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As faces da violência: a narrativa da sedução e do “primitivismo”

A violência contra os povos indígenas na América do Sul, e especial- mente no Brasil, é recorrente quando falamos sobre o período colonial e as relações de trabalho nos séculos XVI, XVII e XVIII. Esse processo de coloniza- ção foi marcado por diversas atrocidades, e, na região sul do Brasil, esteve associado com a ocupação dos vales pela migração europeia na região, no século XIX (WITTMAN, 2007; SANTOS, 1973). Além disso, é durante esse processo que são criadas as milícias, os chamados bugreiros, e que se con- cretiza uma política nacional de extermínio (WITTMAN, 2007), como forma de liberação dos territórios do interior do país para o desenvolvimento da

agricultura (SANTOS, 1973). Nessas práticas, muitas mulheres indígenas e crianças eram sequestradas e levadas para instituições religiosas da região ou, ainda, no caso das crianças, estas poderiam ser adotadas por colonos alemães mais eminentes que buscavam provar a aptidão indígena para seu projeto civilizatório – como na história dramática de Korikrã, narrada por Wittman (2007) e Wolff (2003).

Apesar de as dúvidas sobre os indígenas possuírem ou não “alma” e de o questionamento acerca de sua “humanidade” (isto é, se poderiam ser considerados como seres igualmente humanos) se situarem principalmente nos séculos XVI e XVII, os estereótipos e preconceitos decorrentes dessas questões foram levados adiante na história, resultando, no século XX, em convicções sociais que incapacitavam os indígenas e os esvaziavam de suas capacidades humanas (LASMAR, 1999, p. 146).

A suposta incapacidade dos povos indígenas é parte do processo de construção de uma narrativa que define a vida dessas pessoas como “atra- sada” e “primitiva”, em oposição à “civilização” colonial, o que contribuiu para a reprodução da falsa ideia de que eles não ofereceram resistência à colonização, tida como “natural” e justificável. No caso das mulheres indíge- nas, esse processo foi ainda mais marcante, pois não apenas as privou da humanidade, como também as representava como “lascivas”, “sexualmente incontroláveis”, e, por isso, responsáveis pela aproximação entre indígenas e brancos (LASMAR, 1999, p. 147).

A posição das mulheres indígenas a partir de sua apropriação sexual por homens brancos é documentada em diversos contextos nacionais, mui- tas vezes sendo chamadas de “crime de sedução”. Como exemplo, podemos citar um ofício do chefe substituto da I.R/5 do SPI ao subdelegado regional em Mato Grosso, no dia 3 de novembro de 1966, em que informa sobre o crime de “sedução” sofrido pela adolescente indígena Caiuá Jussara, do Posto Indígena Benjamin Constant, e requer providências2.

Dezessete dias depois, em 21 de novembro de 1966, vemos um novo ofício do chefe substituto comunicando o desaparecimento da adolescente. A jovem Caiuá Jussara, de 14 anos de idade (presumidamente), teria desapa- recido da sede da Inspetoria Regional, após a denúncia de ter sido “seduzida” por Alaôr Fioravanti Duarte, encarregado do Posto Indígena Burití3.

O caso de Jussara não é único, assim como também não o é a posição de seu algoz. Os documentos analisados durante a pesquisa que baseia este capítulo revelam que os encarregados dos postos indígenas foram os

2  O ofício citado faz parte do Acervo SPI, disponibilizado no Acervo Arquivístico do Museu do Índio.

Disponível em: http://www.docvirt.com/docreader.net/MI_Arquivistico/82835. Acesso em: 8 out. 2018.

principais responsáveis pelas violências praticadas contra os indígenas. O abuso sexual desses inspetores sobre jovens e adultas indígenas se repetiu em diversos estados e reservas indígenas brasileiras, sendo normalmente atrelado a outras formas de violência, como espancamento, tortura, assas- sinato e desaparecimento.

Exemplos disso são os casos de funcionários do SPI denunciados no Relatório Figueiredo. Boanerges Fagundes de Oliveira, acusado de “sedu- ção” de mulheres indígenas na Ilha do Bananal, em Tocantins, também foi considerado suspeito por incitação de suicídio de uma funcionária, além de roubo e embriaguez, dentre outros crimes4. Djalma Mongenot foi acusado de “defloramento” da indígena Terena, do Posto Indígena Ipegue, em Campo Grande, Mato Grosso5.

Há ainda o caso do funcionário Flávio de Abreu, que, dentre seus vários crimes, destacam-se sequestros, cárcere privado e torturas, chegando a forçar indígenas a espancarem suas próprias mães e a trocar uma mulher indígena por um fogão de barro6. Chamam atenção também as práticas de uma funcionária do SPI, Elita Ferreira Simões, acusada de espancar duas mulheres indígenas e de ser responsável pelo desaparecimento de uma delas no Posto Indígena Vanuíre, em Campo Grande, Mato Grosso7.

Os crimes de estupro e rapto eram frequentes contra as mulheres indígenas, que também não escapavam das sessões de espancamento e tortura, como documentado em 20 de janeiro de 1967, no Relatório da Delegacia Regional de Pernambuco, que narra o espancamento de indígenas por parte de policiais em Petrolândia. No documento, constam as agressões por parte dos policiais às mulheres indígenas, dentre elas uma gestante8.

No Sul, também foi intensa a violência praticada por funcionários do SPI nas terras indígenas, anteriormente designadas reservas. Um dos casos mais marcantes é o de Eduardo Hoerhan, funcionário do SPI que fundou a reserva Ibirama-Xokleng, em 1914. Seus atos de violência contra mulheres e homens Laklãnõ Xokleng foram descritos por diversos autores, como Wittman (2007) e Santos (1973) e, mais recentemente, pelos próprios indígenas, no documentário “Aqueles que contam histórias” (2014), em que são trazidas à tona denúncias sobre Hoerhan e suas ações, como, por exemplo, a prática de treinar tiros com alvos humanos vivos.

4  Relatório Figueiredo. Processo n.º 4.483/68. v. XX. Fls. 4930-4931. 5  Relatório Figueiredo. Processo n.º 4.483/68. v. XX. Fl. 4934. 6  Relatório Figueiredo. Processo n.º 4.483/68. v. XX. Fls. 4937-4938. 7  Relatório Figueiredo. Processo n.º 4.483/68. v. XX. Fl. 4936.

Diante dos casos aqui citados, bem como do Relatório Final da CNV e do Relatório Figueiredo, corroboramos a afirmação anteriormente citada da psicanalista Maria Rita Kehl de que os crimes cometidos diretamente por oficiais do Estado não foram simplesmente casos isolados ou resultados acidentais, mas sim ações sistemáticas, em prol de uma política nacional de extermínio que buscou e busca a posse dos territórios indígenas para favorecer o desenvolvimento agropecuário no país.

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