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Breve panorama dos estudos sobre Letramentos Acadêmicos

No documento laurasilveirabotelho (páginas 45-50)

2 TEORIAS DE LETRAMENTO(S)

2.5 Letramentos Acadêmicos e suas especificidades

2.5.1 Breve panorama dos estudos sobre Letramentos Acadêmicos

Lillis e Scott (2007) alertam que a expressão “letramentos acadêmicos” tem sido usada, ao longo dos últimos vinte anos, em diversos contextos, desde cursos de escrita para inserção de novos alunos no meio acadêmico, numa perspectiva instrumental, até visões mais ampliadas das convenções textuais no ensino superior. Entretanto, as autoras defendem que os Letramentos Acadêmicos devem ser considerados como um campo de pesquisa aplicada que tem suas próprias epistemologias, raízes históricas, ideológicas e metodológicas.

Dessa forma, os Letramentos Acadêmicos, como vertente teórica, surgiram na década de 90, no Reino Unido, conforme esclarecem Russel et al (2009), e concebem os letramentos como uma prática social. Para Lillis e Scott (2007), nessa vertente, em que se propõe a junção entre pesquisa e prática, o ensino-aprendizagem da escrita é compreendido a partir de seus contextos sócio-históricos e, por isso mesmo, institucionais. Assim, as pesquisas levam em conta a ideologia e a identidade dos sujeitos envolvidos, sua história, sua representação de linguagem, o campo disciplinar e, por essa razão, são passíveis de transformação.

Situamo-nos, também, nessa perspectiva teórica, assim, convencionamos usar “Letramentos Acadêmicos”, com iniciais maiúsculas, para designar essa vertente de estudos e “letramentos acadêmicos” para nos referir aos diversos tipos de letramentos envolvidos nas práticas de escrita no ensino superior (STREET; LEA, 2014). A intenção dessa escolha não é, de forma alguma, estabelecer uma dicotomia, pois não são conceitos opostos, pelo contrário, estão imbricados, mas essa foi uma forma de enfatizar a linha teórica à qual nos alinhamos e diferenciá-la de outras visões mais instrumentais da escrita acadêmica, nem sempre ancoradas nos pressupostos dos Novos Estudos de Letramento.

Os Letramentos Acadêmicos emergiram, como será explicado à frente, de acordo com Lillis e Scott (2007), em um contexto de ampliação do número de vagas no ensino superior no Reino Unido, quando houve uma mudança do perfil dos estudantes: uma nova camada social começou a ocupar os bancos das universidades, com suas histórias e diferentes letramentos. Fenômeno muito parecido ocorreu no Brasil, alguns anos depois, com a ampliação das vagas tanto em universidades públicas com programas como o REUNI18, como

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Reuni “é um programa do governo federal de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidade Federais brasileiras. Tem como objetivo dar às instituições condições de expandir o

em instituições privadas, com ProUni19 e outros tipos de concessão de bolsas de estudos, por exemplo, o FIES20. Daí a importância de apresentação desse histórico.

As abordagens teóricas sobre os processos de leitura e escrita no ensino superior se deram de diferentes formas nos Estados Unidos e Reino Unido. Decidimos falar a respeito dos marcos teóricos desses países porque vêm de lá as principais teorias usadas neste trabalho; além disso, influenciaram importantes pesquisas desenvolvidas no Brasil.

Em Exploring Notions of Genre in “Academic Literacies” and “Writing Across the Curriculum”: Approaches Across Countries and Contexts, David R. Russell, Mary Lea, Jan Parker, Brian Street e Christiane Donahue (2009) apresentam um percurso histórico dos estudos sobre letramento, mais especificamente o acadêmico, sobre o qual passaremos a discutir. Apoiar-nos-emos, também, no artigo Dimensões Escondidas na Escrita de Artigos Acadêmicos, de Brain Street (2010c) e no trabalho de Lea e Street, de 1998, Student writing in higher education.

A tradição de cursos de produção textual nas universidades dos Estados Unidos já dura mais de um século e tem como modelo teórico a “Escrita em Diferentes Disciplinas” (Writing Across the Disciplines, WAC). Na década de 70, nas palavras de Russell et al. (2009), as bases teóricas que sustentavam a “Escrita em Diferentes Disciplinas” advinham da teoria cognitiva, que foram paulatinamente mudando de orientação.

Já na década de 80, estudos linguísticos e etnográficos orientavam as pesquisas sobre a escrita no ensino superior com base nos gêneros. Os processos de escrita eram compreendidos, portanto, como uma prática textual. Destacam-se, dessa época, os trabalhos de Bazerman (1988).

De acordo com as considerações de Street (2010c, p. 544), dentro desse panorama, as Teorias de Gêneros trouxeram uma nova forma de abordar a questão da leitura e da escrita no ensino superior, pois enfocavam que “há uma variedade de comunidades discursivas com suas próprias normas e convenções para a construção do conhecimento e o debate acerca dele; e que os textos variam linguisticamente de acordo com sua finalidade e contexto”. Podemos perceber, dessa forma, que essa é uma abordagem mais sensível e que acesso e garantir condições de permanência no Ensino Superior”. www.reuni.mec.gov.br. Acesso em agosto de 2015.

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ProUni: programa do governo federal que oferece bolsas parciais ou integrais a estudantes de baixa renda. www.prouni.mec.gov.br

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Fies: Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior, programa de financiamento total ou parcial para alunos de baixa renda. No Fies, após colar grau, o estudante tem 18 meses para começar a pagar o financiamento.

considera, em suas reflexões, os aspectos sociais e não apenas os aspectos estruturais do texto.

Street (2010c) esclarece que uma das abordagens de gêneros desenvolveu-se na Austrália, com base na linguística sistêmico funcional, de Halliday e Hasan, com ênfase nos aspectos linguísticos do texto e suas relações com as funções sociais. Nos Estados Unidos, as teorias de gêneros tiveram por base a sociorretórica de Swales (1990), para quem o conceito de comunidade discursiva tem papel central. A escrita, nessa orientação teórica, é uma comunicação direcionada a objetivos, no contexto social de uma comunidade acadêmica específica.

Já a noção de letramento acadêmico, conforme mencionado acima, tem sua origem nos estudos que emergiram de pesquisas desenvolvidas no Reino Unido, na década de 90 e tinha como suporte teórico os Novos Estudos de Letramento. Até essa época, pouca atenção era dada, pelos pesquisadores desse grupo, às questões de leitura e de escrita no ensino superior. Conforme esclarecem Russell et al. (2009), uma exceção foi o trabalho de Houssel21, de 1988, no qual foram investigadas as dificuldades que os alunos enfrentavam porque desconheciam os discursos usados na universidade.

O referido estudo trouxe algumas boas contribuições, pois Houssel definiu o discurso acadêmico como um tipo particular de escrita que tem um conjunto de convenções e com códigos próprios. Em suas pesquisas, o autor procurou mostrar a necessidade de adequação da escrita nas diferentes disciplinas e de tornar explícitos aos alunos que existem diferentes modos de se escrever, dependendo do campo disciplinar. Embora isolado, percebemos que os resultados desse estudo foram embrionários para alguns conceitos desenvolvidos, mais tarde, pelos Novos Estudos de Letramento.

De acordo com Russell et al. (2009), o ensino superior no Reino Unido, no início da década de 90, passou por profundas transformações quando deixou de existir a divisão entre cursos politécnicos e cursos universitários. Houve uma unificação tanto em termos administrativos, como no âmbito das políticas de financiamento.

Essa mudança, para os autores, acarretou um número maior de alunos, sem necessariamente aumentar os recursos financeiros. Além disso, um “novo” público (que

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As publicações elencadas nessa seção, em nota de rodapé, são, a título ilustrativo, algumas das referências apresentadas pelos autores ao longo do histórico mostrado por eles. Por esse motivo, não estão nas referências finais.

HOUSELL, D. Towards an anatomy of academic discourse: Meaning and context in the undergraduate essay. In R. Saljo (Ed.), The written world: Studies in literate thought and action (pp. 161-177). Berlin: Springer-Verlag. 1988.

estava à margem) surgiu nas universidades em função de aberturas de mais vagas. Houve, então, uma necessidade de criação de cursos de nivelamento, chamados de centros de apoio à aprendizagem, em que os alunos tinham aulas em grupos menores, para orientações mais específicas, com seus professores.

Foi a partir da interface entre as teorias de letramento e a reflexão sobre a prática de escrita dos alunos desses “centros” que nasceram as primeiras publicações sobre letramento acadêmico22.

Como no Reino Unido existiam poucas publicações na área, muitas fontes teóricas vieram dos Estados Unidos, particularmente dos trabalhos de Bazerman23. Embora suas pesquisas fossem voltadas à escrita de pessoas já experientes e o grupo do Reino Unido se interessasse pela escrita de alunos de graduação, as reflexões de Bazerman contribuíram de modo relevante, principalmente porque o autor defendia que diferentes escolhas de “como” e o “que” se escreve resultam em diferentes significados (RUSSELL et. al, 2009). Além disso, a pesquisa de Bazerman analisou quais eram os conhecimentos prévios e as experiências que os alunos traziam para a construção da escrita acadêmica.

Em 1996, Street24 publicou um trabalho seminal sobre letramentos acadêmicos e a perspectiva teórica adotada ficou conhecida como Novos Estudos de Letramento. Nesse trabalho, o autor retoma os conceitos desenvolvidos em 1984 sobre os modelos autônomos de letramento (aquele em que o letramento é tido como uma habilidade técnica de escrita, que pode ser usada em qualquer contexto, de forma autônoma) e o modelo ideológico (aquele que destaca a natureza social e contextual das práticas de letramento e suas relações de poder e autoridade). Nessa visão, o letramento como prática social possui uma forte carga ideológica, como já abordado nas seções anteriores.

Russell et. al. (2009) apontam que o grupo dos Novos Estudos de Letramento preocupa-se, até meados dos anos 90, com a escola básica e em diferentes contextos sociais

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IVANIC, R. Writing and identity: The discoursal construction of identity in academic writing. Amsterdam: John Benjamins. 1998.

LILLIS, T. New voices in academia? The regulative nature of Academic writing conventions. Language and Education, 11(3), 182-199. 1997.

JONES, C., TURNER, J., & STREET, B. (Eds.).Students writing in the university: Cultural and epistemological issues. Amsterdam: John Benjamin. 1999.

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BAZERMAN, C. Shaping written knowledge: The genre and activity of the experimental article in science. Madison: University of Wisconsin Press. 1988.

24

STREET, B. Academic literacies. IN D. BAKER, C. FOX, & J. CLAY (Eds.), Challenging ways of knowing: Literacies, numeracies and sciences (pp. 101-134). Brighton, United Kingdom: Falmer Press. 1996.

como no Irã e África, mas não havia pesquisado as práticas de leitura e de escrita nas instituições em que trabalhavam: a universidade.

Ainda que trabalhos anteriores, como os de Lea (1994)25, já discutissem a escrita como prática social, opondo-se explicitamente contra os modelos de escrita dominantes, ainda não havia referência ao termo letramento acadêmico como tal. Esses trabalhos trouxeram, porém, importantes contribuições, como o conceito de “discurso”. Ivanic (1998)26

também investigou diferentes tipos de discurso na escrita dos estudantes (RUSSELL et al, 2009).

Em suma, o que caracteriza o cerne desses trabalhos foi o foco específico na escrita do estudante como prática social e o reconhecimento de uma multiplicidade de práticas discursivas. O termo letramento acadêmico foi gradualmente se consolidando em relação ao termo “discurso acadêmico”, pois marcava o enfoque da escrita e da leitura nos estudos desse grupo de pesquisadores.

Em uma pesquisa desenvolvida por Lea e Street, em 1998, sob o viés dos Novos Estudos de Letramento, foram introduzidas novas abordagens teóricas para análises de escrita de alunos, que ainda nessa época era dominada por abordagens mais psicológicas. As análises anteriores classificavam a escrita dos alunos como boa ou ruim apenas.

Já neste trabalho de Lea e Street (1998), o enfoque foram sobre as expectativas que professores e alunos tinham em relação à escrita em um contexto de práticas institucionais e suas relações de poder e identidade. Os resultados mostraram que havia distintas interpretações em torno desses processos. Por isso, Lea e Street (1998) defendem que os requisitos sobre produção de textos devem recair no nível da epistemologia, da autoridade e da contestação do conhecimento e não da habilidade técnica, da superfície da competência linguística e da assimilação cultural.

Dessa forma, esses autores categorizaram três modelos de escrita no meio acadêmico: habilidades de estudos, socialização acadêmica e letramentos acadêmicos, que serão explicitados a seguir.

25

LEA, M. R. “I thought I could write until I came here”: Student writing in higher education. In G. Gibbs (Ed.), Improving student learning: Theory and practice (pp. 216-226). Oxford: Oxford Centre for Staff Development. 1994.

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IVANIC, R. Writing and identity: The discourse construction of identity in academic writing. Amsterdam: John Benjamins, 1998.

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