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Letramento autônomo e letramento ideológico

No documento laurasilveirabotelho (páginas 35-38)

2 TEORIAS DE LETRAMENTO(S)

2.3 Letramento autônomo e letramento ideológico

Conforme já sinalizado, Street (1984) propõe que o termo seja usado no plural (letramentos) e não no singular (letramento). O autor, a partir de suas pesquisas etnográficas desenvolvidas nas áreas rurais do Irã, na década de 70, defende o reconhecimento dos letramentos múltiplos como práticas sociais que variam no tempo e espaço e estabelecem-se em relações de poder e ideologia.

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No original: Dominant literacies are powerful in proportion to the power of the institution that shapes them.

Ao se inserir em vilas nas quais boa parte dos moradores era analfabeta – pois o processo de instalação de escolas nesses lugares estava se iniciando -, Street (1984) percebeu que havia muitas práticas de letramento nas atividades religiosas, comerciais e escolares entre as pessoas daquela região. Assim, foi por meio dessas observações etnográficas que o autor desenvolveu dois conceitos cruciais para os estudos de letramento: o modelo de letramento autônomo e o modelo de letramento ideológico.

Já no início de seu clássico livro Literacy in theory and pratice, de 1984, Street define letramento como um termo síntese para resumir concepções de leitura e escrita e afirma que essas concepções têm caráter situado em uma ideologia e não podem ser tratados como neutros ou técnicos apenas. Pelo contrário, o autor procura demonstrar que as escolhas das práticas que são ensinadas e o modo de transmiti-las dependem da natureza da formação social.

Assim, para o autor:

as habilidades e os conceitos que acompanham a aquisição do letramento, em qualquer que seja a forma, não se originam de forma automática das qualidades inerentes do letramento, como alguns autores querem nos fazer acreditar, mas são aspectos de uma ideologia específica. A fé no poder e nas qualidades do letramento é ela própria socialmente aprendida e não é uma ferramenta adequada para compreender uma descrição de sua prática (STREET, 1984, p. 111).

Essas considerações sinalizam a importância de uma visão etnográfica para os estudos de letramento, pois como uma prática social, esse fenômeno não pode ser estudado isoladamente. Além disso, o autor destaca a importância de não tomarmos o letramento como algo que por si só será transformador da sociedade, concepção essa que, muitas vezes, vemos na mídia e até mesmo nas instituições educacionais. O autor argumenta que as concepções de leitura e escrita para uma dada sociedade dependem do contexto, por isso, tais conceitos são situados em uma ideologia e não podem ser isolados ou tratados como “neutros” ou meramente técnicos. Por essa razão, Street (1984) acredita que as escolhas das práticas a serem ensinadas e o modo de transmiti-las dependem da natureza da formação social.

O modelo autônomo, para Street (2003), concebe o letramento per se, ou seja, é visto como algo neutro e universal; as práticas de leitura e escrita são individuais

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No original: The skills and concepts that accompany literacy acquisition, in whatever form, do not stem in some automatic way from the inherent qualities of literacy, as some authors would have us believe, but are aspects of a specific ideology. Faith in the power and qualities of literacy is itself socially learnt and is not an adequate tool with which to embark on a description of its practice.

(autônomas), e nessa concepção objetiva-se proporcionar a ascensão econômica da população.

Assim, saber ler e escrever, nessa perspectiva, é dominar uma técnica, uma habilidade que deve ser usada em toda e qualquer situação, pois é um saber autônomo, independente do contexto. Os que não dominam essas habilidades são vistos como incompetentes, analfabetos e até mesmo com problemas cognitivos. O estudioso critica tal modelo ao ponderar que, nessa abordagem, uma classe social e cultural impõe suas concepções de letramento sobre as outras.

Como alternativa a esse modelo autônomo de letramento, Street (1984 e 2003) apresenta o modelo ideológico, que é culturalmente sensível. Segundo o autor, o letramento é visto como uma prática social e não uma técnica ou habilidade neutra que depende exclusivamente do indivíduo. Nessa perspectiva, é impossível separar práticas de letramento das estruturas culturais e de poder da sociedade. Nesse sentido, letramento nunca é algo neutro e está repleto de ideologia e política.

Dessa forma, Street (2003) aponta para a importância de se reconhecer os letramentos múltiplos que variam no tempo, no espaço, de acordo com as relações de poder exercidas socialmente. Isso nos leva a crer que sempre haverá letramentos dominantes, marginalizados e de resistência.

Embora essas reflexões datem da década de 80, portanto, há mais de trinta anos, elas ainda estão longe de serem consensuais e até mesmo disseminadas tanto em intuições de ensino, como em outras agências de letramento. O que vemos em alguns veículos midiáticos, por exemplo, é um retorno a um pensamento conservador, num viés do letramento autônomo.

O autor sintetiza seis características do modelo ideológico de letramento. A primeira diz respeito ao fato de que o letramento depende das instituições sociais nas quais está inserido. A segunda característica indica que o letramento está envolto de significados políticos e ideológicos, por isso não é autônomo. Já a terceira corrobora a pressuposição do caráter situado do letramento, pois “as particularidades das práticas de leitura e escrita, que são ensinadas em qualquer contexto, dependem dos aspectos da estrutura social e do papel das instituições de ensino” (STREET, 1984, p. 8 12

).

Na quarta proposição, o autor defende que os processos pelos quais se dá o aprendizado da leitura e da escrita norteiam o significado do letramento para os profissionais da educação. O quinto apontamento de Street (1984) sobre o modelo ideológico refere-se à

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The particular practices of reading and writing that are taught in any context depend upon such aspects of social structure as stratification and role of educational institutions.

necessidade do reconhecimento dos letramentos múltiplos e não apenas do letramento escolar, aquele que ainda é legitimado socialmente.

Por fim, na sexta característica, Street (1984) afirma que “os teóricos que tendem para o modelo ideológico e, por conseguinte, afastam-se do modelo autônomo, pautam suas análises pela natureza política e ideológica das práticas e letramento” (STREET, 1984, p.813). Ou seja, o autor reforça a ideia de que as pesquisas sobre letramento devem ter um caráter eminentemente sociocultural, histórico, político e ideológico.

Como desdobramento das reflexões apresentadas acima, surgem os termos práticas e eventos de letramento, discutidos à frente.

No documento laurasilveirabotelho (páginas 35-38)