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As especificidades das pesquisas qualitativas num contexto on-line

A pesquisa foi organizada em três etapas: a) Observação nos canais de três vlogueiras negras; b) Entrevistas com vlogueiras e c) Análise de conteúdos disponíveis nos canais do YouTube das interlocutoras de pesquisa. Simultaneamente a essas etapas, seguiu-se um aprofundamento teórico sobre os temas emergentes durante a pesquisa (ativismo em rede,

processos formativos, pedagogia decolonial). Como principais técnicas de pesquisa, foram utilizadas a entrevista e a observação, já que, na observação participante, “a entrevista é utilizada para recolher dados descritivos na linguagem do próprio sujeito, permitindo ao investigador desenvolver intuitivamente uma ideia sobre a maneira como os sujeitos interpretam aspectos do mundo” (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 134).

A pesquisa não se configurou como uma etnografia, porém dialogou com os estudos no campo da etnografia no ciberespaço para produzir reflexões sobre as especificidades do fazer etnográfico nos ambientes on-line. Assim, neste capítulo, apresenta-se como a abordagem metodológica dialoga com o fazer epistemológico da pesquisa; descrevem-seios procedimentos metodológicos adotados durante as etapas da pesquisa, bem como o início da entrada no campo.

Ao desenvolver este trabalho como mulher negra que iniciou a pesquisa logo após o processo de transição capilar, o fazer científico não foi neutro e distante, mas interessado e próximo, bem como orientado pelo rigor metodológico da abordagem qualitativa, que considera a pesquisa constituída na complexidade de seres humanos pensando com e sobre seres humanos. Pesquisas qualitativas são feitas por “sujeitos, existências que, para todos os fins práticos, produzem etnométodos, maneiras de compreender a vida e solucionar suas problemáticas” (MACEDO; PIMENTEL; GALEFFI, 2009, p. 95).

Para compreender o fazer autoral de mulheres negras no YouTube, me colquei no papel de habitante e estrangeira, visto que navegava nessa plataforma como mulher negra telespectadora e contemporaneamente não ocupava o lugar de vlogueira. A negociação da entrada no campo envolveu um processo de aproximação que exigiu persistência, flexibilidade e criatividade (BOGDAN; BIKLEN, 1994). A aceitação dos interlocutores; obtenção de apoio de indivíduos- chaves; inserção nas discussões naturais dos participantes da pesquisa; foram processos fundamentais para o alcance da colaboração ativa das pessoas envolvidas.

No papel de pesquisadora implicada com seu campo de pesquisa, a reflexividade sobre a prática de pesquisa e a análise de informações incluiu um movimento que não excluiu a subjetividade, mas a considerou num processo auto-reflexivo com o objetivo de compreender a complexidade da realidade em que estava inserida. Dessa maneira, a reflexividade ofereceu à pesquisa uma subjetividade e objetividade nas relações com as informantes, na própria escrita do texto, etc. (CLIFFORD, 2008).

Alguns elementos balizaram o processo de reflexão, como nossa própria identificação de mulher negra com as temáticas propostas pelas ativistas; o tipo de relação estabelecido com as participantes da pesquisa, entre outros aspectos. A reflexividade, fundamental para uma pesquisa em que o envolvimento da pesquisadora com a temática é intenso, foi elemento essencial para que a subjetividade contida em nosso olhar de mulher negra e espectadora dos canais de YouTube das

interlocutoras, pudesse abrir um espaço de coexistência com uma objetividade posta sobre a relação surgida com as informações acessadas no campo.

No olhar interpretativo baseado fundamentalmente na perspectiva das vlogueiras, percebeu-se na etnografia do ciberespaço uma referência metodológica complementar importante para orientar a nossa compreensão sobre as autorias dessas mulheres negras, ainda que não tenha desenvolvido uma etnografia. A relação com as participantes da pesquisa e a imersão no universo dos seus vlogs trouxeram especificidades para o campo no que diz respeito ao próprio ambiente da pesquisa: o ciberespaço.

Esta pesquisa centra-se no estudo do ativismo articulado por três mulheres negras, em seus canais no YouTube. Para o estudo qualitativo nesses espaços, foi necessária a busca por referências que contribuíssem para a compreensão da pesquisa no ciberespaço. Nos estudos realizados para as escolhas dos caminhos metodológicos, foram identificadas três perspectivas diferentes sobre o fazer etnográfico no contexto da cibercultura: a Etnografia virtual (HINE, 2004); Netnografia (KOZINETS, 2014); e Etnografia no ciberespaço (RIFIOTIS, 2010; SEGATA; RIFIOTIS, 2016).

A antropologia no ciberespaço é alvo de muitos debates que envolvem desafios e possibilidades e revelaram, segundo Rifiotis (2016), um movimento pendular, ainda hoje presente no campo de desconfiança sobre as possibilidades da pesquisa antropológica nesse contexto, especialmente sobre a etnografia. Essas questões envolvem a especificidade e validade da observação de campo on-line, em contraste com as pesquisas realizadas com contatos face a face (off-line), por exemplo.

Para o autor, essas questões advinham das dificuldades de produzir uma reflexão incorporando a mediação técnica na etnografia, um dos passos necessários para o campo da etnografia no ciberespaço. Dessa forma, as referências foram buscadas nesse campo teórico- metodológico e consideradas, como elementos fundamentais, a descrição e problematização das especificidades no processo de busca pelas informações e da observação nos ambientes on-line e

off-line (FRAGOSO et. al., 2011, p. 172). Tais questões, vivenciadas no início da pesquisa, são

apresentadas a seguir.

Compreender as especificidades da pesquisa no contexto do ciberespaço revelou alguns desafios quanto à imersão no universo das vlogueiras, ao considerar a dispersão geográfica que possivelmente traria dificuldades em perceber como as dimensões de estar on-line e off-line se somam e entrecruzam na articulação do ativismo das vlogueiras. Assim, questões como: De que forma os eventos off-line interferem nas interações on-line? Como compreender um fazer ativista que inclui ações on-line e off-line – no caso das vlogueiras, os “encontrinhos” presenciais esporádicos entre elas? De que maneira as vivências em diversas comunidades (universidade,

movimentos sociais, grupos religiosos, entre outros) interferem na autoria ativista dessas mulheres?

Além disso, questões como dar conta de uma observação que considere a interseção das ações das vlogueiras em diferentes redes sociais (Instagram, Facebook, etc.), foram tratadas e resolvidas à medida que foi sendo delimitado o objeto – quais aspectos do ativismo das mulheres seriam pesquisados e em quais espaços – ainda que diante da complexidade dessas práticas, no que diz respeito aos espaços que elas ocupavam e pelos quais transitavam.

No ciberespaço, há internamente uma territorialidade específica, em que uma pessoa pode estar on-line em diferentes sites de redes sociais simultaneamente e ainda ocupar espaços intersticiais11 (SANTAELLA, 2007) que permitem um fluxo informacional contínuo entre o espaço urbano e o ciberespaço. Assim, foram consideradas algumas das problematizações pontuadas por Rifiotis (2016, 2010) sobre a pesquisa etnográfica no contexto do ciberespaço, como: especificidade e validade da observação de campo on-line; reflexão sobre a mediação técnica na etnografia; a dupla condição de ser nativa e pesquisadora.

Sobre a especificidade e validade da observação de campo on-line, um dos principais questionamentos surgidos nos estudos etnográficos do ciberespaço refere-se à necessidade da relação face a face, como uma prática importante para a metodologia, que questiona a veracidade das informações acessadas nesse ambiente, ainda que as relações face a face não garantam a fidedignidade das informações obtidas.

Neste estudo, como será detalhado a seguir, a fim de minimizar os efeitos da distância geográfica entre a pesquisadora e as interlocutoras, as entrevistas foram feitas on-line e estabelecidas interações textuais via redes sociais, como WhatsApp e Instagram, com as participantes da pesquisa. No entanto, não foi considerada que a interação on-line por si só tenha trazido riscos à veracidade das informações, ou menos confiabilidade na interação face a face, pois seres humanos podem manipular informações nas diferentes situações de interação. Porém, uma relação estabelecida majoritariamente via redes sociais, com as participantes, tem especificidades observadas e descritas ao longo da pesquisa.

A necessidade de incluir uma reflexão sobre a mediação técnica na etnografia no ciberespaço, apontada por Rifiotis (2016), foi considerada no processo de observação das trocas comunicacionais feitas entre as vlogueiras e as seguidoras dos canais, para perceber como a interface e seus mecanismos de funcionamento interferem na experiência ativista das vlogueiras. Como os botões de like ou dislike impulsionaram ou não a difusão do conteúdo que produziam e a

11 Os espaços intersticiais sociais conectados são definidos pelos usos das interfaces portáteis por interatores

em movimento pela cidade - nós das redes. Nesse contexto comunicacional, os contatos remotos podem acompanhar o interator nas suas peregrinações urbanas. novos fluxos de informação e conversação são criados por meio das tecnologias de comunicação móvel.

importância deles para a autoria ativista dessas mulheres; como os mecanismos de buscas podem interferir na prática autoral e qual a sua relação com as questões de gênero e raça, no YouTube; como o número de comentários (possibilitados pela interface do canal) contribuiu ou não com as trocas estabelecidas entre as vlogueiras e suas seguidoras, por exemplo.

Durante os primeiros meses do estudo, acreditava que, para compreender a prática das vlogueiras, seria necessário criar um canal e imergir naquela cultura em primeira pessoa, nativa. No entanto, com o passar do tempo, ocupar o espaço do YouTube, dessa forma, trouxe implicações para o meu trabalho, considerando as imbricações entre minha história de vida e meu lugar de pesquisadora. A decisão por não habitar esse espaço como vlogueira não se deveu a uma busca por neutralizar as subjetividades dessa prática, mas à necessidade de minimizar essas interferências que poderiam comprometer alguns aspectos do meu trabalho de pesquisadora no desenvolvimento desta tese.

Essas reflexões foram vivenciadas no processo de aproximação com o campo, iniciado no mês de janeiro de 2016, por meio do qual pude identificar questões metodológicas que dizem respeito à natureza do fenômeno estudado. Foram eles:

Pesquisar um fenômeno que possui uma territorialidade entre estar off-line e on-line, visto que o fazer ativista dessas vlogueiras também envolvia a participação em encontros presenciais com seus “seguidores” e com outras vlogueiras. Para compreender os interstícios dessa prática, participei de um encontro presencial que reuniu duas das vlogueiras participantes da pesquisa em Salvador/BA.

A dispersão geográfica entre a pesquisadora e as informantes. O fato de que as vlogueiras estavam localizadas em diferentes cidades do Brasil, implicava a realização de entrevistas presenciais que demandaria significativo investimento financeiro relativo a transporte e hospedagem, caso ficasse evidente a necessidade de observar as participantes em seu contexto cotidiano. A fim de diminuir essa distância e criar situações efetivas de diálogo, durante o processo de aproximação da pesquisa de campo, foram feitas entrevistas on-line via chamadas de telefone e mensagens pela plataforma de comunicação Hangouts, participação em um “encontrinho” com Luciellen Assis e Gabi Oliveira, e entrevista presencial com Ana Paula Xongani (em dezembro de 2017).

Neste trabalho, os materiais de pesquisa abrangem os vídeos postados pelas vlogueiras em seus respectivos canais e os comentários relacionados, assim como materiais postados em outras redes sociais, como Facebook e Instagram, relacionados com as trocas comunicacionais no canal do YouTube para elucidar questões relevantes para esta pesquisa (enquetes sobre as temáticas dos vídeos, comentários sobre conteúdos dos vídeos em outras redes sociais).

Diante da complexidade do estudo de fenômenos on-line e off-line, que associam agência de actantes humanos e não humanos, entre outras especificidades, foram adotados dispositivos de pesquisa que auxiliaram na compreensão do fazer autoral de três vlogueiras negras no YouTube, com técnicas de pesquisa a observação; tomada de notas de campo; entrevista semiestruturada; e coleta de artefatos disponibilizados na interface do YouTube (prints de segmentos das páginas). Essa escolha foi orientada pela compreensão de que a internet é um artefato cultural (GIROUX; MCLAREN, 1995), e como tal não é possível analisar os âmbitos on-line e off-line separadamente.

A observação serviu de base para documentar as trocas comunicativas e a ação política envolvendo as vlogueiras em seus canais do YouTube. A técnica de entrevista instrumentalizou a busca, por permitir compreender como se estruturava o ativismo protagonizado pelas vlogueiras e contribuiu, ao longo da pesquisa, para um diálogo sobre as suas práticas como vlogueiras negras.