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“A condição feminina” e a domesticidade: circulação de ideário feminista na grande imprensa comercial

Não nos enganemos: a libertação feminina é um autêntico desafio. O problema milenar irrompeu e a bola de neve pôs-se a rolar: já é tarde para contê-la (SILVA, 1971, p. 130-135)10.

O tema do trabalho doméstico, justamente por suas repercussões afetivas com raízes no inconsciente, costuma provocar entre as leitoras uma enxurrada de reações intensas. Cada vez que as incito a trabalharem fora do lar, implicando com isso que a domestici- dade não é tudo as cartas de protesto formam sôbre (sic) minha mesa uma pilha vertiginosa (SILVA, 1968, p. 120)11.

Há uma especificidade na condição feminina; todas as mulheres,

mesmo pertencentes aos mais diversos estratos sociais, têm em comum um tipo de experiência humana decorrente precisamente do fato de serem mulheres numa sociedade que as discrimina e oprime (SILVA, 1977, p. 166)12.

9  Tripla jornada no caso por exemplo de trabalhadoras rurais: produção para a venda, produção para

o consumo e trabalho doméstico. Mulheres militantes também mencionam triplas jornadas: trabalho remunerado, trabalho doméstico e militância política.

10  Últimas frases do artigo “Por que é preciso ser livre”, de Carmen da Silva, publicado em Claudia. São

Paulo, n. 119, ano X, ago. 1971, p. 130-135.

11  SILVA, Carmen da. O complexo de dona de casa. Claudia. São Paulo, n. 81, ano VIII, jun. 1968, p. 120. 12  SILVA, Carmen da. Desconfie do homem que se diz feminista (é mais um truque do machão!). Claudia.

Anos antes de termos notícias sobre movimentos feministas daquela geração13 organizados no Brasil, ou mulheres mobilizando práticas feministas coletivamente nas décadas de 1960 e 1970 (SARTI, 2004; PEDRO, 2006), as reverberações das movimentações feministas no Norte Global estavam já presentes na chamada esfera pública brasileira. Abordaremos especifica- mente a figura de Carmen da Silva (1919-1985) e seu trabalho como colu- nista e também respondendo pessoalmente cartas de leitoras e leitores na Revista Claudia. Claudia começa a ser publicada no Brasil pela Editora Abril em 1961, com tiragem inicial de 150 mil exemplares, distribuição em todos os estados brasileiros e a proposta de ser a “revista da mulher moderna” (NEHRING, 1981). Carmen da Silva começa a assinar a coluna “A arte de ser mulher” em 1963. Escrevendo com marcado viés psicanalítico, é contratada pela revista para dar alguma resposta às inquietações que as aceleradas transformações nos costumes vinham causando nas leitoras (DUARTE, 2005). As respostas prontas, tradicionalmente elaboradas por homens, editores das revistas “femininas” naquele período (SARTI; MORAES, 1980), não eram mais suficientes para tantas novas questões. Os escritos de Carmen reproduziam o tom de conversa íntima e aconselhamento encontrado de forma geral nas revistas para mulheres (BASSANEZI, 1996; BUITONI, 1981), mas também traziam intenção de conscientização, de despertar, que podemos relacionar com a noção de vanguarda revolucionária que circulava naquele período.

O primeiro exemplo, bastante ilustrativo, é uma carta de leitora de setembro de 1965, um documento muito importante no que se refere às reações de indignação que a atuação de Carmem da Silva causava. Ao ques- tionar a associação entre mulheres e domesticidade e frisar a importância das mulheres casadas, mesmo as mães (porque era comum quando se tornavam mães saírem do mercado de trabalho), terem uma vida profissional fora do lar e independência financeira, Carmen da Silva se tornou uma porta-voz reconhecida de ideias novas, consideradas avançadas e não necessariamente bem aceitas no Brasil na década de 1960 e inícios de 1970.

O grande protesto

“Loura antipática” – São Paulo, SP: “Minha amiga Carmen da Silva... Quem lhe escreve é uma das suas “rainhas tristes”. Isto, segundo você, porque eu, pessoalmente, não me considero nenhuma das duas coisas. Claudia agora me irrita, desde que você, a cronista esclarecida e moderna, resolveu dar ataque cerrado às parasitas da sociedade. Já não consigo admirá-la incondicionalmente. Se compreendi corretamente, você não admite em hipótese alguma que uma mulher não trabalhe remuneradamente. É ou não o seu

13  Reconhecemos que, de modo geral e apesar da continuidade de muitas pautas, os feminismos das

décadas de 1960 e 1970 trouxeram debates políticos que marcaram diferenças em relação às demandas dos movimentos feministas anteriores, bastante focados nos direitos políticos e civis.

ponto de vista? Realmente, seria ótimo sair e estar sempre bem vestida, bem penteada, unhas sempre manicuradas. Trabalhar em hora certa, descansar em hora certa. Travar relações e arejar as idéias (elas andam mesmo precisando de uma arejada, estão atrofiadas após sete anos de limpar bumbuns de nenês...). Num ponto concordo plenamente com você. É mesmo muito mais fácil ser atualizada e moderna, fora das quatro paredes de uma casa. Só existe um problema, de ordem prática, para o qual eu gostaria de ter a solução. Alguém tem de fazer as vulgares, porém indispen- sáveis, “tarefas vinculadas às necessidades biológicas imediatas”, não é? [...] Daqui a pouco, além de tôdas as coisas pouco atraentes que temos de fazer, ainda seremos inconformadas e infelizes. É êsse o seu objetivo? [...]” (CLAUDIA, set. 1965).

Reproduzi aqui, em extensão, cerca de ¼ da carta apenas. O trecho nos comunica, apesar das supressões, a indignação, o repúdio, a ojeriza, a recusa às ideias de Carmen da Silva partindo do seu público mais interessado: as mães de família de camadas médias. Ao mesmo tempo, podemos perceber a popularidade da coluna e a curiosidade que levava as leitoras, mesmo se sentindo ofendidas e incomodadas, a não apenas continuar lendo os textos como ainda a escrever e se comunicar com Carmen. As cartas das leitoras geralmente eram brevemente respondidas na própria seção de cartas, mas essa carta ganhou destaque especial, não apenas sendo publicada na ínte- gra apesar de sua extensão, mas também tendo como resposta um artigo inteiro naquele mesmo número, de setembro de 1965.

Passados meados da década de 1970, Carmen da Silva ainda causava reações semelhantes em suas leitoras, ao seguir firme em seus objetivos de despertar a consciência e afrontar a acomodação, como ela mesma comenta. [...] “Para mim e milhares de mulheres como eu, você traz todo mês um pouco de amargura, um certo descontentamento e um pouco de autocomiseração que somente ajudam a piorar as coisas.” Outra me escreve: “Que adianta querer ser livre e independente quando se tem três filhos entre 2 e 6 anos, uma casa para cuidar... Acabo o dia esgotada e nem quero pensar no que seria se ainda fosse trabalhar fora... A preocupação de melhorar a sociedade e a posição da mulher só serviria para me trazer mais dores de cabeça...” (CLAUDIA, out. 1977, p. 225).

“Será que Amélia é mulher de verdade?”, artigo do qual os trechos acima foram retirados, foi publicado em outubro de 1977, momento de eferves- cência das mobilizações feministas no Brasil. Assim como tem acontecido em nossos dias, principalmente após a “Primavera das Mulheres”,14 o femi- nismo estava “em alta”: em 1975 a Organização das Nações Unidas instituiu

14  Como ficaram conhecidos os eventos de 2015 que levaram milhares de mulheres em diferentes

a Década da Mulher (TABAK, 1985), falava-se sobre encontros feministas na grande imprensa,15 diferentes livros de autoras feministas eram publicados (ZUCCO, 2014), periódicos feministas circulavam pelas maiores cidades do país (TELES; LEITE, 2013), e até uma protagonista feminista tomou conta da minissérie do canal de maior audiência na televisão, menos de dois anos depois, em 1979 (ALMEIDA, 2012). Apesar disso, como podemos perceber, o incentivo à inserção das mulheres casadas na chamada esfera pública não era, ainda, bem recebido por uma boa parcela dessas mulheres. Ou era então entendido por elas como uma espécie de pressão, de expectativa difícil de corresponder, principalmente porque as expectativas sobre o desempenho de suas tarefas no lar se mantinham altas.

Outro ponto fulcral do conflito social que se estabeleceu, no período estudado, em torno da domesticidade, está na perspectiva masculina sobre a questão. De forma geral, toda a perspectiva tradicional, tanto das ciências (sociais, biológicas, econômicas...) quanto do senso comum, no que se refere à domesticidade, é engendrada a partir do olhar masculino, tido como neutro, universal. Então os discursos autorizados repetidos pela tradição, mas também por médicos, juristas e outras palavras autorizadas, eram de forma geral discursos masculinos. Apesar da presença constante desses discursos na revista, e de homens serem regularmente consultados e citados como palavras autorizadas,16 os escritos posicionados de Carmen da Silva, que ocupavam cerca de 3 a 5 páginas de uma revista com 200 ou 300 páginas de conteúdo geralmente conservador, incomodavam muitos homens que também enviavam cartas de protesto. Não era comum que essas cartas fossem publicadas, mas vez ou outra Carmen da Silva respondia a elas, individualmente ou em grupo, em seus artigos. A seguir lemos um trecho de “Carta ao homem brasileiro [...]”, de abril de 1970, cujo subitem “Você, e essa sua falta de preparo para a vida doméstica, para o cotidiano” nos ajuda a vislumbrar os conflitos decorrentes dos debates sobre domes- ticidade naqueles anos.

A culpa não é totalmente sua e sim da formação que você recebeu dos exemplos que a sociedade lhe dá. Você não foi preparado para enfrentar as nimiedades da vida doméstica, o prosaísmo do cotidiano que se desenrola dentro de quatro paredes. Sabe lutar na arena ampla do mundo, mas dentro de casa sua mãe o habituou desde pequeno a não mover um dedo nem para apa- nhar um copo de água: sempre havia em tôrno de você mãos femininas para realizar o milagre do feijão pronto na hora, das camisas impecáveis, da ordem, da limpeza.

15  Há um compilado de recortes sobre essas notícias no acervo da biblioteca da Fundação Carlos Cha-

gas, em São Paulo.

Ocorre que sua mulher pretende comunicar-lhe as experiências dela, pois opina que isso faz parte do casamento. E essas expe- riências abarcam entre outras coisas o copo de água, o feijão pronto na hora, a camisa impecável, a ordem, a limpeza. E quiçá não abarquem muito mais do que isso, pois você é o primeiro a prendê-la, achando que o lugar dela é o lar e que tôda veleidade de transcendência deve ser desestimulada. Ora, eis que êsse mundinho das coisas materiais começa a irritá-lo. Você tenta outro tipo de diálogo, mas fracassa; ela pouco sabe da luta lá fora – e nem você quer que ela saiba; ela tem menos instrução que você – e foi ignorante que você a quis, feita para olhá-lo com olhos deslumbrados de admiração; os interêsses dela são limi- tados, como convém a uma mulher criada e condicionada para ser apenas espôsa e mãe – o tipo de mulher que você escolheu precisamente por ela ser assim. [...] (CLAUDIA, abr. 1970, p. 71). O artigo é finalizado com um dos argumentos que marcam repetida presença em “A arte de ser mulher”.

Prezado Homem Brasileiro: você é muito dono de continuar fazendo o que bem entender – quem sou eu para impedi-lo? A única coisa que digo é que quando incito as mulheres a serem gente, não é contra você, mas sim em seu próprio interêsse: é de pessoa total a pessoa total que vocês vão poder confiar um no outro sem surprêsas, respeitar-se e conviver. Interprete como quiser – sem esquecer entretanto de que quem avisa amigo é. (CLAUDIA, abr. 1970, p. 71, grifos da autora).

Temos, muitos anos depois, publicação semelhante nos comentários de Carmen da Silva sobre a carta de um leitor que a escreve indignado com seu artigo publicado em junho de 1983: “Nossos corpos nos pertencem”. Faz-se um debate sobre o direito ao aborto, mas a resposta a essa carta, no artigo “O pior machismo é aquele que se disfarça”, de outubro de 1983, aponta ainda outras questões colocadas pelo cirurgião mineiro que a escreve. A partir do apontamento do leitor de que machismo e feminismo estariam no mesmo plano, como “o mal daquele século”, Carmen da Silva vem trazendo dados, situações corriqueiras e estatísticas que indicam a necessidade e as urgências do feminismo diante das desigualdades. Ela indica referências feministas ao leitor, recomendando que estude e se informe sobre o trabalho feminino no Brasil: Eva Blay, Heleieth Saffioti, Jacqueline Pintanguy, Moema Toscano, Valéria Junho Pena e a Fundação Carlos Chagas. Podemos apreender, dos nomes citados pela autora, o desenvolvimento da produção acadêmica feminista brasileira, de forma mais consolidada, na década de 1980.

Em um trecho da redação, onde se lê em destaque “Só sabe o custo das mordomias alheias quem paga por elas”, seus comentários à carta do leitor enfocam especificamente o trabalho doméstico.

[...] Quanto à aposentadoria em tempo menor, não seria privilégio nenhum. O trabalhador homem termina sua jornada de labor e dedica-se ao descanso ou ao lazer, atendido e paparicado por uma mulher que, embora também trabalhe fora, limpa e ordena a casa, lava, passa e costura a roupa, alimenta a família, cuida das crianças. Em alguns lugares da roça, ela ainda cultiva um pedaço de terra para garantir a alimentação familiar, perfazendo assim não duas, mas três jornadas de trabalho.

[...] Mesmo as poucas donas-de-casa que ainda têm empregada em tempo integral, precisam dirigir, ensinar, fiscalizar e, quase sempre, fazer as compras em pessoa para garantir o equilíbrio do orçamento doméstico. Cabe-lhes, sobretudo, uma tarefa delicada e indelegável: compensar em qualidade de presença as longas horas passadas longe dos filhos, ouvi-los, comunicar-se com eles, desco- brir seus problemas e dificuldades, dar-lhe segurança emocional. Muitas vezes com a preocupação de não fazer barulho para “não incomodar papai, que está cansado”. Enquanto o homem chega em casa, se refestela e acha que as coisas caem do céu. Só sabe o custo das mordomias alheias quem paga por elas. (CLAUDIA, 1983, p. 270, grifos da autora).

Carmen da Silva demonstra, aqui, estar em diálogo direto com a produ- ção científica e militante dos feminismos do período sobre domesticidade e trabalho doméstico.17 Apesar de certamente ser cansativo repetir alguns dos argumentos, a essa altura, já por 20 anos, mantinha-se firme na defesa dos direitos das mulheres e na desnaturalização da associação entre mulheres e domesticidade. Seus posicionamentos, assim como os de outras “mulheres de luta”, tão importantes na história dos feminismos no Brasil, foram arti- culadores naquele período dos principais conflitos sociais no que se refere à divisão de tarefas por gênero e à privação, para as mulheres, de acesso a espaços decisórios, direitos e poderes.

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