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3 MULHERES NEGRAS E ATIVISMOS EM REDE

3.2 Apropriação da técnica para um fazer político

3.3.1 Autoria em rede

Como elemento disparador, apresentamos uma indagação foucaultiana sobre nossos fragmentos de escrita: “Mas quando, no interior de uma caderneta repleta de aforismos, encontra- se uma referenda, a indicação de um encontro ou de um endereço, uma nota de lavanderia: obra, ou não? Mas, por que não?” (FOUCAULT, 2001, p. 273).

Segundo Foucault (2001), o autor não é exatamente nem o proprietário nem o responsável por seus textos; não é nem o produtor nem o inventor deles. A noção do autor, porém, constitui o momento crucial da individualização na história das ideias, dos conhecimentos, das literaturas, e também na história da filosofia e das ciências. Mesmo hoje, quando se faz a história de um conceito, de um gênero literário, ou de um tipo de filosofia, as unidades autor e obra são consideradas fundamentais.

Foucault (2001, p. 277) examina a relação do texto com o autor e a maneira com que o texto aponta para essa figura que lhe é exterior e anterior, o autor:

O nome do autor funciona para caracterizar um certo modo ser do discurso: para um discurso, o fato de haver um nome de autor, o fato de que se possa dizer "isso foi escrito por tal pessoa", ou "tal pessoa é o autor disso", indica que esse discurso não é uma palavra cotidiana, indiferente, uma palavra que se afasta, que flutua e passa, uma palavra imediatamente consumível, mas que se trata de uma palavra que deve ser recebida de uma certa maneira e que deve, em uma dada cultura, receber um certo status.

Para o filósofo, o nome do autor manifesta a ocorrência de um certo conjunto de discursos, e lhe confere um status no interior de uma sociedade e uma cultura. “A função-autor é, portanto, característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade” (FOUCAULT, 2001, p. 278).

Foucault (2001) limita-se à figura do autor unicamente como produtor de um texto, de um livro, ou de uma obra, ao qual se pode legitimamente atribuir a autoria. Na ordem do discurso, pode-se ser o autor de bem mais do que um livro - de uma teoria, uma tradição, uma disciplina, dentro das quais outros livros e autores poderão, por sua vez, se colocar.

O filósofo considera também que as modificações históricas não exigirão que a função autor permaneça constante em sua forma, complexidade, e mesmo existência. Segundo ele, “pode- se imaginar uma cultura em que os discursos circulassem e fossem aceitos sem que a função autor jamais aparecesse” (FOUCALT, 2001, p. 292). E apresenta uma demanda:

Talvez seja o momento de estudar os discursos não mais apenas em seu valor expressivo ou suas transformações formais, mas nas modalidades de sua existência: os modos de circulação, de valorização, de atribuição, de apropriação dos discursos variam de acordo com cada cultura e se modificam no interior de cada uma; a maneira com que eles se articulam nas relações sociais se decifra de modo, parece-me, mais direto no jogo da função-autor e em suas modificações do que nos temas ou nos conceitos que eles operam. (FOUCALT, 2001, p. 291).

A influência da cultura sobre a função autor é perceptível em tempos de habitação do ciberespaço. Enquanto o texto impresso distanciava o autor de seu leitor, tornando suas palavras dificilmente contestáveis, ou passíveis de alteração, diferentemente do texto digital: maleável, mutável, copiável, fluido. A cópia impressa estendia e ampliava a autoridade criada e adquirida, pautada na organização e efetivação de um mercado editorial que desfrutava dessas produções únicas, imutáveis, inquestionáveis.

Essa fluidez no consumo e na produção de textos e obras proporciona a vivência de um dilúvio informacional (LÉVY, 1999), que provoca a necessidade de seleção de tudo que se produz já que, como afirma Lévy, não voltaremos aos tempos enciclopédicos, pois atravessamos o momento de ruptura e de abertura do polo emissor.

Sibilia (2008) atribui esse cenário à cultura do espetáculo, em que se percebe uma alteração nas subjetividades modernas; o caráter passa de um processo intro-dirigido (de dentro) a alter-dirigido (para fora). No primeiro, há uma solidez interna ligada à estabilidade e, no segundo, a densa base da interioridade dá lugar à autoestilização, ou seja, o efeito que se pode provocar nos outros. A autora confere a esse processo uma relação estreita com as práticas de autovendagem vivenciadas no capitalismo. Essa mudança provoca uma redefinição do eu, pela qual visualiza-se uma busca desesperada pela aprovação alheia.

A autora compreende que é inegável a existência de variadas críticas em relação à falta de competência literária no ciberespaço e afirma: “Apesar das significativas exceções que, sem dúvida existem, uma porção considerável do que se produz nestes espaços costuma ser, no máximo inócuo do ponto de vista estético” (SIBILIA, 2008, p. 236), e apenas uma das mais perfeitas formas do espetáculo em que o leitor, ao comentar blogs, por exemplo, tem uma única função: confirmar a subjetividade do autor, que só pode se constituir diante do espelho legitimador do olhar alheio.

Em contrapartida, há autores que compreendem a autoria no ciberespaço como ato interativo, colaborativo e em rede. Na historicidade da autoria podem ser observados significativos deslocamentos e seguidas transformações, especialmente no que diz respeito à prática social da escrita. No entanto, novas práticas de escrita e leitura, estimuladas pelo advento das redes eletrônicas de comunicação vêm desestabilizando de fato e na prática o entendimento sobre a autoria (MARTINS, 2014).

As possibilidades de autoria por meio dos dispositivos móveis, seja por textos, imagens, vídeos, remetem o sujeito ao seu lugar de criação. Santos (2012, s/p) argumenta que “a comunicação móvel e ubíqua pode potencializar a autoria em rede, apropriando-nos, ao mesmo tempo que podemos ser protagonistas, de eventos, fatos e vivências nos, dos e com os cotidianos no ciberespaço em movimento no espaço urbano”.

Nesse contexto, “Cada um de nós constrói a própria mitologia pessoal, a partir de pedaços e fragmentos de informações extraídos do fluxo midiático e transformados em recursos através dos quais compreendemos nossa vida cotidiana” (JENKINS, 2009, p. 30). É necessário explorar as mudanças que o uso de telas pequenas pode ter nos hábitos de leitura, modos de escrever e na linguagem narrativa que perpassam nossos processos criativos, autorais.