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4 MULHERES NEGRAS E PROCESSOS FORMATIVOS DECOLONIAIS EM REDE

4.1 Mulheres negras e decolonização

4.1.1. Decolonização do conhecimento

Pensar as identidades da mulher negra brasileira hoje requer um olhar para a formação identitária que remonta aspectos da história de colonização do País. Neste trabalho, não compreendemos identidade como uma dimensão única e estável, mas que existe heterogeneidade quando se trata de mulheres negras – classe social, orientação sexual, identificação de gênero, cor, textura de cabelo, profissões, acesso a bens materiais e de consumo, etc. Porém, existem elementos comuns de identificação reconhecidos nas histórias de vida dessas mulheres que revelam que o pensamento colonial ainda se mantém em nossas relações sociais: acesso à educação, saúde, segurança; relações de trabalho e afetivas; autoestima, etc.

Portanto, por entender que a produção de identidades se constitui na relação com os outros e com o meio sociocultural, e definida historicamente e não só biologicamente (HALL, 2001), está ligada a sistemas de representação e possui estreitas conexões com relações de poder (SILVA, 2000), elucidaremos possíveis relações sobre como o pensamento colonial trouxe consequências para a produção e difusão do conhecimento entre mulheres negras e como isso se reflete nas

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Disponível em: http://www.criola.org.br/wp-content/uploads/2016/09/Dossie-Mulheres-Negras-PT- WEB3.pdf. Acessado em: 03 de mar.ço de 2017.

diferentes formas de exclusão numa sociedade capitalista. Para isso, inicia-se pela compreensão do pensamento moderno ocidental que estruturou e estrutura as relações sociais no Ocidente.

Primeiramente, é necessário compreender que o pensamento moderno ocidental é, segundo Boaventura Santos (2010), abissal, cujas características principais são produzir e radicalizar distinções visíveis e invisíveis entre dois lados de uma linha e a impossibilidade da copresença dos dois lados. As distinções invisíveis são estabelecidas por meio da divisão da realidade em dois universos distintos: deste lado da linha e do outro lado da linha, em que o outro lado da linha não existe sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível e é excluído de forma radical, pois permanece exterior àquele universo. Um exemplo de tais distinções é a separação entre as sociedades metropolitanas e os territórios coloniais, países desenvolvidos e subdesenvolvidos.

As principais manifestações do pensamento abissal estão expressas no conhecimento e direito modernos. Na dimensão do conhecimento, temos a separação entre verdadeiro e falso e, no direito, entre legal e ilegal. Essas separações orientam e regulam a nossa vida cotidiana de diferentes formas. Neste trabalho, focaremos no conhecimento, primeira expressão do pensamento abissal moderno que consiste na concessão à ciência moderna do monopólio da distinção entre o verdadeiro e o falso, o que criou uma disputa epistemológica entre as formas científica e não científica de verdade.

A negação radical da coexistência entre as diferentes formas de conhecimento provocou um processo de apropriação que envolveu incorporação, cooptação e assimilação dos conhecimentos dos povos colonizados (SANTOS, 2010). De acordo com Gomes (2010), nas regiões mais periféricas, o encontro entre os saberes hegemônicos e não hegemônicos é mais desigual e violento. Essa negação de uma parte da sociedade, segundo Santos (2010), criou condições para a outra parte se afirmar como universal. Essa relação abissal expressa nas formas violentas de dominação colonial foi concretizada por meio da destruição física, cultural, material e humana dos povos dominados. Violência posta na proibição do uso de línguas próprias em espaços públicos; conversão e destruição de símbolos e lugares de culto; adoção forçada de nomes cristãos; e todas as formas de discriminação cultural e racial.

Para Santos (2010), as colônias representam um modelo de exclusão radical que permanece atualmente no pensamento e em práticas modernas ocidentais, tal como aconteceu no ciclo colonial – sistema prisional, trabalho infantil, novas formas de escravatura, etc. As linhas abissais continuam a estruturar o conhecimento e demonstram como a injustiça global está, dessa forma, associada à injustiça cognitiva.

Essa linha abissal, expressa nas formas de circulação da informação, revela como a sociedade moderna é centrada na identidade do homem branco europeu/americano cujas formas

de produzir conhecimento estão centradas na ciência moderna, e tem excluído outros atores na produção do conhecimento e outras formas de produzi-lo.

Conforme afirma Lyotard (2011), o saber em geral não se reduz à ciência, nem mesmo ao conhecimento, que é o conjunto de enunciados que descrevem objetos e podem ser declarados verdadeiros ou falsos. A ciência seria um subconjunto do conhecimento, feita de enunciados denotativos, em que o objeto deve ser observável explicitamente e o enunciado julgado como linguagem pertinente, ou não, por experts. Lyotard defende, portanto, a mudança no estatuto do saber e mostra que a ciência existe enquanto discurso legitimado, mas é somente mais um discurso.

O saber científico coexiste com outros saberes, como os narrativos, que possuem um modelo ligado às ideias de equilíbrio interior e de convivialidade. O saber envolve, portanto, saberes como saber-fazer, saber-viver, saber-escutar, nos quais não existe aplicação de um critério de verdade científica. Saber, portanto, é aquilo que torna alguém capaz de proferir bons enunciados denotativos, mas também avaliativos, prescritivos; não privilegia os enunciados cognitivos em detrimento de outros; e envolve também se conhecer, decidir, avaliar, transformar (LYOTARD, 2011).

A modernidade, porém, instaurou uma concepção de conhecimento centrada no saber científico e em um rigor atingido por medições. As limitações dessa concepção abriram espaço para o reconhecimento de que a subjetividade humana não pode ser reduzida por medições. Na lógica moderna, conhecimento refere-se ao processo de instituição de leis abstratas para explicar a realidade exterior, ao mesmo tempo em que reduz e simplifica a realidade a estruturas abstratas que são concebidas de maneira fragmentada e quantitativa (MORIN, 2003).

Autores como Boaventura e Santos (2010), no entanto, apresentam um movimento de transformação epistemológica e criador de alternativas, ao que chamam de crise do paradigma dominante. Esse processo é resultado da identificação de limites e insuficiências do paradigma científico moderno, que norteou predominantemente a produção de conhecimento humano sobre a natureza e a sociedade, no ocidente.

Conforme afirmam Morin (2003) e Ardoino (2012), vivemos em um mundo complexo, no qual não cabe mais os princípios outrora adotados pela ciência moderna, caracterizada pela fragmentação, redução e homogeneização do conhecimento. É emergencial a necessidade de novos referenciais, capazes de oferecer uma ótica plural e heterogênea que rompe a perspectiva disciplinar do conhecimento.

Além disso, o conhecimento produzido pela própria ciência moderna revela a existência de uma geopolítica do conhecimento por meio da qual é possível perceber que “[...] a ‘história’ do conhecimento é geo-historicamente marcada e também tem um valor e um lugar de ‘origem’. O

conhecimento não é abstrato e deslocado”108

(MIGNOLO, 2003, p. 1). Essa geopolítica do conhecimento consolidou-se, em parte, com o processo de colonialização dos povos das Américas, Ásia e África, durante o qual os colonialistas operavam uma imposição dos seus sistemas a essas populações. Para isso, foi necessário consolidar uma construção ideológica que permitisse afirmar a inferioridade de suas vítimas. Esse mecanismo ideológico que serviu para justificar toda a sorte de injustiças, orquestrou a ideia de uma cultura dominante, estruturada a partir da imposição da universalidade de sua civilização. A imposição da cultura imperialista passou, então, a ser transmitida por meio de diferentes formas, como a literatura, a arte e a educação (AGRA, 2013).

Grosfoguel (2016, p. 25) atribui o racismo/sexismo epistêmico da estrutura das universidades ocidentalizadas aos genocídios/epistemicídios contra muçulmanos, judeus, povos nativos das Américas, povos africanos, e mulheres europeias acusadas de bruxaria. Esses foram fundantes de uma estrutura epistêmica que inferioriza os conhecimentos produzidos por homens e mulheres que não ocupam esse lugar hegemônico. A legitimidade e o monopólio do conhecimento dos homens ocidentais têm gerado estruturas e instituições que produzem o racismo/sexismo epistêmico, e desqualificam outros conhecimentos e outras vozes críticas aos projetos imperiais/coloniais/patriarcais.

A dominação colonial e capitalista global constituiu-se também como uma dominação epistemológica que atribui aos dominados lugares de subalternidade. Nesse sentido, as formas de dominação da colonização se constituíram como um modelo de exclusão que permanece em nossa forma de pensar, em nossos conceitos básicos e nossas diretrizes fundamentais de operação do conhecimento das coisas (SANTOS, 2010).

No Brasil, as consequências da colonização conferiram aos saberes produzidos pelos povos nativos das américas e povos africanos um lugar de subalternidade e muitas vezes de invisibilidade. Nesse contexto, Munanga (2013) ressalta a necessidade de descolonização dos currículos no sentido de superação da visão eurocêntrica e abertura para o diálogo com as demais culturas que compõem a identidade nacional. O autor destaca que a proposta de descolonização não se constitui através de uma troca de centralidade, mas na busca pelo diálogo entre todas as culturas.

Os processos educacionais forjados fora das instituições de ensino, pelos movimentos sociais, por exemplo, têm se constituído como possibilidades de reinvenção no tratamento do conhecimento, ao difundir e valorizar saberes invisibilizados pelo currículo escolar. Os

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Tradução própria da autora para o texto: “La ‘historia’ del conocimiento está marcada geo-históricamente y además tiene un valor y un lugar de ‘origen’. El conocimiento no es abstracto y deslocalizado” (MIGNOLO, 2003, p. 1).

movimentos sociais têm disputado novas narrativas ao produzir, no seio das suas lutas, discursos contra-hegemônicos, em oposição às proposições homogeneizantes de sociedade e cultura. Historicamente, há exemplos de ações políticas que põem em questão o racismo e o sexismo de forma interseccional à classe e pensa como esses sistemas de opressões atingem as mulheres negras articulando formas de resistência.

No contexto da escravidão, as organizações de atividades religiosas, profanas e festivas; a formação de sociedades secretas ou públicas de mulheres a partir dos compromissos religiosos ou étnicos, geraram modelos organizativos que ainda hoje orientam ações políticas de negros e negras. Na atualidade, atuam em partidos; organizações negras mistas; associações culturais, universidades e grupos feministas; bem como em associações de moradores de favelas e bairros pobres; nas organizações de trabalhadoras e trabalhadores rurais e urbanos; nos grupos de mães na luta por melhor qualidade na educação pública; nos movimentos pela reforma e melhoria do sistema de saúde pública; nas articulações religiosas, tanto de matriz afro-brasileira quanto cristã e outras (WERNECK, 2005).

Em oposição às formas de exclusão, as ações políticas de mulheres negras de cunho antirracista pautam a necessidade de descolonização e apontam a necessidade de descentralizar o saber e poder centrados no discurso hegemônico masculino e branco, viabilizando novos olhares sobre a realidade que oprime os povos africanos e afrodescendentes. Dar visibilidade e respeitar as produções intelectual, artística, e política das mulheres negras significa uma busca pela superação de um sistema racista e sexista que marginaliza a mulher negra desde a sua estética até a sua produção intelectual e posição política. Nesse sentido, é necessário criar espaços formativos que contribuam para a descolonização de saberes e que proporcionem visibilidade às narrativas intelectuais e políticas de mulheres negras.

Ao explicitar o caráter educador do Movimento Negro, Gomes (2017) aponta a importância da sua trajetória no desenvolvimento de um pensamento que se coloca contra os processos de colonização e indaga qual é a primazia da interpretação e produção eurocentrada de mundo e do conhecimento científico. Para a autora, o percurso do Movimento Negro no Brasil constituiu narrativas que “questionam os processos de colonização do poder, do ser e do saber presentes na estrutura, no imaginário social e pedagógico latino-americanos e de outras regiões do mundo” (GOMES, 2017, p. 15-16).

Os saberes produzidos pela comunidade negra e sistematizados pelo Movimento Negro reconstrói identidades, traz indagações, ressignifica e politiza conceitos sobre si mesmo e a realidade social. Ao fazê-lo, propõe novas epistemologias, entendida por ela como toda noção ou ideia, refletida ou não, sobre as condições do que conta como conhecimento válido. Assim,

assume que as experiências sociais são constitutivas de vários conhecimentos, cada um com seus critérios de validade (SANTOS, 2010).

A autora sinaliza uma ampliação dessas narrativas, que adentram o espaço das redes sociais e produzem:

Essa juventude, principalmente as mulheres, realiza marchas do Orgulho Crespo, ações como o Encrespa Geral, eventos de empoderamento crespo, páginas específicas no Facebook, programas no YouTube, blogs e tutoriais de beleza negra. Compreendem como o corpo e o cabelo são importantes símbolos de construção da identidade. (GOMES, 2017, p. 76).

Nesse contexto, indagamos como as narrativas das três mulheres negras participantes da pesquisa constituem espaços formativos sobre identidade estética da mulher negra.