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Jornalismo alternativo, lugar de militância feminista

Pode-se dizer que, em meio às pautas de crítica e denúncia às situações de opressão vivenciadas durante a ditadura militar, a imprensa alternativa atuou na defesa dos interesses e demandas de diversos movimentos sociais. As questões feministas também encontravam espaço nesses veículos, o que permitiu, em determinados momentos, o estabelecimento de vínculos de solidariedade entre os diferentes grupos e movimentos que integravam a luta pela democracia.

Porém essa solidariedade nem sempre se mostrou plena e irrestrita, pois ao mesmo tempo que a imprensa alternativa e independente dava espaço para as causas feministas e assumia a defesa dos direitos das mulhe- res, por vezes recaía em contradições, próprias das disputas no interior do movimento de esquerda (WOITOWICZ, 2009). Céli Pinto (2003, p. 64) recupera a imagem do feminismo na época e analisa o tratamento dado por alguns representantes dessa imprensa às questões relativas às mulheres:3

O feminismo era malvisto no Brasil, pelos militares, pela esquerda, por uma sociedade culturalmente atrasada e sexista que se expres- sava tanto entre os generais de plantão como em uma esquerda intelectualizada cujo melhor representante era justamente o jornal

Pasquim, que associava a liberalização dos costumes a uma vulga-

rização na forma de tratar a mulher e a um constante deboche em relação a tudo que fosse ligado ao feminismo. (PINTO, 2003, p. 64).

3  As observações de Bernardo Kucinski vão ao encontro dessa perspectiva, ao destacarem o rechaço da

imprensa alternativa às questões das mulheres: “Enquanto um novo movimento feminista explodia na Europa desde o começo dos anos de 1970, no Brasil a questão da mulher era desprezada por diversos jornais alternativos importantes. [...] No Brasil, o feminismo ainda era tratado com desdém e mesmo chacota, inclusive por O Pasquim, que fazia o gênero do jornal machista como parte de sua postura geral “anti-classe média moralista”, especialmente através dos artigos de Ivan Lessa, Ziraldo e Paulo Francis. Freqüentemente, associavam feminismo à frustração sexual” (2003, p. 124).

A difícil inserção sobre a temática mulheres na imprensa do período, que além da esquerda, somava-se à da censura militar, é discutida também por Teles e Leite (2013), ao relembrarem quando, em 1976, o jornal alter- nativo Movimento teve sua 45.ª edição vetada por abordar, especialmente, o trabalho da mulher no Brasil. Nesse caso, comentam as autoras, “até as tabelas com os dados estatísticos elaborados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) foram censuradas” (TELES; LEITE, 2013, p. 143).

As contradições presentes na própria imprensa alternativa reforçaram a urgente necessidade de o movimento feminista criar seus próprios veículos, reconhecendo a importância de valorizar um discurso capaz de promover o debate sobre as chamadas “causas específicas” das mulheres. As diferentes experiências de comunicação que marcaram a história do movimento, nota- damente entre os anos 1970 e 80, revelam esse tipo de mídia como um lugar de resistência que atua no fortalecimento das causas do movimento e do ideal de democracia a ser conquistado no país, no espaço privado e nas relações cotidianas.

O feminismo no período é marcado por importantes debates e conquistas que se efetivaram como resultado das práticas de organização e resistência feminista, como na criação do Grupo Latino-Americano das Mulheres em Paris e do boletim informativo Nosotras, conforme descreve Rosa (2013, p 154):

Apesar das condições precárias, o entusiasmo e a disposição para criar algo novo frente às capturas incessantes dos aparelhos do estado e da normatização de uma sociedade patriarcal fizeram com que as mulheres do Grupo criassem um jornal-boletim, difundindo as ideias feministas.

Suas publicações, no entanto, pareciam ir além de denúncias, uma vez que eram frequentes propostas de ações e saídas que transformassem, com urgência, a “face do mundo”.

Além do Nosotras, do Grupo Latino-Americano, houve também a cria- ção do jornal Zero, elaborado pelo Círculo de Mulheres de Paris. O objetivo era produzir uma tribuna de debates que oportunizasse a socialização de experiências tanto individuais quanto dos subgrupos, propondo a reflexões sobre as relações existentes dentro do movimento internacional de mulhe- res. Na figura abaixo, podemos ver os direcionamentos datilografados que organizavam a futura criação do jornal:

Figura 1: Registro em ata da organização para a criação do jornal Zero do Círculo de Mulhe- res em Paris

Fonte: Acervo do LEGH/UFSC

Temáticas como igualdade no âmbito do trabalho, direito a creche, com- bate à violência doméstica, sexualidade e direito ao corpo, aborto e direitos reprodutivos, participação política, entre diversas outras, fazem parte das bandeiras e ações do movimento, tanto no Brasil quanto em grande parte do mundo ocidental.

Diante da criação de grupos feministas brasileiros, foram lançadas publicações entre o final dos anos 1970 e o início dos 80 que, com orientações editoriais distintas, inseriram o debate sobre diversas questões feministas nos meios da política, da intelectualidade e em setores de base.

As experiências dos grupos feministas e de mulheres apontavam cada vez mais para a necessidade de criar um discurso próprio, que deu origem às experiências de imprensa feminista (WOITOWICZ, 2014). Em um Encontro do Movimento das Mulheres no Brasil, realizado no Rio de Janeiro em agosto de 1981, entre as temáticas discutidas ganhava destaque a comunicação. O evento, registrado no livro Mulheres em Movimento, discutiu o papel educativo dos meios de comunicação, considerando que cumprem “não apenas o seu sentido conservador de reprodução da ideologia dominante, mas também, o seu sentido de mudança enquanto focos de resistência e propagadores das novas ideias e valores” (BARSTED, 1983, p. 13).

Ao abordar a importância da criação ou reapropriação da mídia, Leila Barsted observa que na década de 1970 novos espaços foram sendo criados para o discurso das mulheres, a partir de meios variados: revistas, boletins,

jornais alternativos, luta por espaço dentro da grande imprensa, do rádio, da televisão e do cinema. Para ela, “os veículos de comunicação se apre- sentam inseridos numa estratégia de educação do movimento feminista, de recriação da identidade social da mulher e de resgate de nossa história” (BARSTED, 1983, p. 16).

A necessidade de uma imprensa feminista própria colocou-se, assim, a partir da consciência de que os meios tradicionais de comunicação, esfera de atuação dos donos do poder, e até mesmo alguns setores da imprensa alternativa, ou ignoram a mulher, ou reforçam os estereótipos discriminatórios a seu respeito, ou a manipulam enquanto objeto de consumo-consumidora. Ou seja, negam a existência de um falar feminino e, portanto, de uma mulher sujeito de sua fala e de seu desejo. (BARSTED, 1983, p. 14). Entre as experiências de imprensa alternativa feminista4, destacam-se os primeiros jornais produzidos no final dos anos 1970: Brasil Mulher (1975- 1979) e Nós Mulheres (1976-1978). Além desses veículos, existiram muitas outras experiências do movimento de mulheres e feministas, como as publi- cações Maria Quitéria (1977)5, Correio da Mulher (1979), Liberta (Porto Alegre, 1980), Mulherio (1981-1987), Chanacomchana (1982)6, Mulher ABC, o goiano

Mariação, as revistas Fotochoq e Maria Sem Vergonha, além de programas de rádio e boletins criados por grupos feministas em diferentes regiões do país. O jornal Liberta, criado por Sônia Weidner Maluf e Diná Lemos no contexto universitário do Rio Grande do Sul, tinha como principais pautas a luta por creches dentro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e a divulga- ção do movimento feminista no Brasil: “[...] a gente fazia mais de reflexão falando de bases literárias, falando de sexualidade, falando de virgindade, que era uma discussão muito presente pra gente. Virgindade, sexualidade, prazer e muito dessa influência de leitura reichiana”, relata Sônia Weidner Maluf (2006) em entrevista.

Sobre os esforços para a produção, Sônia relembra o uso de mimeó- grafos à tinta com matrizes perfuradas e as estratégias elaboradas para a compra de materiais:

4  Antes mesmo das primeiras iniciativas de comunicação alternativa de mulheres no Brasil, registra-se

a participação de brasileiras exiladas em experiências de imprensa feminista durante a ditadura militar. Nesse sentido, destaca-se a edição do periódico Nosotras (1974-1976), do Grupo Latino-Americano de Mulheres em Paris, fundado por Danda Prado, na França, em 1972; e do Agora é que são elas (1975), publicado pelo Círculo de Mulheres Brasileiras, formado por exiladas brasileiras em Paris.

5  Maria Quitéria tinha o propósito de para divulgar as atividades do Movimento Feminino pela Anistia,

não podendo ser caracterizado como um jornal. A esse respeito, ver: RAMOS, 2002, p. 57.

6  Publicado pelo Movimento Lésbico-Feminista (MLF), formado por mulheres dissidentes do Grupo

Somos, fundado em 1978, conhecido como primeiro grupo homossexual politicamente organizado no Brasil. Segundo Elizabeth Cardoso (2004, p. 46), “com tiragem de, em média, 200 exemplares por edição e periodicidade instável, entre trimestral e quadrimestral, o ChanacomChana circulou durante toda a década de 80, com sua última edição publicada no ano de 1989”.

[...] a gente passava o chapéu pra conseguir papel, pra conseguir matriz, e a mão de obra era nossa. Então a gente passava a noite rodando jornal. O que a gente fazia muito era festa, o ‘Liberta’ organizava festa e cobrava entrada. As festas do ‘Liberta’ eram famosas. A gente pedia um CA [Centro Acadêmico] emprestado, salão de algum CA emprestado, fazia a festa, cobrava ingresso, trabalhava uma noite inteira, vendia no bar cerveja, não sei o quê, e juntava uma grana que dava pra fazer um ou dois números do jornal. Outra coisa que a gente fez foi pegar livros relacionados a mulher, com editoras, livrarias e tal, e vender e ficar com uma parte pro grupo.

É possível perceber que o movimento feminista, à medida que se constitui como um espaço de resistência e luta em defesa das mulheres, passou a incor- porar em suas ações diversas práticas relacionadas aos processos midiáticos. Os jornais, a partir de distintas orientações – que circulam entre o enfoque político, a luta de classes e questões ligadas à desigualdade entre homens e mulheres –, promoveram o debate sobre as causas do feminismo a partir da publicização de determinados assuntos na esfera pública (WOITOWICZ, 2014).

A partir disso, podemos compreender a imprensa feminista de 1970 e 80 para além de uma experiência jornalística que, em tese, seria formada por jornalistas e estruturada a partir de processos de produção e noticiabili- dade determinadas pela prática profissional. Nesse momento, a urgência em comunicar outros discursos, muitas vezes de forma clandestina, transgredia qualquer lógica estabelecida profissionalmente, conforme relata Rosalina Santa Cruz Leite:

Não éramos jornalistas, éramos políticas, todas militantes de algumas ações diferentes, inclusive e aprendendo a ser feminista [e] o jornal [Brasil Mulher] é muito interessante porque mostra que éramos jovens. A maioria estava tendo o seu primeiro filho, éramos mães e estávamos tendo um contato direto com a periferia e clubes de mães. Foi ali que começamos a fazer um feminismo de base. (LEITE, 2017, s/p).

De acordo com Elizabeth Cardoso (2004), a imprensa feminista é um fenômeno nacional, presente em praticamente todas as regiões do país, que atravessou diferentes fases para sua consolidação durante a ditadura mili- tar e após a abertura política do país. Na pesquisa de campo realizada pela autora em acervos históricos foram catalogados 75 periódicos feministas, entre boletins, revistas e jornais de todo o Brasil.

[...] não foi registrado nenhum título da região Norte; foram encon- trados sete títulos na região Sul (cinco do Paraná e dois do Rio Grande do Sul); oito títulos originários da região Centro-Oeste (cinco do Distrito Federal, um do Mato Grosso e dois de Goiás); foram encontradas 12 publicações feministas editadas na região

Nordeste (cinco de Pernambuco, três da Bahia, uma do Piauí, uma da Paraíba e duas do Rio Grande do Norte); e 46 títulos feministas foram publicados na região Sudeste (28 da capital paulista, seis na região do ABCD, três do interior de São Paulo, quatro do Rio de Janeiro e cinco de Belo Horizonte). (CARDOSO, 2004, p. 50). Com base nesses registros, observa-se que o fenômeno da imprensa alternativa encontrou nas experiências feministas um importante espaço de organização, mobilização e luta. E, como seria impossível abordar todas as publicações que representam as lutas do movimento no período considerado, serão apresentados a seguir alguns aspectos dos jornais que fazem parte do acervo utilizado no projeto “Mulheres de luta: feminismo e esquerdas no Brasil (1964-1985)”, que ilustram, em sua diversidade, o papel assumido pela imprensa no interior dos movimentos sociais como uma voz que visibiliza conflitos e produz disputas de sentido.

Características da imprensa feminista: os jornais na construção

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