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1.2 Pesquisadora negra no campo da cibercultura: implicações e trajetórias

1.2.3 A internet “branca” e o racismo

Com esta pesquisa, inscrevo em minha trajetória de pesquisadora uma demarcação racial que advém do aprofundamento do olhar sobre o mundo proveniente da experiência vivida que hoje perpassa também pelas questões étnico-raciais. Hoje atuo como pesquisadora implicada em estudos sobre educação e cibercultura na interface com as discussões sobre relações étnico-raciais e de gênero.

Essa identificação manifestou-se durante a participação em um evento denominado Encrespa Geral, no qual um ativista do Movimento Negro no Ceará, Bernardo Lamparina, foi palestrante do evento. Em conversa inicial sobre meu desejo de pesquisar a ação de mulheres negras no YouTube, o estudioso (nascido em 1953) colocou sua primeira pontuação sobre o meu futuro trabalho: “Tatiana, em primeiro lugar, você tem que entender que a internet é branca!!!”.

A sua fala, hoje tão óbvia, causou-me o estranhamento inicial da descoberta de algo tão evidente mas que parecia não impactar, aos meus olhos. Os primeiros questionamentos concentraram-se sobre a ideia de que aquela afirmação poderia invalidar o aspecto político do fazer de mulheres negras no YouTube. Depois, concentrei minhas interrogações sobre a maneira como o racismo poderia impactar nas práticas comunicacionais e políticas daquelas mulheres.

As interrogações tornaram-se parte do olhar de pesquisadora que se formava, seguidas das constatações construídas por meio da minha experiência nos buscadores do Google Pesquisa e do próprio YouTube. Em pesquisas nessas plataformas, sobressaiu que a ideia do homem branco europeu universal constava no funcionamento dos códigos, ainda que não fosse possível compreender com base em qual lógica operavam.

A ideia do branco como padrão normativo está no contraponto da experiência de mulheres negras, das quais é exigido, o tempo todo, que assim se entendam classificadas no mundo. Na internet, não é diferente. Mulheres negras, em suas buscas, necessitam usar frequentemente o marcador de gênero e raça, para encontrar conteúdos que contemplem a sua identidade racial.

Ao inserir, por exemplo, a palavra “maquiagem”, no buscador Google, é notável a sub- representação de mulheres negras. Entre as 42 primeiras imagens que aparecem como resultado de busca, apenas uma é de mulher negra. Ainda assim, a imagem carrega um tom de ridicularização sobre essa mulher, como é possível perceber nas Figuras 5 e 6.9

Figura 5 – Imagens com representação de racismo

Fonte: Buscador Google. Acesso em: nov. 2018.

Imagem 6 – Mulher negra e maquiagem

Fonte: Buscador Google. Acesso em: nov. 2018.

Essas experiências revelam o reforço de imagens e representações negativas que interferem nos processos de identificação individual e construção da identidade coletiva. A interiorização desses processos pode levar à alienação e negação da própria natureza humana para os que nasceram com pele escura, oferecendo-lhes como único caminho de redenção o embranquecimento físico e o cultural, trilhado pela miscigenação e mestiçagem cultural (MUNANGA, 2012).

Nesse sentido, a maioria da população brasileira, negra e branca, introjetou o ideal do branqueamento, que inconsciente não apenas interfere no processo de construção da identidade do ser negro individual e coletivo, como também na formação da autoestima geralmente baixíssima da população negra e na supervalorização idealizada da população branca. (MUNANGA, 2012, p. 11).

Outras pesquisas no YouTube demonstraram, por exemplo, que entre os 25 primeiros vídeos que aparecem no buscador Google sobre maquiagem, apenas um tem a autoria de uma mulher negra. O título do vídeo possui um marcador racial, comumente utilizado por produtoras

de conteúdo para internet, bem como pelas internautas negras, em busca de conteúdos com essa especificidade.

Sem esses marcadores, dificilmente seriam encontrados conteúdos adequados ao seu perfil, assim como as produtoras de conteúdo necessitam criar marcadores para facilitar a difusão do seu vídeo entre as pessoas interessadas por seus conteúdos. No caso da vlogueira Tamiris Sindice, foi importante demarcar no título do vídeo. Entretanto, veremos, neste trabalho, que os marcadores raciais nos títulos dos conteúdos nem sempre proporcionam a visibilidade dos vídeos (Fig. 7).

Figura 7 – Imagens de páginas de vídeo sobre maquiagem com autoria de mulher negra

Fonte: Buscador do YouTube. Acesso em 6 mar 2018:

Essas buscas remeteram à palestra-performance de Grada Kilomba, no MIT-SP, em 6 de março de 2016, quando apontou como a sua característica de homem branco o coloca no topo do poder em suas relações, visto que não é chamado a refletir sobre ser homem branco, ou seja, não necessita passar por um processo cotidiano de racialização. Sobre as interseções de demarcações de gênero e raça, a autora descreve: “Uma mulher negra diz que ela é uma mulher negra. Uma mulher branca diz que ela é uma mulher. Um homem branco diz que é uma pessoa”.

A palestrante ainda destacou que a branquitude, assim como outras identidades que estão no poder, não precisa ser nomeada diariamente.

[A branquitude] É uma identidade que se coloca no centro de tudo, mas tal centralidade não é reconhecida como relevante, porque é apresentada como sinônimo de humano. […] E acreditem em mim, não existe uma posição mais privilegiada do que ser apenas a norma e a normalidade. (KILOMBA, 2016).

A ideia do branco como modelo universal da humanidade é tratada nos estudos sobre branquitude que apontam o branqueamento como um processo inventado e mantido pela elite branca, embora considerado, pela mesma elite, como um problema originado entre negros, descontentes e desconfortáveis com a sua condição racial. Porém, o pacto narcísico entre os brancos, ilustrado no modo de funcionamento dos buscadores, revela como a elite faz uma apropriação simbólica que fortalece a autoestima e o autoconceito do grupo branco em detrimento dos demais, e essa apropriação acaba por legitimar suas supremacias econômica, política e social (BENTO, 2012). O sujeito universal branco está presente nos mecanismos de busca da internet, ainda que não revelem como operam os algoritmos que o gerenciam.

Em seu livro, Algoritmos de Opressão: Como Mecanismos de Busca Reforçam o Racismo, Noble (2018) apresenta os resultados de ampla pesquisa sobre algoritmos e representação de mulheres e de mulheres negras no mecanismo de busca do Google. A autora usou telas reais do recurso “autocompletar” do buscador para mostrar como sexismo e misoginia estão presentes nas sugestões do buscador.

A autora utilizou termos como black girls ou why are Black people so e revela como os mecanismos de busca privilegiam pontos de vista focados em figuras de poder. A hiperssexualização de mulheres negras nos resultados, por exemplo, é fruto de padrões de busca por conteúdos sexuais e pornográficos ligados a mulheres negras. A autora associa os problemas ao uso puramente comercial do Google, bem como à falta de representatividade entre os seus funcionários, aqueles que pensam e operacionalizam a plataforma.

Essas e outras evidências revelam que, ao contrário da crença tecnocrática de que a eliminação do fator humano traria mais clareza e objetividade a processos sensíveis conduzidos por máquinas, observa-se a reprodução de antigos sistemas de desigualdades na relação entre os atores humanos e não humanos. Diante disso, é necessário lançar um olhar para esses fenômenos que considera a identidade étnico-racial como um elemento importante na análise de experiências com a internet.