolver capítulos de monografia, por exemplo. Embora possa parecer óbvio, negligenciar esse tipo de informação, certamente, afeta o processo de escrita por parte do aluno, principalmente o de graduação, que provavelmente escreverá um gênero como esse somente ao final do curso.

Por fim, temos a conclusão que, para o referido autor, é também uma seção do texto acadêmico para a qual é importante que se tenha estratégias sutis na escrita. Diferentemente dos tradicionais textos dissertativos, aprendidos na escola, Street (2010c) sugere que as conclusões podem fazer referências ao futuro, por exemplo, com indicação de futuras pesquisas, de lacunas no próprio trabalho ou mesmo desdobramentos do projeto. Nas aulas de TCC, percebi que essa também era uma parte muitas vezes negligenciada por alunos e professores, pois apenas resumiam a introdução e concluíam o texto. Trabalhamos as possibilidades textuais dessa parte da monografia em aula.

O que podemos perceber, a partir da descrição de cada um desses elementos, é que a relação escrita e poder está fortemente arraigada no contexto acadêmico. Ramires (2007) defende que a comunidade acadêmica constitui-se em um espaço dinâmico e plural (não estável) e seus membros devem estar empenhados na produção de conhecimento e interação social por meio de seus gêneros característicos.

O papel do professor, assim, é de fundamental importância porque ele, geralmente, é o principal agente responsável pela representação de significados que são partilhados por membros menos experientes (os alunos).

Motta-Roth (2002, p. 79) argumenta que “o texto acadêmico é construído como reflexo de normas e convenções, valores e práticas sócio-historicamente produzidos por um grupo de pessoas que se definem, entre outras coisas, por suas práticas discursivas”. As relações de poder, dessa maneira, podem ficar tensionadas, pois os alunos, com menos práticas na produção de gêneros acadêmicos, precisam de uma mediação adequada, pois, como discutido anteriormente, as convenções acadêmicas não são transparentes, nem simples de serem adquiridas.

A relação entre poder e letramento acadêmico é definida da seguinte forma por Motta-Roth (2002, p. 105): “pesquisadores com maior poder são os produtores de texto, enquanto os iniciantes (ou sem poder para interferir nos rumos dos programas de pesquisa) em cada área tornam-se o público alvo para quem os mais poderosos escrevem”. Os alunos, de certo modo, não se sentem encorajados a produzir gêneros acadêmicos por conta dessas relações, por não se sentirem capazes de construírem textos nesse contexto de produção tão complexo e, de certa forma, distante deles. Na verdade, como já mencionado, as convenções discursivas de produção de gêneros acadêmicos, muitas vezes, não são dominadas pelos alunos e são ocultadas pelos professores.

Elegemos o gênero monografia para objeto de estudo numa perspectiva de cunho etnográfico porque sentimos que precisávamos investigar mais a fundo a respeito das reais dificuldades de sua produção. O que estamos defendendo é que, ao discutirmos sobre letramentos acadêmicos, não podemos deixar de considerar na análise o estudo do gênero em si.

Acompanhamos Marinho (2010, p. 383) ao afirmar que o domínio do gênero “depende da experiência, da inscrição dos indivíduos nas esferas que os produzem e deles necessitam”. Por essa razão, a articulação entre teorias de letramentos de perspectiva etnográfica e teorias de gêneros se faz necessária. De um lado, o olhar etnográfico das práticas de leitura e escrita; de outro, a concepção discursivo-enunciativa da linguagem colaboram para uma reflexão desses processos em relação à produção da monografia, objeto de estudo dessa tese.

Dessa maneira, as teorias de gênero podem contribuir para uma melhor compreensão não só das condições de produção e das convenções que envolvem esse gênero, mas das relações de poder que estão implicadas nas práticas de letramentos acadêmicos.

No documento laurasilveirabotelho (páginas 55-61)